Louvor e mandinga na embaixada de Jesus
Entrar no Jardim Peri, em São Paulo, é pedir licença para Gabriel Jesus, o menino de 21 anos que um dia estava ali batendo bola e no outro vestindo a 9 da seleção
Se Gabriel Jesus estivesse por ali nesta sexta-feira, ele com certeza teria dito que o jogo entre Brasil e Costa Rica não estava nada tetinha. No intervalo da partida empatada em 0 a 0, de cima de uma laje transformada em varanda, Renan Ribeiro, 26, mais um menino do Jardim Peri, que cresceu com o atacante nas ruas do bairro, explica a expressão. É que quando o jogo estava fácil (e parece que os jogos sempre estavam fáceis para ele), Jesus dizia que a pelada estava tetinha. Aí que quando você chega naquele pedaço, zona norte de São Paulo, ponto final do ônibus 1759, onde os motoristas aproveitam um alargamento das ruas pra manobrar, todo mundo só chama o jogador da seleção brasileira de Teta. “Vamo lá que o Teta vai marcar nesse segundo tempo, é só a bola sobrar pra ele”, diz o amigo do bairro.
Três andares para baixo da casa do Renan, o clima é de tensão no Bar da Giselle. Ainda mais depois do gol anulado por impedimento que o atacante tinha guardado na primeira etapa. Giselle Xavier, 40, dona do bar, por exemplo, mal estava conseguindo falar de nervoso. Vidrada na televisão, comentava meio com ela mesma que “ele sofre demais” enquanto a televisão reprisava a reação dele depois do lance, escondendo o rosto na camiseta. Desde que o atacante explodiu no Palmeiras, o boteco da Gi virou uma espécie de embaixada do Jesus no Jardim Peri. Não à toa, durante o tenso primeiro tempo, o lugar mais parecia uma sala de imprensa do que um bar. Tinha mais câmera e repórter do que torcedor, já que o horário do jogo, cedinho, não ajuda o trabalhador.
“Domingo é que isso aqui tava lotado, o pessoal pulou tanto que até me quebraram um cano que passa embaixo do chão”, conta a Giselle. Durante a madrugada de hoje, ela teve que chamar uns pedreiros para consertar o vazamento e começou o dia limpando a zona. Aí que ficou só mais aflita com o jogo. Na frente do bar dela, onde se forma essa espécie de largo, propício para manobras de busões e peladas de rua, os moradores do bairro grafitaram um rosto gigante do Jesus no asfalto, pintaram outros tantos nas paredes das casas e penduraram milhares de fitinhas verde e amarelas que cruzam a rua formando uma espécie de arena. Quem pagou pela decoração? O Gabriel Jesus. Lá ele sonhou em ser jogador, lá é o lugar que não esquece e, por isso, é orgulho de todos.
E como seria diferente? No corpo, ele leva tatuado: “Posso até sair do Peri, mas o Peri nunca sairá de mim”. Os meninos mais novos, que logo no primeiro tempo já esquecem do jogo para bater bola em cima do grafite do jogador, sonham em ser os próximos a poder dizer a mesma frase. Meio cansada do assédio dos jornalistas, meio marrenta, mas, principalmente, aflita com o primeiro tempo em que o Brasil jogou pouco, a Gi responde às perguntas monossilábica. Conhece o Jesus desde quando? “De sempre”. Ele ainda vem aqui? “Vem”. Como ele era? “Tranquilo, adoro ele”. E a gente pode tirar uma foto sua? “Você gostam de tirar foto de mim, hein? Vou começar a cobrar”. Tudo bem, Giselle, a gente entende a chatice do assédio. Mas responde mais uma. O que ele gostava de comer aqui? “Bolacha e refri, era doido por doce”.
Em um texto publicado pela revista The Players Tribune, que faz perfis em primeira pessoa de esportistas, o próprio Jesus diz que no Peri o refrigerante tem gosto de espumante. É que um litrão de refri era sempre o troféu das peladas que disputavam nas ruas. Depois do primeiro tempo em que o Brasil pouco jogou, o clima de tensão aumenta dentro do bar e as câmeras da imprensa também dão uma trela para os moradores torcerem (e sofrerem) mais à vontade. Sônia de Jesus, 46, antes da bola rolar vai dizendo para todo mundo que é pra descruzar o braço. “Quem estiver com o braço cruzado vai tomar canelada, que braço cruzado dá azar, e aqui canela é qualquer lugar do pescoço pra baixo”. E a partida recomeça.
Entre os moradores do Jardim Peri, alguns usam camisetas da seleção brasileira, outros o uniforme do Vitória, time de várzea do bairro, que agora leva o rosto do Jesus estampado. Foi jogando por esse time, quando Jesus tinha só 13 anos, que ele quase saiu com as duas pernas quebradas. Na mesma reportagem da The Players Tribune, ele conta que depois de entortar uns tantos jogadores do outro time e levar o seu time à vitória nos pênaltis, um lá mais esquentado jurou que Jesus não saia do campo caminhando. Acabou que ele conseguiu escapar com a ajuda dos amigos, mas não sem antes tomar uma falta atrás da outra. Falando em pênalti e falta, o bar da Gi explode quando o Neymar cai na área e o juiz aponta o centro da área da Costa Rica.
Minutos depois, contudo, a torcida logo se divide entre xingar o árbitro, que reanalisou o lance e tirou o pênalti do Brasil, e xingar Neymar, que teria simulado a falta. O jogo avança, o gol não sai e o camisa 10 da seleção acaba virando o alvo principal das críticas. Ele prende a bola demais, não passa para o Teta, é fominha e, ao contrário do filho do Peri, esqueceu suas origens. É um convencido. O próprio Jesus tem uma opinião bem diferente do companheiro e costuma dizer que ele é o fator de união da seleção, principal responsável pelo ouro olímpico em 2016, por exemplo. Os torcedores só esquecem o Neymar quando o narrador anuncia que o Firmino está na beira do campo pronto pra entrar em jogo. “Cê é louco, parça! Tem que deixar o Teta jogar”, exclama indignado o Roney Ribeiro, 30, adivinhando que Tite vai trocar um pelo outro.
Para alívio geral, contudo, quem sai para a entrada do concorrente do Jesus no ataque é o Paulinho. A partida, com o Brasil jogando melhor, continua amarrada. Os jogadores da Costa Rica caem sem parar, fazem cera, interrompem o jogo a todo momento. O juiz dá seis minutos de acréscimo, o Jardim Peri inteiro queria pelo menos uns dez. Parece que vai ficar no zero a zero. Até que Marcelo cruza na área. Firmino sobe para cabecear, a bola sobra para Jesus que já domina virando e Philippe Coutinho aparece para chutar para dentro do gol. Entre as pernas do goleiro Keylor Navas. 1 a 0 Brasil. E o bar da Giselle quase vai abaixo. Com poucos minutos pro fim do jogo, todo mundo mais tranquilo, Neymar ainda faz mais um. 2 a 0. É o gol que a Gi precisava para relaxar um pouco, dar a volta no balcão, sair correndo para a calçada e soltar um rojão.
Para a Gi, depois ela conta mais expansiva, o único sonho que ela não viu Jesus cumprir foi um que ela próprio sonhou: ver ele jogar pelo Corinthians. Mas tudo bem. Na parede do bar, ao lado do relógio do Timão, estão as camisetas autografadas da época do Palmeiras e também do Manchester City em quadros de vidro. Já para o Jardim Peri, mais do que um cumpridor de sonhos, Jesus, o Teta, é uma referência. Ao subir as ladeiras do bairro, rumo ao Bar da Giselle, você vai passando por ruas todas tomadas de fitinhas verde e amarelas. Nas paredes das casas, o rosto do jogador também aparece o tempo todo. Entrar no Jardim Peri é pedir licença pro menino de 21 anos que um dia estava ali batendo bola e no outro estava na Inglaterra e depois vestindo a camisa nove da seleção brasileira. “Ninguém esperava que tudo fosse tão rápido, ele saiu daqui ontem”: é o que mais se ouve por lá.
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