O testemunho da perseguição nazista encontrado em um sebo francês
‘Uma Livraria em Berlim’ é o relato autobiográfico de uma judia polonesa durante o Holocausto
O único livro que Françoise Frenkel assinou passou 70 anos extraviado. Reapareceu em um sebo de Nice em 2010, quando foi encontrado por um bibliófilo intrigado pela capa sóbria e pelo título enigmático: Rien Où Poser La Tête (Nenhum Lugar para Encostar A Cabeça). Ao abri-lo, descobriu o testemunho de uma judia polonesa, fundadora da primeira livraria francesa de Berlim em 1921, que cruzou o continente fugindo da perseguição dos nazistas. Da capital alemã a Paris, e dali até Nice, de onde conseguirá cruzar a fronteira suíça após duas tentativas fracassadas. Seis anos depois da descoberta, o livro – sucesso editorial na França em 2016 – chega agora às livrarias espanholas com o título Una Librería en Berlín (Uma Livraria em Berlim). Ainda não há previsão para a publicação da obra em português.
Frenkel morreu em janeiro de 1975. Tudo que deixou foi um punhado de documentos: sua certidão de nascimento, sua assinatura no registro da fronteira suíça, um termo de indenização dos bens confiscados pelos nazistas. Estavam em um baú que continha um casaco de pele de lontra, uma capa de chuva preta, dois vestidos de malha, um guarda-chuva, dois pares de sapatos e duas máquinas de escrever. Isso é tudo o que se sabe dela. Até hoje não foi encontrada nenhuma foto da autora. “Será que precisamos saber mais? Acho que não”, pergunta e responde Patrick Modiano, Nobel de Literatura em 2014 e grande especialista sobre a época da ocupação nazista, no prefácio do livro. “A grande particularidade desse texto é justamente não permitir identificar sua autora de maneira precisa”, acrescenta Modiano. Françoise Frenkel poderia ser uma das personagens do romancista, com o rosto sempre encoberto pela névoa da memória.
A autora terminou o manuscrito em 1944 à margem do Lago dos Quatro Cantões, no coração da Suíça, onde seria publicado um ano mais tarde pela extinta editora Jeheber. Sentindo-se, enfim, a salvo, Frenkel pôs-se a escrever para registrar sua experiência. Mas o fez com rara contenção. Mais que uma denúncia da perseguição e da vida na clandestinidade ao longo de seu périplo, a obra foi concebida como uma homenagem “aos homens de boa vontade e valentia inesgotável” que conseguiram “resistir até o final”. A escritora deixou as passagens mais traumáticas de sua existência fora de suas páginas. Frenkel se esforça para ressaltar a generosidade dos estranhos. Insinua os comportamentos mesquinhos com um irônico desdém. O nome de seu marido, Simon Rachenstein, deportado para Auschwitz em 1942, nem sequer é mencionado.
Também é um relato sobre a paixão pela literatura, que Frenkel sentiu desde muito cedo, quando “podia passar horas folheando um livro com figuras ou um grande volume ilustrado”. Sua livraria, La Maison du Livre, parecia um templo. Frenkel a define como sua “razão de ser”. Por ela passaram André Gide, Apollinaire e Colette. Na Alemanha francófoba pós-Tratado de Versalhes, aquele espaço se tornou um lugar “de esquecimento e desabafo, onde se respirava livremente”. Frenkel também assina uma carta de amor à cultura francesa e aos valores universalistas com os quais continua associada. Seu nome verdadeiro era Frymeta. Françoise foi adotado mais tarde, por causa do apego que sentia por sua pátria imaginária.
Hoje traduzido em sete idiomas, Uma Livraria em Berlim voltou à vida graças ao esforço de Thomas Simonnet, da Gallimard – ele é o editor da coleção histórica L’Arbalète, que inclui títulos de Sartre e Jean Genet – e Frédéric Maria, consultor editorial para a francesa P.O.L. e a espanhola Acantilado. “Várias editoras se interessaram, mas algumas pretendiam introduzir mudanças. Eu me recusei a alterar o manuscrito”, afirma o consultor. Só uma ou outra expressão em desuso foi modificada para facilitar a compreensão. Maria também se encarregou de seguir a pista de Frenkel para verificar a autenticidade do texto e coletar uma série de documentos históricos publicados ao final do livro.
Para Maria, o valor do texto é incalculável. “Frenkel nunca diz explicitamente que é judia, mas se ergue como porta-voz desse povo que busca a terra prometida”, diz ele. Descobrir as páginas deixadas por uma mulher sobre a qual não existia uma única referência na internet até 2010 só intensifica a experiência da leitura. “Prefiro não conhecer o rosto de Frenkel, nem as peripécias de sua vida depois da guerra, nem a data de sua morte”, afirma Modiano no prefácio. “Desse modo, seu livro sempre será, para mim, a carta de uma desconhecida, esquecida há uma eternidade na lista dos correios e que você pensa que recebeu por engano, mas pode ter sido escrita para você”.
LITERATURA RESSUSCITADA
Os testemunhos sobre a Segunda Guerra Mundial estão em alta no mercado literário, cada vez mais atraído por manuscritos inéditos e livros redescobertos. Antes de Françoise Frenkel foi Irène Nemirovsky e sua Suíte Francesa, romance inacabado de mil páginas encontrado por suas filhas em uma mala velha. Seria publicado em 2004 com um sucesso apoteótico: hoje supera os 3 milhões de exemplares vendidos no mundo, com direito a adaptação hollywoodiana. A editora espanhola Anagrama publicou em 2008 o Diario de Hélène Berr, caderno autobiográfico assinado por uma estudante judia na Sorbonne, também prefaciado por Patrick Modiano.
Além disso, foi reeditado na última década o livro Uma Mulher em Berlim, relato anônimo de uma jovem entre os escombros da capital alemã em 1945, ao que parece remeter o título espanhol da obra de Frenkel. A editora francesa preferiu ater-se ao original para evitar acusações de oportunismo. "Fomos particularmente transparentes e escrupulosos", diz o editor Thomas Simonnet, para quem a reedição se justifica não só pela importância do livro como documento histórico, mas também pelo seu valor literário". O estilo de Frenkel, limpo mas incisivo, revela uma autora rigorosa e capaz de encontrar algo muito difícil para todo escritor: a distância necessária em relação a sua própria história.
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