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Kirchner, Uribe, Morales, Fujimori... O passado pesa muito na América Latina

A América Latina parece estar ancorada no ontem. À esquerda, a sombra dos líderes políticos do início do século é muito comprida. À direita, os discursos pouco evoluíram

O presidente de Bolívia, Luis Arce (esquerda), com Evo Morales, em março de 2021.
O presidente de Bolívia, Luis Arce (esquerda), com Evo Morales, em março de 2021.AIZAR RALDES (AFP)
Javier Lafuente

Uma âncora mantém a América Latina presa a seu passado mais recente. Um olhar retroativo põe em evidência como é difícil para a região virar a página, que não tem a ver com esquerda ou direita. O roteiro é, se não repetitivo, muito familiar. Há um empresário, banqueiro, Guillermo Lasso, que conseguiu a vitória no Equador em sua terceira tentativa com propostas que não diferem muito das que apresentou no primeiro round. Ou um nostálgico de Fidel Castro, Pedro Castillo, que vai disputar a presidência do Peru com a filha do autocrata que está preso por violação de direitos humanos.

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Quando a maré rosa, a pink tide dos anglo-saxões, aquele socialismo do século XXI, emergiu com força na primeira década de 2000, parecia que as forças progressistas haviam enterrado para sempre o neoliberalismo dos anos 90. Mas, quando este, com uma narrativa mais moderna, retomou o poder anos depois, houve a sensação de que os sonhos progressistas estavam se desvanecendo. E volta a começar, como se fosse uma versão latino-americana de Italo Calvino e Se um viajante na noite de inverno. Muito se falou sobre um pêndulo que se movia da esquerda para a direita quando o que está em disputa é um campo de 650 milhões de pessoas em que os líderes e os libretos se repetem. Uma inércia que se choca com a necessidade de enfrentar problemas globais, como o papel das novas tecnologias ou políticas verdes para encarar as mudanças climáticas, e com uma pandemia que agravou os motivos que desencadearam os protestos sociais há dois anos.

Esse olhar para o passado se reflete em ambos os lados do espectro político. No início do século, a região virou para a esquerda. No melhor momento deste ciclo, com a garantia dos altos preços das matérias-primas e um firme compromisso dos Governos da vez, a pobreza foi reduzida. Em 10 anos (2002-2012), 60 milhões de latino-americanos deixaram sua condição de pobres, de 44% a 28%. Anos depois, ainda é evidente a presença, senão a sombra, das lideranças esquerdistas que então emergiram, embora de formas muito distintas: na Argentina, Cristina Fernández optou por ficar em segundo plano e pela vice-presidência de Alberto Fernández; Evo Morales foi impedido de ser candidato na Bolívia após seu exílio forçado pelos militares, mas poucos acreditam que, após a vitória de seu ex-ministro da Economia, Luis Arce, ele vá renunciar a optar por algum cargo no futuro e que não tente voltar a ser presidente.

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A figura de Rafael Correa, exilado, representou um custo muito alto para a candidatura de Andrés Arauz no Equador; Lula renasce após sua passagem pela prisão e depois que a justiça acabou lhe dando razão no processo que o impediu de disputar a última eleição. A figura mitificada de Chávez é uma carga que transcende a Venezuela, como a da Cuba castrista, que neste fim de semana realiza mais um congresso do Partido Comunista para certificar a saída do poder, aos 89 anos, de Raúl Castro. Também ocorre na Nicarágua de Daniel Ortega e Rosario Murillo, que se tornou uma autocracia, longe do sonho revolucionário dos anos 80 que esses mesmos protagonistas encarnavam.

A foto da XXXII reunião do Mercosul em 2007, no Rio de Janeiro. A partir da esquerda: Samuel Hinds (Guiana), Nestor Kirchner (Argentina), Álvaro Uribe (Colômbia), Nicanor Duarte (Paraguai), Evo Morales (Bolívia), Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil), Michelle Bachelet (Chile), Tabaré Vázquez (Uruguai), Rafael Correa (Equador), Hugo Chávez (Venezuela) e Ronaldo Ronald (Suriname).
A foto da XXXII reunião do Mercosul em 2007, no Rio de Janeiro. A partir da esquerda: Samuel Hinds (Guiana), Nestor Kirchner (Argentina), Álvaro Uribe (Colômbia), Nicanor Duarte (Paraguai), Evo Morales (Bolívia), Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil), Michelle Bachelet (Chile), Tabaré Vázquez (Uruguai), Rafael Correa (Equador), Hugo Chávez (Venezuela) e Ronaldo Ronald (Suriname).VANDERLEI ALMEIDA (AFP via Getty Images)

Para Luciana Cadahia, doutora em Filosofia pela Universidade Autônoma de Madri, qualquer força, seja de direita ou de esquerda, “precisa olhar para o passado, precisa saber de que legado histórico vem”. Por sua vez, Vanni Pettinà, professor e pesquisador de História Contemporânea e Internacional da América Latina no Colégio de México, destaca: “A personalização da política em torno de uma liderança carismática continua sendo um lugar onde é necessária uma profunda renovação das ideias da esquerda latino-americana”. O jornalista e historiador argentino Pablo Stefanoni acrescenta uma nuance: “Onde voltou, o progressismo enfrenta dificuldades e fragilidades que não lhe permitem recuperar os discursos refundacionais dos primeiros anos da década de 2000”, diz o autor de La rebeldía se volvió de derecha? (Editora Século XXI). Em alguns casos, como o do México, a essa divindade presidencial se acrescenta uma visão do mundo extemporânea, de um passado mais distante, que aposta nas refinarias e em uma concepção de política externa que responde a uma visão do mundo mais próxima dos anos 70 do século passado do que da transformação que é necessária hoje.

Do lado conservador, a figura onipresente de Álvaro Uribe permeou a política colombiana nas últimas duas décadas a ponto de colocar no poder os dois presidentes que o substituíram. Se o uribismo não se diluiu na Colômbia, pode-se dar como certo que o fujimorismo está mais do que latente no Peru. No entanto, no lado azul do tabuleiro político, predomina mais o libreto do que os rostos. A direita latino-americana, a dos anos 90 e aquela que, com outra narrativa, governou décadas depois, mantém a mesma concepção de Estado. Esta passa por garantir um equilíbrio institucional que acabe sempre favorecendo as elites econômicas.

Alberto Fujimori e sua filha Keiko, em maio de 2006.
Alberto Fujimori e sua filha Keiko, em maio de 2006.MARTIN BERNETTI (AFP via Getty Images)

À direita não há nostalgia, mas sim uma felicidade muito presente, de uma era que, no fundo, a beneficiou enormemente e que, então, não implicou uma revisão profunda dos limites do modelo de sociedade e economia que tem defendido nestas décadas”, diz Pettinà, que, no entanto, acredita que é uma nostalgia de um presente que não funciona, “que quebra sociedades e as desestabiliza”, no caso do Brasil e do Chile. “À direita, o processo de reelaboração do luto ainda não começou porque, como dizia Faulkner, ‘the past is never dead, it’s not even past’ (o passado nunca está morto, nem mesmo é passado). Para começar a se renovar, é preciso viver o luto e sair dele”. Nesse sentido, Ailynn Torres, pesquisadora da Fundação Rosa Luxemburgo, acredita que “as novas direitas não são plenamente nostálgicas, embora parte de seus conteúdos e narrativas o sejam.

O conjunto coloca em jogo estratégias e referências que não são necessariamente nostálgicas nem seguem um roteiro dos anos 90. Usam estratégias de marketing agressivas e gerenciamento inovador das redes sociais, aliam-se a setores religiosos em expansão que também são bastante recentes. Defendem e constroem inimigos, como a ideologia de gênero, que não existia nos anos 90”. No entanto, a também pesquisadora da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) do Equador afirma que não há apenas rupturas: “Há continuidades muito importantes, sobretudo em termos de propostas de economia política, relações internacionais, moralização da esfera pública ou o papel de aparelhos globais como o FMI”.

Falar de nostalgia, no entanto, também é polêmico. Luciana Cadahia, por exemplo, assume que a nostalgia é um sentimento reativo. “Significa querer reviver uma época que não pode mais voltar. E uma vez que não pode retornar, então o niilismo e o cinismo são reativados. Não creio que seja isso o que acontece na América Latina, em absoluto”, afirma. “Parece-me que a disputa política está viva demais para pensar que nos tornamos niilistas. Manter viva a memória do passado não necessariamente te torna nostálgico, mas também pode servir de imaginação para o futuro.”

As encruzilhadas que surge neste campo em disputa chamado América Latina são maiúsculas. A região sofre uma estagnação quando se trata de pensar sobre os problemas globais, tanto à direita quanto à esquerda. “Há pouca discussão pública de questões como impactos de novas tecnologias, as transformações nos mercados de trabalho ou as mudanças climáticas”, observa Stefanoni. Governos de todas as cores se engasgam com os movimentos ambientalistas e combater o racismo é, em muitos casos, algo quimérico. A isso se soma o curto-circuito que as organizações de mulheres e o feminismo têm significado para a direita e para a esquerda, em uma região onde os movimentos evangélicos têm um peso cada vez maior, como se viu no Brasil com o Bolsonaro.

Embora os setores conservadores tenham desenvolvido políticas de confronto, para a esquerda, como Ailynn Torres aponta, é um “problema não resolvido, um incômodo ou um recurso para agarrar votos conservadores”. É o caso, ressalta, de Pedro Castillo, que disputará a presidência do Peru com Keiko Fujimori: diante da “esquerda caviar”, promove uma “esquerda provinciana” que empunha a bandeira “pró-família”, rejeita a descriminalização de aborto e o casamento gay.

As visões conservadoras também eram plausíveis na Bolívia de Evo Morales ou no Equador de Rafael Correa. Ou continuam sendo no México de López Obrador, que comemora ser um presidente progressista, mas se recusa, entre outros direitos sociais, a defender a descriminalização do aborto. O presidente mexicano se chocou com o movimento feminista e não hesitou em apoiar a candidatura a governador de um político acusado de estupro. Nesse sentido, Ailynn Torres enfatiza que “a agenda feminista está inserida em todos os espaços da política”. Gostem ou não, diz ela, os Governos não podem ignorar as vozes que emergem das organizações de mulheres e feministas. O maior exemplo, sem dúvida, é o que está acontecendo na Argentina, onde no final de dezembro do ano passado foi aprovada uma lei sobre a interrupção da gravidez.

Alberto Fernández e Cristina Fernández (à direita), em dezembro de 2019.
Alberto Fernández e Cristina Fernández (à direita), em dezembro de 2019.Ricardo Ceppi (Getty Images)

O desafio é ainda maior em um contexto como o atual, em que todas as apostas integradoras, tanto progressistas como conservadoras, estão em crise, e as consequências que a pandemia pode deixar ainda são imprevisíveis. No momento, a desigualdade e o empobrecimento têm se acentuado, dois dos motivos que levaram milhares de pessoas, a maioria jovens, às ruas no final de 2019. Essas mobilizações provocaram alguns terremotos, que teriam ido mais longe, não fosse a chegada da pandemia. Os jovens chilenos conseguiram a realização de uma eleição —em maio próximo— para mudar a Constituição que o país herda da época de Pinochet; na Bolívia, houve uma virada radical no cenário político; o novo Governo do Equador, o primeiro país tomado pelos protestos, há dois anos, herdará esse estopim que ainda arde na Colômbia e que certamente se espalhará pela região à medida que o processo de vacinação avance e a pandemia dê uma trégua.

Andrés Arauz e Rafael Correa (direita), em agosto de 2020.
Andrés Arauz e Rafael Correa (direita), em agosto de 2020.

Em El continente olvidado (Editora Crítica), o jornalista Michael Reid, um dos maiores conhecedores da história recente da região, lembra que a história da América Latina desde a independência “oscilou entre esperança e o desespero, o progresso e a reação, a estabilidade e a desordem”. A resistência em virar a página, essa âncora da qual os líderes políticos parecem não querer se desprender, está mais uma vez pondo a região à prova em um momento de crise aguda. Tudo apontaria para um novo ponto de inflexão, mas, como também recorda Luciana Cadahia, “a história não funciona como as notícias. As notícias funcionam em momentos de estabilidade, porque o novo pode ser pintado como uma cosmética implacável. Mas quando as coisas realmente mudam, como agora, a nossa maneira de perceber tudo também muda; ou seja, nosso arcabouço de entendimento está em crise, não temos mais certeza de como percebemos e por isso, agora que tudo está mudando, acreditamos que nada está acontecendo”.

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