A esquerda retoma o voo na América Latina, mas ainda não encontra seu lugar no Brasil
As presidências de Arce na Bolívia, Fernández na Argentina e López Obrador no México e a possível eleição de Arauz no Equador são evidências de um morno ressurgimento do progressismo regional. No Brasil, ela não conseguiu colocar sua voz num país que girou claramente para a direita
Ele estava tão desconectado do Equador que, no domingo passado, nem pôde votar nas eleições que ganhou. Mas Andrés Arauz, o candidato de esquerda que venceu com uma margem de mais de 10 pontos o primeiro turno das eleições presidenciais, desponta como a figura mais recente de uma nova ascensão de projetos progressistas na América Latina. Residia no México desde 2017 e o aparato do ex-presidente Rafael Correa, que não pôde concorrer por estar condenado a oito anos e inabilitado, organizou in extremis sua volta ao país andino. Arauz é um político jovem, de apenas 36 anos. As urnas demonstraram que a simpatia pelo chamado socialismo do século XXI não se apagou, e agora ele representa uma nova esperança para seus aliados internacionais, que esperam consolidar um novo eixo de esquerda na região.
O primeiro sinal foi dado em dezembro de 2018 no México, com a chegada de Andrés Manuel López Obrador à presidência e de Claudia Sheinbaum à prefeitura da capital. Um ano depois, foi eleito na Argentina o kirchnerista Alberto Fernández, após um mandato de quatro anos do conservador Mauricio Macri. Em outubro, o Movimento ao Socialismo (MAS) voltou ao poder na Bolívia com Luis Arce, depois de um ano de convulsões durante o Governo interino de Jeanine Áñez. Na Argentina e na Bolívia, foi crucial o impulso de Cristina Fernández de Kirchner, que acompanha Alberto Fernández como vice-presidenta, e de Evo Morales, que tinha sido forçado a renunciar pelo Exército e abandonara o país em meio a acusações de fraude. Ambos representam a geração dos “pais fundadores”, governantes que a partir do ano 2000 dominaram a América do Sul, juntamente com Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil, Hugo Chávez na Venezuela e o próprio Correa no Equador. Foi este último que impulsionou Arauz, que parte como favorito para confirmar sua vitória em segundo turno e deixar para trás o período de Lenín Moreno, visto pelo movimento de Correa como um “traidor”. Houve uma substituição de nomes, algo que em parte é também geracional. Mas, ao mesmo tempo, esses líderes souberam tirar proveito dos erros de seus adversários.
“Para começar, a esquerda teve de se reorganizar depois de um período de Governo no qual foi cooptada por elementos corruptos. E não falo só de Correa e do ex-vice-presidente equatoriano Jorge Glas [detido por envolvimento no caso Odebrecht], mas também do Brasil e da Argentina. A esquerda está tentando se reacomodar depois de uma etapa em que os eleitores a rejeitaram, e agora soube aproveitar os erros do establishment”, aponta Sergio Guzmán, diretor da consultoria Colombia Risk Analysis. “Procuraram convencer os eleitores com a ideia contrafactual de que, se tivessem estado no comando do país em meio à pandemia, teriam se saído melhor.”
O triunfo do peronismo na Argentina sacudiu o tabuleiro sul-americano, até então dominado por um eixo conservador liderado por Brasil, Chile e Colômbia. O kirchnerismo emergiu do movimento fundado por Juan Domingo Perón nos anos 1940, que reúne tendências de esquerda, grupos sindicais conservadores e setores de ultradireita. Com os Kirchner, começou em 2003 o período do “peronismo progressista”, interrompido por Macri em 2015. Nesta segunda etapa, Fernández deve atuar como equilibrista entre as tensões históricas do movimento, situando-se em um centro moderado no setor econômico e progressista no campo social, com a lei do aborto aprovada em dezembro como bandeira desse jogo de ambivalência.
Fernández é um líder de mais de 60 anos, com uma longa trajetória na política, mas o peronismo de esquerda já aposta em figuras mais jovens, como o governador da província de Buenos Aires, Axel Kicillof, de 49 anos. O distrito mais rico e povoado do país é um campo minado para as figuras em ascensão, mas o ex-ministro da Economia da Cristina Kirchner tem confiança de que se sairá bem. Duas coisas serão fundamentais: o resultado das eleições legislativas de outubro, um termômetro de qualquer gestão com aspirações presidenciais, e a capacidade de controlar os estragos da pandemia.
“Dá a impressão de que na região há uma nova oportunidade para as esquerdas, no plural”, diz Gilberto Aranda, acadêmico na Universidade do Chile. “Mas não acho que estejamos em um ciclo como o que começou em 2000. O projeto da esquerda continua sendo o da justiça social, algo muito necessário nesta parte do mundo, mas ela tem um calcanhar de Aquiles ancorado em figuras eternas. Ela precisa entender que soma mais possibilidades se tiver uma renovação real de lideranças, que os novos líderes não são escolhidos a dedo”, diz Aranda. “Arce venceu na Bolívia com o apoio desse primeiro alento institucional que é Evo Morales, mas diferenciando-se dele. A esquerda hiperpresidencialista deve ouvir as bases, deve ir de baixo para cima e entender que as pessoas estão cansadas das vantagens e das corrupção da política.”
A indignação estruturou, por exemplo, o discurso de Verónika Mendoza, candidata do partido Juntos pelo Peru à presidência nas eleições de 11 de abril, que coincidirão com o segundo turno no Equador e com a eleição da Assembleia Constituinte no Chile. Essa mesma linha caracteriza também o ex-candidato presidencial e líder opositor colombiano Gustavo Petro, que pretende voltar a se candidatar nas eleições de 2022. A diferença entre os dois é que Mendoza, de 40 anos, tem potencial de crescimento —o jornal La República a situou entre os três favoritos—, apesar de estar há uma década na linha de frente da política, enquanto Petro, ex-guerrilheiro do extinto M-19 e senador, já demonstrou em 2018 que não conseguiu convencer os setores de centro necessários para ser eleito em segundo turno.
O caso da Venezuela nem mesmo se enquadra no ressurgimento de um eixo progressista. Se o falecido ex-presidente Hugo Chávez foi um símbolo, apesar de todas as críticas, da primeira onda de uma revolução bolivariana, seu sucessor, Nicolás Maduro, transformou esse projeto em uma catástrofe de gestão econômica, crise institucional e emergência social.
A Argentina abriu imediatamente os braços para a Bolívia, e Fernández fez campanha por Arauz. Também há uma tentativa de formalizar um eixo Buenos Aires−Cidade do México, que até agora não se concretizou totalmente. Já o Brasil se fortalece como a grande exceção à guinada esquerdista, com o radical Jair Bolsonaro firme nas pesquisas. O fato de Guilherme Boulos ter conseguido disputar o segundo turno das eleições para prefeito de São Paulo, a cidade mais rica da América Latina, no ano passado foi a coisa mais empolgante que ocorreu com a esquerda brasileira desde que o ultradireitista Bolsonaro chegou à Presidência. Os progressistas ainda não se recuperaram dos golpes devastadores que significaram a destituição de Dilma Rousseff e a prisão do ex-presidente Lula. Embora o Partido dos Trabalhadores (PT) tenha a maior bancada parlamentar e conserve força organizacional, ele ainda é muito odiado. A esquerda não conseguiu encontrar seu lugar nem sua voz em um Brasil que girou claramente para a direita.
Três nomes se destacam, velhos conhecidos no país: Boulos, dirigente do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), uma pequena cisão do PT que vem ganhando adeptos; Fernando Haddad, do PT, hegemônico durante duas décadas; e Ciro Gomes, membro de um clã político do Ceará e rosto visível do Partido Democrático Trabalhista (PDT). Os três foram candidatos a presidente, mas nenhum ocupa atualmente um cargo público que garanta espaço no debate nacional.
Faltando mais de um ano e meio para as próximas eleições, o panorama da esquerda e da oposição a Bolsonaro em geral ainda é muito volátil. As únicas certezas, neste momento, são que o presidente vai se candidatar à reeleição (já anunciou isso), que ele mantém o apoio inabalável de um terço do eleitorado e que as tentativas de forjar uma frente que vá da esquerda até a centro-direita não se concretizaram. Um anúncio feito dias atrás por Lula, tão carismático quanto detestado, prejudicou o ambiente na esquerda. Como o Supremo Tribunal Federal ainda não decidiu se restaura seus direitos políticos, o ex-presidente designou Haddad como candidato do PT para as eleições presidenciais de 2022, caso ele próprio não possa concorrer. Boulos recebeu a decisão como um soco no estômago. “Defendo que a esquerda busque unidade para enfrentar Bolsonaro. Para isso, antes de lançar nomes, devemos discutir o projeto”, disparou em um tuíte o mais jovem do trio.
Mesmo sob a sombra de Lula, Haddad é o que tem a maior projeção nacional, algo importante em um país tão grande como o Brasil, onde as dinâmicas políticas são frequentemente locais. O candidato do PT —que, com 45% dos votos, foi derrotado por Bolsonaro há dois anos— vai parar de lecionar na universidade para se concentrar nas eleições. Boulos, cujo partido é pequeno, está bastante focado nas redes sociais, na ausência de um trampolim para ganhar espaço na política nacional. O PDT de Gomes melhorou seu resultado nas últimas eleições municipais, que afundaram ainda mais o PT. O pedetista tem projeção nacional porque foi governador do Ceará e ministro durante o Governo do PT, e grande captador de votos em sua terra. No segundo turno de 2018, não apoiou o PT nem mesmo para frear Bolsonaro.
Os perfis da esquerda latino-americana
Andrés Arauz
Fez 36 anos na véspera das eleições de 7 de fevereiro. Este economista nascido na Quito é ligado há anos ao ex-presidente Rafael Correa. Foi ministro do Conhecimento e Talento Humano na última etapa do mandato de Correa e, depois da vitória de Lenín Moreno, em 2017, foi fazer doutorado em Economia Financeira na Universidade Nacional Autônoma do México. Assim como Correa, formou-se nos Estados Unidos. Depois, trabalhou como diretor no Banco Central do Equador. Em agosto, candidatou-se à presidência impulsionado pelo aparato do ex-mandatário, que está inabilitado para disputar eleições e reside na Bélgica.
Andrés Manuel López Obrador (Morena)
O presidente mexicano nasceu há 67 anos no Estado de Tabasco. Militou durante anos no Partido Revolucionário Institucional (PRI), que ele abandonou depois para ingressar no Partido da Revolução Democrática (PRD) − sigla que o abrigou até a campanha presidencial de 2012, quando criou o Movimento Regeneração Nacional (Morena). Líder moral da esquerda mexicana durante décadas, López Obrador conquistou a presidência na terceira tentativa. Em 2006, ficou a poucos milhares de votos da poltrona presidencial. Ele denunciou fraude e se proclamou “presidente legítimo”. Em 2012, a fotogenia de Enrique Peña Nieto superou todas as tentativas da esquerda e levou o PRI de volta ao poder. E em 2018, finalmente, com o país mergulhado na pior crise de segurança de sua história moderna, foi eleito presidente.
Claudia Sheinbaum (Morena)
Formada em Física, doutora em Engenharia e Energia, a chefa de Governo (prefeita) da Cidade do México está ligada ao projeto do presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, há duas décadas, quando assumiu o cargo de secretária do Meio Ambiente da capital. Sheinbaum tem 58 anos e se formou em seu país e nos Estados Unidos. Integrou um grupo intergovernamental de especialistas sobre mudança climática que recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 2007. Foi consultora do Banco Mundial e das Nações Unidas. Em 2018, ganhou as eleições locais e comandará a maior cidade de língua espanhola até 2024.
Alberto Fernández (Frente de Todos – peronismo)
O presidente argentino nasceu na cidade de Buenos Aires há 61 anos. Foi chefe do Gabinete de Ministros dos Governos de Néstor e Cristina Kirchner. Sua renúncia ao cargo em 2008 o transformou em um duro oposicionista, a tal ponto que hoje fervilham nas redes as críticas implacáveis que fez do kirchnerismo, o movimento que em maio de 2019 o acolheria novamente em suas fileiras como candidato a presidente. Fernández dividia seu tempo entre a política, sua profissão de advogado e seu trabalho como acadêmico na Universidade de Buenos Aires. Hoje, garante que sua relação com Cristina Kirchner, sua vice-presidenta e mentora política, é indissolúvel.
Axel Kicillof (Frente de Todos – peronismo)
Axel Kicillof nasceu em Buenos Aires e tem 49 anos. Economista de formação, foi ministro da Fazenda durante o último governo de Cristina Fernández de Kirchner. Em 2019, ganhou as eleições para governador da província de Buenos Aires, a mais rica e populosa do país. É considerado integrante do círculo mais próximo à ex-presidenta e representa o setor mais à esquerda do peronismo.
Luis Arce (Movimento ao Socialismo − MAS)
O economista de 57 anos nascido em La Paz, ganhou destaque na Bolívia como ministro da Economia de Evo Morales, cargo que ocupou durante mais de uma década. Foi o principal propulsor das finanças do país andino, aproveitando uma alta dos preços das matérias-primas. Estudou em La Paz e no Reino Unido e tem uma longa trajetória como funcionário público. Trabalhou no Banco Central da Bolívia, onde chegou a ocupar cargos de direção. Candidato a presidente em 2020 pelo Movimento ao Socialismo (MAS), ganhou as eleições no primeiro turno, em outubro, 11 meses depois da renúncia e saída de Morales do país.
Gustavo Petro (Colômbia Humana)
O ex-candidato presidencial e senador nasceu em Ciénaga de Oro, no interior da costa caribenha da Colômbia, e tem 60 anos. Nos anos oitenta, foi militante da organização guerrilheira Movimento 19 de abril (M-19), desmobilizada em 1990. Foi senador do Polo Democrático Alternativo e, depois, da Colômbia Humana. É o líder de esquerda mais visível da Colômbia. Em 2018, candidatou-se à presidência e chegou ao segundo turno, obtendo um resultado histórico para esse setor político, com mais de oito milhões de votos, embora essa votação tenha sido insuficiente para desbancar o atual mandatário, Iván Duque.
Verónika Mendoza (Juntos pelo Peru)
Tem 40 anos. Nasceu no distrito de Santiago, na região peruana de Cusco. Em Paris, estudou Psicologia e se formou em Ciências Sociais. Foi professora de espanhol e, no Peru, trabalhou como pesquisadora, consultora e docente, segundo a agência oficial Andina. Foi eleita para o Congresso da República em 2011. Concorreu pela frente nacionalista Ganha Peru, mas um ano depois saiu dessa aliança. Em 2016, disputou as eleições presidenciais pela Frente Ampla.
Fernando Haddad (Partido dos Trabalhadores - PT)
Nasceu na cidade de São Paulo, da qual foi prefeito, e tem 58 anos. Participou do Governo do PT como ministro da Educação. Quando o Supremo Tribunal Federal vetou em 2018 a candidatura eleitoral de Lula, este o escolheu como cabeça de chapa. Depois da derrota, voltou a dar aulas em uma universidade paulistana, trabalho do qual se afastará para mergulhar novamente na corrida eleitoral, de olho em 2022.
Ciro Gomes (Partido Democrático Trabalhista - PDT)
Tem 63 anos, nasceu na cidade paulista de Pindamonhangaba e é o vice-presidente nacional do PDT. Professor de direito na juventude, ficou em terceiro lugar nas eleições presidenciais de 2018. Já foi quase tudo na política: deputado estadual, prefeito de Fortaleza, governador do Ceará, ministro da Fazenda e Integração Nacional e deputado federal sob diferentes Governos. O clã político dos Gomes inclui seu irmão Ivo, prefeito, e contou com o pai e o tio de ambos. Foi pesquisador visitante na faculdade de direito de Harvard.
Guilherme Boulos (Partido Socialismo e Liberdade - PSOL)
Tem 38 anos e nasceu em São Paulo. Lidera o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (o equivalente urbano do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Formado em Filosofia e Psicologia Clínica, este ativista, que disputou as eleições presidenciais de 2018 sem chance de vitória segundo as pesquisas, surpreendeu no ano passado ao chegar ao segundo turno das eleições municipais em São Paulo, após atrair muitos eleitores tradicionais do PT na cidade. Mas agora lhe faz falta um alto-falante potente além das redes sociais, onde é referência da esquerda.
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