Futebol ignora auge da pandemia e campeonatos continuam sob protestos de médicos e treinadores: “A covid-19 é um rival que mata”
“Manter o esporte passa uma imagem de que o vírus não é sério. As pessoas não têm a dimensão do risco”, opina infectologista. Final da Copa do Brasil segue marcada para domingo, em São Paulo, e deve provocar aglomerações de torcedores do lado de fora
Era só para ser uma entrevista protocolar antes de um jogo do campeonato mineiro, mas Lisca, treinador do América, se permitiu falar sobre muito mais. “É quase inacreditável que saiu uma tabela da Copa do Brasil. [Um torneio com] 80 clubes, com delegações de 30 pessoas, que vamos ficar levando de um lado para outro do país. O país parou, gente. Não tem lugar nos hospitais. Eu estou perdendo amigos, amigos treinadores. É hora de segurar a vida, velho. Pelo amor de Deus, nós estamos apavorados”, desabafou. O discurso do treinador viralizou nas redes sociais e foi compartilhado até por João Gabbardo, ex-secretário do Ministério da Saúde e coordenador-executivo do Centro de Contingência do Governo de São Paulo ―o Estado não paralisou os jogos tampouco.
Aviso aos leitores: o EL PAÍS mantém abertas as informações essenciais sobre o coronavírus durante a crise. Se você quer apoiar nosso jornalismo, clique aqui para assinar.
O apelo de Lisca, direcionado nominalmente a “CBF, presidente Rogério Cabloco e [treinador da seleção brasileira] Tite”, tem como alvo a divulgação nesta quarta-feira (3) da tabela da Copa do Brasil 2021, a maior competição de futebol nacional que prevê duelos entre times de todo o país. O América, por exemplo, sairá de Belo Horizonte para enfrentar o Treze da Paraíba. O torneio não é o único em andamento no país. A bola também rola em campeonatos estaduais em todas as regiões e na edição 2020 da Copa do Brasil, que tem sua decisão marcada para o próximo domingo (7). O futebol, que congelou nos primeiros meses de pandemia, não para no momento em que o recorde de mortes por dia, as UTIs lotadas e as novas variantes marcam o auge do coronavírus no Brasil.
Graças ao atribulado calendário do Palmeiras no fim da temporada 2020 —que chegou nos primeiros meses de 2021—, a final da Copa do Brasil do ano passado ficou para o dia 7 de março, no Allianz Parque, em São Paulo. Os dois adversários, Palmeiras e Grêmio, representam duas capitais que estão na fase mais restrita da quarentena, onde só serviços essenciais devem abrir. “Como palmeirense, gostaria de ver a final no domingo. Mas, como cidadã e médica, não há a menor possibilidade. As pessoas não têm a dimensão do risco que isso pode causar ao resto da população”, opina Rosana Richtmann, médica infectologista do Hospital Emílio Ribas, na capital paulista. “É um risco para as delegações dos times, certamente vai causar aglomerações que a vigilância não dá conta e é um exemplo ruim. [Manter os campeonatos] passa a imagem para a população de que o vírus não é tão sério”, completa.
Antes da final, o Palmeiras entrou em campo nesta quarta, contra o Corinthians, no mesmo dia em que o Governo de João Doria anunciou que todo o Estado de São Paulo iria para a fase vermelha, a mais restrita do lockdown. Antes do jogo, um surto desfalcou os corinthianos: foram 19 testes positivos no elenco antes do dérbi. “Temo um surto [de coronavírus no Palmeiras]”, afirmou o treinador palmeirense Abel Ferreira, após o jogo na Neo Química Arena. “Quando cheguei aqui, fiquei espantado. Na Europa tivemos dois lockdowns, que era só ficar em casa. Quando cheguei aqui vi que, de fato, as regras tinham que ser mais rígidas. Assusta a quantidade de mortos. Eu sou apaixonado pelo futebol, mas futebol sem vida não é nada. A covid-19 é um rival que mata”, afirmou o português em coletiva, corroborando com o que o colega Lisca disse horas antes.
Entre treinadores e jogadores dos 20 clubes que jogaram o Brasileirão 2020 foram registrados 320 casos positivos de coronavírus desde o início da pandemia. Renê Weber, que trabalhou como auxiliar no Botafogo, e Jorginho, massagista do Flamengo, morreram com a doença e não entraram no levantamento. Treinadores como Cuca, Vanderlei Luxemburgo, Enderson Moreira e Eduardo Barroca foram internados. E, fora da elite, Marcelo Veiga (treinava o São Bernardo) e Ruy Scarpino, que era técnicos do Amazonas até esta quarta, morreram por complicações da covid-19. “O que acontece no futebol está em sintonia com o que acontece nos hospitais. É o país no mundo que mais tem transmissão do vírus neste momento”, contextualiza Hélio Bacha, consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI). O mesmo Lisca foi criticado por se aglomerar com torcedores para comemorar uma vitória do América, em novembro.
O recado que o técnico Lisca tem para passar é muito importante para todo mundo.
— América FC ✊🏿 (@AmericaMG) March 4, 2021
Ainda estamos em uma época de pandemia e os números crescem cada vez mais. É necessário termos consciência, nos precaver para cuidar de todos.
Proteja-se e, juntos, vamos vencer a pandemia. pic.twitter.com/IcenVfyE0N
Richtmann lembra que a possibilidade de reinfecção é ainda maior com a nova variante do vírus, já detectada em São Paulo. “Jogadores podem até não apresentar o quadro clínico, mas podem transmitir”, lembra. “O futebol não é um ambiente fechado. Precisa parar por umas semanas, precisa ser uma forma de conscientizar a população. E, assim como no ano passado, voltar quando tivermos uma condição sanitária melhor, quando entendermos mais a variante, quando tivermos mais gente vacinada”, recomenda.
Treinador do Grêmio e apoiador público do Governo de Jair Bolsonaro, Renato Gaúcho foi outro que falou sobre a paralisação do futebol, mas colocando um contraponto às opiniões de Lisca e Abel Ferreira. “Eu quero deixar claro que o futebol é o local mais seguro. Estamos fazendo um favor ao povo porque, quando jogamos, é um motivo para o torcedor ficar em casa”, defendeu. Os argumentos batem com os apresentados pelo médico José Medina, colega de João Gabbardo no Centro de Contingência de Doria, quando perguntado sobre a continuidade do futebol na fase mais restrita da quarentena. “É uma atividade bastante controlada, e [deve continuar] até porque a população precisa de algum tipo de entretenimento”, respondeu. Quando o futebol voltou da paralisação pela pandemia em São Paulo, em julho de 2020, jogos só eram permitidos em regiões do Estado que estivessem na fase amarela, a terceira do lockdown paulista. Agora, o Paulistão continua com o Estado todo na etapa vermelha.
“Se quer entretenimento, assiste à reprise dos jogos da Copa do Mundo de 70. ‘Preciso ir num show, preciso ir na igreja’... isso é conversa. Não é a hora disso”, critica Bacha. “Eu concordo com a importância do entretenimento, ainda mais tão democrático como o futebol. Se fosse possível as pessoas entenderem que, acabado o jogo, você desliga a TV e comemora em casa, eu entenderia. Mas sabemos que isso fica só na teoria”, completa Richtmann. Para a infectologista, a mesma lógica precisa ser aplicada para outros esportes, ainda que menos populares e menos passionais dentro do contexto brasileiro. “Outros esportes devem ter menos recursos para fazer testagem e seguir protocolos. Fica mais complicado ainda. A regra tem que ser a mesma”, conclui.
Apoie a produção de notícias como esta. Assine o EL PAÍS por 30 dias por 1 US$
Clique aquiNesta semana, as federações estaduais do Paraná e de Santa Catarina anunciaram a suspensão temporária dos seus campeonatos estaduais pelos próximos 15 dias. Nenhuma outra federação ou CBF, até agora, paralisaram seus torneios. A final da Copa do Brasil segue agendada para domingo, às 18h (horário de Brasília). Nesta sexta (5), o treinador Tite convoca a seleção brasileira, com jogadores de várias partes do mundo, para enfrentar a Colômbia em Bogotá (26 de março) e a Argentina no Recife (30 de março), pelas Eliminatórias da Copa do Mundo.
Siga a cobertura em tempo real da crise da covid-19 e acompanhe a evolução da pandemia no Brasil. Assine nossa newsletter diária para receber as últimas notícias e análises no e-mail.
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.