Assédio sexual, estupro e racismo, a onda de denúncias que furou a bolha tóxica dos gamers
Exposição de assediadores acende alerta sobre a banalização de abusos na comunidade gamer, que se mobiliza para deter comportamentos sexistas e discriminatórios
O que antes era um mero passatempo tecnológico para os jovens, hoje se converteu em uma indústria que movimenta mais de 1 bilhão de dólares por ano no Brasil, com direito a equipes, jogadores, torneios e transmissões profissionais. Por trás do cenário virtuoso dos jogos eletrônicos, porém, se camufla uma bolha habituada a normalizar assédios, atitudes sexistas, objetificação de mulheres e racismo. O comportamento tóxico de parte da comunidade gamer acabou exposto no início deste ano a partir de uma série de denúncias de violência sexual contra figuras reconhecidas do meio.
Tudo começou com o depoimento da tatuadora Daniela Li, que contou em suas redes sociais como o ex-técnico do Flamengo no jogo League of Legends (LoL) e narrador de e-sports, Gabriel “MiT” Souza, tentou forçá-la a fazer sexo oral em meados de 2015. “Do nada, ele simplesmente tirou o pau pra fora. Empurrou e segurou minha cabeça no pau dele, mesmo sabendo que eu não queria”, relatou Li. “As sequelas que eu tenho disso vão ficar comigo a vida toda. Meus choros, minhas crises de ansiedade, minhas insônias, meu medo de sair sozinha quando conheço alguém.” Antes do exposed, ela já havia comentado sobre o caso com pessoas próximas e descobriu que outras mulheres tinham sido vítimas de ataques semelhantes praticados por MiT.
Sua postagem, então, recebeu uma avalanche de respostas com mais relatos de abusos. Entre as mulheres que o denunciaram, duas delas foram assediadas e fisicamente agredidas no começo de 2020, contradizendo uma nota oficial divulgada pelo gamer, em que ele alega vivenciar um processo de desconstrução nos últimos anos. “Muito tempo decorreu para quem se sentiu ferida perceber que ali havia algo que não a fez bem. Estou devastado e envergonhado por não ter percebido que machuquei alguém tão profundamente. Não compactuo com abuso, qualquer que seja. Deixo nesta nota meus profundos sentimentos por qualquer ferida que eu possa ter causado a qualquer pessoa”, desculpou-se o ex-técnico, de 29 anos, sem endereçar a resposta a uma vítima específica. MiT foi banido da plataforma de streaming [transmissão de vídeos ao vivo] Twich e afastado pela Riot Games, empresa norte-americana de jogos, do elenco de apresentadores do Campeonato Brasileiro de LoL.
Pelo menos 15 gamers, entre jogadores e produtores de conteúdo, são apontados como agressores sexuais. Um dos mais conhecidos é Guilherme “Kake” Braga, treinador do time Academy de LoL do Flamengo. Ele foi exposto por chantagear adolescentes entre 15 e 18 anos, ameaçando de expulsão da equipe os que se recusavam a lhe enviar nudes. Kake acabou demitido pelo Flamengo. “É importante repudiar qualquer tipo de assédio. Não só nos esportes eletrônicos, mas na sociedade”, comunicou o departamento de e-sports do clube. O treinador desativou suas redes sociais e não foi localizado pela reportagem.
Já Filipe “pancc” Martins, de 22 anos, jogador de Counter-Strike, reconheceu ter solicitado fotos sensuais a uma garota de 15 anos, a quem ainda teria pedido para fazer sexo por meio de trocas de mensagens. “Eu errei feio, esse tipo de coisa não se faz. Eu queria muito pedir desculpa pra vocês, pras pessoas que eu gosto e vão ficar chateadas comigo. Eu estou tentando melhorar e ser uma pessoa melhor, saber me portar como alguém maduro”, pronunciou-se Martins. A yng Sharks Esports, equipe de pancc, anunciou a suspensão do jogador, condicionada à obrigatoriedade de passar por tratamento médico por um período de quatro a seis meses, além de redução salarial enquanto vigorar a punição. “Uma sanção deve ter, acima de tudo, um caráter pedagógico e se tornar exemplo para a sociedade”, informa a equipe portuguesa, que se compromete a rescindir o contrato caso Martins não demonstre interesse em cumprir o plano de reeducação ao longo do tratamento.
Após a série de denúncias, personalidades influentes do meio manifestaram solidariedade às mulheres e criticaram o comportamento dos gamers expostos. “Queria dizer às vítimas que vocês não devem justificar nada nem se sentir culpadas ou erradas por algo que aconteceu. Aos abusadores, que a justiça seja feita”, publicou o streamer Alexandre Gaules, que tem mais de 1 milhão de seguidores nas redes sociais. Felipe Gonçalves, o brTT, também se posicionou ao ser cobrado por causa da amizade com MiT. “Comunidade de League of Legends tá um lixo, um completo lixo. Isso aqui já foi a comunidade mais linda que existiu. Hoje usam de um crime pra passar pano em outro, e tão comemorando, tão aplaudindo”, postou o jogador ao admitir sua cota de contribuição para propagar intolerância, agressividade e preconceito. “Eu me responsabilizo completamente por ter contribuído pra isso, eu errei pra caralho. Já fui extremamente tóxico, um completo babaca.”
Cultura tóxica ainda impõe barreira a minorias
Uma das mulheres que denunciou episódios de assédio e abuso sexual contra um streamer diz ter recebido notificação extrajudicial para retirar do ar as postagens em que expõe seu suposto agressor. Como a tentativa de estupro teria ocorrido há mais de três anos, ela desistiu de levar o caso à Justiça por não ter reunido provas nem prestado queixa na época. “Eu fiquei muito traumatizada, sem saber como reagir quando tudo aconteceu”, recorda. “Agora, fui aconselhada por amigos a apagar os posts, já que podem acabar me transformando em culpada pela agressão que sofri. Meu intuito não é de vingança, mas apenas mostrar como o nosso meio destrata a figura feminina.”
Para mulheres, sofrer ataques misóginos faz parte da rotina no universo dos games. “A mulher tem que conquistar espaço na comunidade geek e gamer na base da resistência. Ainda é uma área muito machista”, afirma a youtuber Míriam Castro, 26, mais conhecida na internet como Mikannn. “Não é todo mundo, mas existe uma parte bastante vocal da comunidade gamer que nos persegue. Já foi pior, quando ainda éramos exceções. Felizmente, nos últimos anos, temos visto mais mulheres no meio”, conta a produtora de conteúdo, que começou a trabalhar com games em 2013.
Há dois anos, ela ajudou a puxar a campanha #SouMulherSouGamer nas redes sociais, que coletou relatos de centenas de mulheres vítimas de constrangimentos machistas. “Enquanto a gente joga, é comum surgirem contas falsas assediando, mandando xingamento ou até mesmo fotos de pênis. Nos jogos em equipe, ao usar o microfone e revelar voz de mulher, corremos risco de arruinar nossas chances de ganhar por causa do preconceito. Teve uma vez, por exemplo, que um jogador viu meu nome de usuário (mikannn) e perguntou se eu tinha pênis ou vagina”, diz Míriam. Ela explica que, frequentemente, sofre intimidações de outros jogadores para exibir sua “carteirinha gamer”, uma espécie de passaporte que identifica o trajeto de cada usuário no jogo, como se precisasse do aval masculino para se integrar à comunidade.
Não raro, homens sugerem às mulheres que coloquem o chat e o microfone no mudo, além de se identificarem com nickname masculino, para evitar assédios na rede. “Queria jogar Valorant (game de tiro em equipe) sozinha sem ser chamada de vagabunda”, desabafou Daniela Li após expor o abuso que sofreu de MiT. De acordo com Mikannn, a onda mais recente de denúncias contra gamers notórios não é exatamente uma surpresa para quem conhece o ecossistema. “Apesar de hoje termos mais mulheres com visibilidade, elas continuam muito vulneráveis. Os jogadores profissionais são fruto desse meio permissivo com o machismo. A fama faz com que pensem que podem tudo. Não aprendem a lidar com a mulher de um jeito que não seja agressivo.”
Além do machismo, a tolerância ao racismo também tem sido alvo de embates na comunidade gamer. No começo de janeiro, o jogador de Fortnite, Orlando “kirito” Rodrigues, foi expulso da equipe norte-americana TRNL Gaming devido a injúria racial cometida durante uma live. “Chama a mãe dele de macaca”, escreveu ao se irritar com um oponente. “Queria pedir uma segunda chance de provar com o tempo que não sou assim. Sei que geral vai me odiar e eu entendo. Já estou pagando pelos meus erros e vou repensar minhas atitudes”, publicou kirito depois de sua equipe anunciar a demissão.
No ano passado, um escândalo racista já havia sacudido o circuito dos e-games. Publicações e comentários discriminatórios do canal Xbox Mil Grau, um dos mais populares sobre a plataforma da Microsoft, foram resgatados por seguidores. Uma mobilização nas redes, que envolveu inclusive o movimento Sleeping Giants, conseguiu desmonetizar o canal através da retirada de publicidade. A Microsoft impediu que os administradores continuassem usando a marca Xbox no nome. Por fim, diante de recorrentes manifestações racistas, o canal acabou banido do Youtube e da Twitch, plataforma que, em maio de 2020, já havia suspendido a conta de Renan Bolsonaro, filho do presidente Jair Bolsonaro, por violar suas políticas de conduta de ódio durante transmissões.
“Minorias costumam ser repelidas e perseguidas no ambiente dos gamers”, diz Míriam Castro. Para a youtuber, reações de empresas e equipes ao punir agressores e iniciativas como o Wakanda Streamers, coletivo que luta pela inclusão de pessoas negras na cena dos games, são reflexos positivos dos avanços em termos de representatividade. Porém, ela julga necessária uma ação mais proativa das plataformas, principalmente na moderação de comentários com teor discriminatório em chats e lives. “Marcas, consoles e canais de streaming podem oferecer um serviço melhor e mais seguro para pessoas negras, LGBTs e mulheres, ampliando seu público. Por muito tempo, empresas endossaram comunidades supertóxicas e afastaram vários consumidores dos seus jogos. As coisas estão mudando, e essa permissividade já não é mais sustentável.”
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