Michael Jordan e Pelé evitaram o ativismo, mas foram enormes agentes políticos
Apesar das críticas por falta de engajamento em movimentos negros, as lendas do esporte se eternizaram como símbolos incontestáveis de representatividade para várias gerações
Eles não são somente as máximas referências em suas respectivas modalidades, mas também, até que a história canonize os mitos do presente, as maiores lendas do esporte mundial. Este ano, ambos voltaram aos holofotes por motivos diferentes. Michael Jordan, astro do basquete, pelo documentário The Last Dance (Arremesso Final), lançado em abril. Pelé, o Rei do Futebol, por seu aniversário de 80 anos, comemorado nesta sexta-feira. Em comum, além das carreiras gloriosas nas quadras e nos campos, uma pecha que os atinge por igual, criticados por se esquivarem de posicionamentos políticos e do engajamento em movimentos negros.
Na série documental disponível no Netflix, um dos episódios se aprofunda na relação de Jordan com a política. Em 1990, quando ainda não havia se sagrado campeão da NBA pelo Chicago Bulls, ele foi publicamente cobrado por lideranças negras para que declarasse apoio à candidatura de Harvey Gantt ao Senado. O democrata tentava ser o primeiro negro a ocupar o cargo pela Carolina do Norte, onde Jordan se formou, em disputa com o republicano e conservador Jesse Helms, reconhecido por declarações e propostas racistas. A estrela do basquete doou para a campanha, mas jamais se pronunciou a favor de Gantt, que perdeu duas eleições para Helms.
Para justificar a neutralidade, Jordan fez uma brincadeira com companheiros de time, dizendo que “republicanos também compram tênis”, em alusão aos produtos licenciados com seu nome que já eram sucesso de vendas da Nike. No documentário, o ex-jogador argumentou não ter vocação para o papel de militante político. “Eu não me via como ativista. Só queria praticar meu esporte, estava focado no meu trabalho. Fui egoísta? Provavelmente. Mas essa era minha energia, era daí que ela vinha.” Ao longo de toda a carreira, manteve-se fiel ao princípio de não se envolver em causas políticas. “Todos têm uma ideia preconcebida em termos do que acham que eu devo ou não fazer. Vivo dando exemplos em minha vida. Se isso te inspira, ótimo, continuarei assim. Se não te inspirar, talvez eu não seja o ídolo que você deveria seguir.”
Pelé, por sua vez, não se omitia em falar sobre política. Porém, sempre foi resistente em levantar bandeira contra o racismo ou a fazer campanha para movimentos antirracistas, apesar da discriminação que sofreu nos gramados. “Me chamavam de negro, crioulo, macaco, mas eu não ligava”, conta. “Eu prefiro dar exemplos. Para a família, os amigos e os fãs. Essa é minha luta.” O Rei também costuma sofrer com críticos que lembram de seu endosso velado ao regime militar no Brasil. Em eventos da seleção, o craque posou para fotos e reverenciou generais como Emílio Garrastazu Médici, presidente no período mais repressor da ditadura.
Já na época das Diretas Já, ele manifestou apoio à redemocratização, negando que tivesse servido como garoto-propaganda dos ditadores. “Cumprimentar um presidente era um gesto pessoal. Não significava apoiar a ditadura”, relativizaria Pelé, que chegou a ser investigado pelos militares por suspeita de colaborar com grupos de esquerda, após parar de jogar. Ele tinha consciência de que o regime usava sua imagem e a de colegas de equipe, mas preferiu não afrontar o comando ditatorial, que havia fincado raízes dentro das federações, dos clubes e da própria seleção. “É difícil evitar um presidente, por exemplo, como o [Ernesto] Geisel e o Médici. Eu cedia porque, na minha posição, você tem de fazer concessões.” Após a retomada da democracia, foi ministro do Esporte de Fernando Henrique Cardoso e ajudou a aprovar a Lei Pelé, que regulamentou as relações trabalhistas no futebol.
Embora tenham evitado o ativismo, tanto Pelé quanto Michael Jordan foram enormes agentes políticos. Pelo que representaram e pelo que influenciaram como homens negros em evidência social. Nos Estados Unidos, o ex-jogador de basquete se consolidou como um fenômeno cultural, que mobilizou gerações principalmente depois de estrelar a campanha publicitária Be Like Mike, em que se vendia como o exemplo a ser seguido pelos jovens do país. Tamanha era sua influência que, na década de 90, era difícil encontrar alguém —democrata ou republicano— que não se inspirasse no astro.
Como Barack Obama, o primeiro presidente negro dos EUA, que participa do documentário The Last Dance e diz ter se decepcionado com a falta de posicionamentos do ídolo, mas nunca deixou de admirá-lo por isso. Um de seus últimos atos na presidência foi entregar uma medalha de condecoração a Jordan, homenageado com um tocante discurso na Casa Branca. “Existe um motivo pelo qual chamamos alguém de ‘O Michael Jordan de alguma coisa’. Ele é o Michael Jordan da excelência, a definição de alguém tão bom no que faz, que todo mundo reconhece. Isso é meio raro”, resumiu Obama, que, tal qual o atleta, se revelou para o mundo em Chicago.
De forma semelhante, no Brasil, ainda é comum se referir a alguém tão bom no que faz como o “Pelé de alguma coisa” ou ouvir, ao se apresentar como brasileiro no exterior, a imediata correlação “Brasil, Pelé!”. Em um país profundamente marcado pelas sequelas da escravidão, sobretudo nos tempos em que Pelé explodiu como craque precoce, era impensável que o planeta, de uma hora para outra, aclamasse um rei negro. O rosto de Edson Arantes do Nascimento estampado nas primeiras páginas dos jornais significou, para muitos negros que o viram jogar, a esperança de ascensão social, de enxergar um semelhante no posto de ídolo da nação.
Como bem explica o advogado e filósofo Silvio Almeida, o simples fato de se sentir representado por Pelé ajudou a dar perspectivas à parcela majoritária da população brasileira que, até então, jamais havia observado nada parecido. “Quando era criança, a única coisa que me fazia acreditar que eu teria alguma chance neste país era ver na TV a imagem daquele homem negro, retinto como eu sou, com o punho cerrado para o alto e o número 10 estampado nas costas”, recorda Almeida, uma das maiores referências contemporâneas do movimento negro. “Devo muito do que sou em termos materiais, intelectuais e emocionais ao futebol. E isso também tem a ver com Pelé, com o Rei.”
Mesmo sem adotar discursos combativos, tampouco aderir à militância antirracista, Michael Jordan e Pelé contribuíram, se não para mudar a maneira como as pessoas negras são vistas, ao menos para que elas se percebessem diante de um novo espelho. E isso tem um peso imensurável. Obviamente, a dupla seria ainda maior caso tivesse assumido atitudes mais incisivas na luta contra o racismo como hoje o fazem Lebron James, herdeiro do trono na NBA, e o piloto da Fórmula 1, Lewis Hamilton. No entanto, o esporte atual só os assimila como atores políticos porque, no passado, outros, como Jordan e Pelé, ajudaram a romper a barreira que inviabilizava o protagonismo negro em qualquer área.
Obama traz mais uma constatação precisa para o debate. “Todo afroamericano com sucesso significativo carrega um fardo a mais. Muitas vezes, os EUA aceitam rapidamente um Michael Jordan ou um Barack Obama, desde que não seja polêmico com questões mais amplas de justiça social.” Funciona da mesma forma no Brasil. O negro que se posiciona, que levanta a voz perante o racismo, logo é visto como personalidade problemática, não raro como arrogante. Esportistas que desafiaram as estruturas racistas tiveram a carreira prejudicada ou a reputação em xeque simplesmente por remar em direção contrária à do sistema.
Jordan e Pelé eram e continuam sendo conscientes de seu tamanho. Sabem que a tomada de posição para homens negros não implica apenas em risco econômico, mas em ruptura com um padrão de comportamento que boa parte da sociedade espera deles. Questionar posturas e contradições de figuras públicas faz parte do jogo democrático. Mas é injusto medir os dois maiores atletas da história por suas omissões e falhas pessoais, geralmente utilizadas por oportunistas para destruir a imagem que preservam como ídolos. O racismo não pode apagar o simbolismo nem desmerecer o poder de representatividade das referências negras mais populares do esporte.
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