O desafio econômico de sobreviver à pandemia na América Latina
Além dos mortos, covid-19 deixou outras vítimas na região: milhões de novos pobres e desempregados e negócios fechados. Do México ao Brasil, empresários e trabalhadores contam como fazem para se virar
O dono de quatro restaurantes da Cidade do México que luta junto com seus funcionários para manter o negócio em meio à crise e a restrições; um empreendedor paulistano que decidiu fechar sua academia de cross training no começo da pandemia, por causa das incertezas; uma estudante que financiava a faculdade de direito em Buenos Aires dançando tango para os turistas que já não chegam; um ator que, depois de ficar sem trabalho, somou-se com sua bicicleta à maré laranja de entregadores do aplicativo Rappi em Bogotá e sofreu dois acidentes. Estas são quatro das outras vítimas da crise do coronavírus na América Latina, as causadas não só pelo vírus, mas também pelas medidas destinadas a enfrentar a emergência sanitária. As economias da região estão na UTI: o freio no consumo cotidiano, o fechamento de fronteiras e a queda do turismo mundial estão mandando milhões de latino-americanos para as estatísticas do desemprego ou precarizaram ainda mais seus trabalhos.
Graças à margem de manobra conferida pela chegada tardia da pandemia, muitos Governos foram rápidos na adoção de medidas que buscavam evitar o colapso de suas redes hospitalares. Mas os números mostram que isso afetou de forma profunda e imediata a dinâmica trabalhista habitual, particularmente nos grandes núcleos urbanos.
Diferentemente do que ocorreu na Europa e nos países mais ricos da Ásia, tanto os contágios como as quarentenas na América Latina ocorrem num contexto de elevada vulnerabilidade. Um estudo do estatal Banco de la República, da Colômbia, estima por exemplo que dois terços da perda de empregos nesse país podem ser atribuídos “aos efeitos da propagação da doença e ao choque agregado negativo que a economia sofreu”, enquanto o terço restante seria resultante das restrições. E, numa região com altas taxas de pobreza e informalidade trabalhista, a maioria dos habitantes fica de fora das redes de segurança social.
O economista e ex-ministro colombiano José Antonio Ocampo já fala em uma possível “década perdida” para a América Latina, ao somar os efeitos da crise do coronavírus com os cinco anos anteriores de crescimento fraco, período de retrocesso na grande redução da pobreza registrada no começo da década passada. A solução, aponta, passará por uma aposta dos Governos em mais gastos públicos. “É preciso haver mais dispêndio em saúde, apoio aos lares carentes e vulneráveis e ao emprego. E será necessária uma política para apoiar as pequenas empresas com subsídios de emprego ou créditos dos bancos de desenvolvimento que lhes permitam capitalizar-se durante a reativação”, acrescenta.
Mas, em curto prazo, e com a América Latina ainda no epicentro da pandemia, torna-se fundamental o debate sobre como a economia pode funcionar no dia a dia enquanto a população convive com o vírus. A pergunta é quais são as medidas ideias para que cada lugar minimize ao mesmo tempo o contágio e o impacto nas vidas de milhões de pessoas. A resposta tem necessariamente que passar por ouvir as histórias dos trabalhadores e empresários que tratam de sobreviver em meio à crise. Estas são quatro delas.
Os restaurantes, intubados pelo coronavírus
Carlos Weinberger vive diante da incerteza, de não saber como será o dia de amanhã. Sentado em uma cadeira no terraço vazio do Entrevero, um dos quatro restaurantes que sua família administra na Cidade do México, esse empresário uruguaio de 60 anos, que chegou ao México como exilado em 1976, diz que as crises não são alheias aos latino-americanos, que aprendem a viver com os altos e baixos da economia. “Mas desta vez é muito mais complicado. É preciso somar a crise humanitária”, adverte. “É uma incerteza total para o futuro que não se saiba quando isso vai mudar, quando vai voltar uma renda normal com a qual possamos sobreviver todos: os donos do restaurante, os empregados, quem aluga o imóvel... Enfim, a economia em geral.”
Depois de passarem mais de três meses fechados ao público por causa do coronavírus, seus restaurantes reabriram em julho, quando a Cidade do México implementou o semáforo laranja que permitia que os estabelecimentos que servem comida funcionassem com 30% da sua capacidade, até no máximo 22h, e ocupação não superior a quatro pessoas por mesa. Essas restrições, somadas ao medo dos clientes de se contagiarem ao comerem fora de casa e à menor capacidade de consumo por causa da crise, fizeram que seus negócios rendam apenas 15% a 35% do faturamento anterior à pandemia.
O restaurante Entrevero está numa área privilegiada, em frente à pitoresca praça Coyoacán, que agora está isolada com fitas amarelas para evitar que as pessoas caminhem entre as árvores ou se sentem nos bancos. Sem transeuntes quase não há clientes, mas os gastos do negócio, como o aluguel do ponto e os impostos, se mantêm fixos. “Em nível governamental há zero apoio. Continuam cobrando absolutamente todos os impostos. Se não pagar, caem em cima. Cobram juros, multas… Não há um interesse pela gente trabalhadora e com os negócios pequenos como esses, que geram a mão de obra”, lamenta.
Antes da crise, seus quatro restaurantes tinham quase 120 funcionários. Nenhum foi demitido, mas pelo menos 10 foram atrás de outra fonte de renda. Para os que ficam, o trabalho não tem nada a ver com o de antes da pandemia. Cozinheiros, garçons e faxineiros se dividem em dois turnos que trabalham em dias alternados. Como fecham às segundas, a semana de trabalho se reduziu a três dias, e é preciso sobreviver com menos da metade do que se ganhava antes da pandemia. “Os rendimentos baixaram uns 60%”, conta José Luis Espinosa Soberanes, um jovem de 30 anos que pagava sua faculdade de comunicação com o que ganhava limpando o restaurante. “Agora o que ganho aqui é o que continuo contribuindo na minha casa, mas no âmbito acadêmico me vai afetar. Não pude comprar livros.”
A Câmara Nacional da Indústria Restauradora do México calculou que um em cada quatro restaurantes poderia fechar pelo impacto da pandemia, um forte golpe para um setor que, antes desta crise, empregava a 2,1 milhões de pessoas no país. “Estamos em uma agonia, e muitos de nós talvez terminemos em morte”, afirma Carlos Weinberger. Garante que todos os outros donos de restaurantes com quem conversa estão na mesma. “Estão nos intubando, e vamos ver quantos saem vivos, mais ou menos como com o coronavírus.”
De ator e produtor à precariedade do Rappi
Quando a pandemia começou, Diego Barceló se somou à maré laranja que povoava as ruas de Bogotá, vazias de gente. Era mais um dos domiciliarios que ganham a vida na Colômbia levando alimentos até a casa dos que podiam se confinar —um luxo nos tempos que correm. Ator de profissão e produtor audiovisual, havia voltado em abril do Equador, onde filmara um curta-metragem. Retornava decidido a pagar algumas dívidas e a resgatar seu sonho de atuar nos Estados Unidos, mas foi apanhado pela quarentena e pela incerteza profissional. “Decidi ativar o aplicativo do Rappi que tinha desde um tempo atrás e peguei uma bicicleta para trabalhar”, conta, prostrado em uma cama com a perna direita destroçada por um acidente. Trabalhava das 9h às 23h, de domingo a domingo, e, claro, “ganhava uma boa grana”, admite: 400.000 pesos colombianos por semana, 570 reais, mas sem nenhum tipo de vínculo trabalhista.
Sua história é a mesma de milhares de pessoas que se somaram nos últimos meses à fila do desemprego. Em junho, a taxa de desocupação na Colômbia foi de 19,8%, quase 2,2 milhões de pessoas a mais que nesse mesmo mês em 2019. E muitos dos que perderam o trabalho terminaram sendo recrutados pelas plataformas de entrega em domicílio. Segundo o Rappi, antes da pandemia a empresa tinha 20.000 entregadores, e durante os meses de quarentena outros 30.000 passaram a fazer delivery.
A crise da covid-19 demonstrou a importância de “trabalhos desvalorizados” que, com o confinamento, “evidenciaram seu caráter de imprescindíveis para a sustentabilidade do sistema econômico”, indica um estudo da Fundação Friedrich Ebert Stiftung Colombia Fescol, que adverte para a falta de proteção de seus direitos trabalhistas. Barceló e seus colegas vivem isso diariamente. Como não são empregados da plataforma, não têm plano de saúde em plena pandemia. Uma pesquisa do Observatório Trabalhista da Universidade del Rosario (Bogotá) revelou que, em 2019, 53,9% dos entregadores do Rappi não tinham direto a atendimento sanitário pela previdência pública e mais de 91% não estavam cobertos contra acidentes de trabalho.
Esse é o caso do ator. Em junho, sofreu um acidente enquanto levava um pedido e, apesar de pedir ajuda à plataforma, diz que não lhe mandaram uma ambulância. O mais doloroso, afirma, é que a companhia alegou que ele não estava levando nada quando o acidente aconteceu. Premido pela necessidade de trabalho, poucos dias depois voltou e sofreu outro acidente pior. Foi atropelado por uma moto, fraturou a perna direita e levou uma pancada no nariz, que agora precisa de cirurgia. “O aplicativo? Nada, eles dizem que temos Administradoras de Riscos Trabalhistas (ARLs) e que isso nos cobre uma incapacidade, mas a pagam depois de 60 dias. E o que faço neste tempo sem poder me mexer para trabalhar?”, indaga. “Tiram entre 3.000 e 6.000 pesos (entre 5 e 10 reais) de nós dizendo que é para um seguro de acidentes, então quando aconteceu liguei, e a surpresa é que segundo eles não existe nada disso.” O Rappi alega que o caso está em estudo e que as pessoas se conectam e se desconectam da plataforma. “Não são funcionários do aplicativo, mas quem presta o serviço tem uma apólice de acidentes”, afirma a empresa.
A falta de clareza quanto aos riscos trabalhistas é ainda mais grave no contexto da pandemia. Segundo o Instituto Nacional de Saúde da Colômbia, pelo menos 705 despachadores, carregadores e entregadores se infectaram com o coronavírus. Apesar dessas dificuldades, Barceló diz que não se arrepende desse trabalho. “Não tinha opção. Com o mundo da cultura parado, essa foi minha única forma de subsistência. Mas se aproveitam da necessidade.” Agora, moveu uma ação contra a plataforma. Espera que assim lhe respondam, embora até agora só tenham lhe ligado informalmente com um pedido de desculpas.
Adeus ao ‘cross training’: o coronavírus devasta os pequenos negócios
A pandemia foi cruel com os pequenos negócios no Brasil, e pelo menos meio milhão de empresas fecharam suas portas no mês de junho por causa das mudanças radicais impostas pelo vírus. Um relatório do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra que quase 520.000 empresas com até 49 funcionários não conseguiram suportar a incerteza da covid-19. Mais de quatro meses depois de o primeiro caso do coronavírus na América Latina ser detectado em São Paulo, a doença já deixou mais de 108.000 mortos entre uma população total de 211 milhões de brasileiros.
A academia de cross training de Tiago Zarrattin, chamada Haddock Cross, foi uma das vítimas econômicas da pandemia. Desde o começo, esse empresário de 37 anos viveu com angústia o confinamento na cidade, que deixou as ruas vazias. “Pesou a falta de um norte, de saber o que vai acontecer com este tipo de atividade comercial. Está tudo indefinido”, reflete, ao justificar sua decisão de fechar o empreendimento. A academia ficava nos Jardins, um bairro de classe média-alta, a duas quadras da avenida Paulista. “É um local onde 80% do público vem das empresas, que reduziram suas operações e recorreram bastante ao home office. Isso trouxe uma mudança total de panorama para a academia”, lamenta.
Diante da incerteza, optou por proteger suas economias enquanto estuda o que fazer no futuro. “Minha ideia é não gastar muito e ter paciência para escolher a melhor opção quando voltarmos a ter alguma perspectiva”, diz Zarrattin. Sua esposa, advogada, manteve o emprego apesar da crise econômica. “Acredito que as pessoas vão retomar suas atividades em grupo, mas ao ar livre ou pela internet. Pode ser que o cross training se reative em algum espaço aberto”, avalia.
O Banco Central projetou uma queda da atividade econômica no Brasil de 9,1% entre abril e junho, em comparação com o mesmo trimestre do ano passado. O golpe foi implacável com empresas que dependiam da presença dos clientes, como a Haddock Cross, mas também para companhias que já passavam por dificuldades antes do coronavírus. Segundo o relatório do IBGE, 795.000 pequenas empresas quebraram neste ano por motivos não relacionados à covid-19.
Com a pandemia estabilizada em algumas cidades como São Paulo (10.625 mortes para 12 milhões de habitantes até esta segunda-feira), a vida trata de voltar à normalidade. Os estabelecimentos comerciais da capital paulista já reabriram, embora com horários reduzidos e cuidados extras para evitar contágios. Zarrattin acalenta a ideia de que, depois de ficarem confinadas em suas casas, as pessoas futuramente terão vontade de voltar à academia. “Ainda tenho que esperar para ver como o público reagirá. No princípio, todo mundo voltará a fazer atividade física”, diz. “Mas se houver um surto de covid-19 na academia, como fica? Não podemos arriscar nada agora.”
O tango e o turismo, em quarentena
María Emilia García Márquez deixou de dançar tango nas ruas de Buenos Aires uma semana antes de o Governo argentino decretar a quarentena obrigatória pela pandemia de covid-19. “Decidi me proteger porque vinham muitos turistas, e a notícia era tudo o que estava começando a acontecer na Espanha e na Itália”, recorda esta bailarina de 28 anos sobre a incerteza que reinava na Argentina em meados de março, quando foram diagnosticados os primeiros casos locais de coronavírus, todos importados da Europa. As milongas, como são conhecidos os lugares onde se dança tango, decidiram fechar também, dada a grande circulação de pessoas e o estreito contato entre elas.
“Não sabíamos que passaríamos tanto tempo parados. Achava que seriam dois meses, e nesse tempo me viro com o que tenho, mas foi muito mais”, lamenta García Márquez. Primeiro se dedicou ao estudo do direito, graduação que pretende concluir no ano que vem, mas à medida que a quarentena se estendeu e as economias se esgotaram começou a procurar trabalhos temporários que pudesse realizar sem sair de casa. “Pensei em começar a cozinhar massas caseiras, mas deixei de lado porque não tem nada a ver nem com o que estou estudando nem com o meu trabalho”, conta. “Andei fazendo algum tipo de assistência jurídica, porque não sou advogada ainda, graças a uma conhecida de Porto Rico a quem represento e para quem faço trâmites”, acrescenta.
Tentou também dar aulas de tango online, mas teve pouco sucesso, tanto dentro como fora do país. “Andei conversando com alunos do México, mas parece que lá estão ainda pior que por aqui”, diz. Na Argentina deu algumas aulas, mas deixou de insistir porque a perda de poder aquisitivo da maioria de população e a excessiva oferta de professores tornaram essa atividade muito difícil. Hoje em dia, sua renda mais estável são os 10.000 pesos (740 reais) mensais que recebe do Governo pela Renda Familiar de Emergência. Agradece também que seu colega de apartamento mantenha o trabalho e isso lhes permita pagar o aluguel.
García Márquez olha com tristeza sua coleção de sapatos e vestidos de tango, sem saber quando poderá voltar a ostentá-los em frente à plateia que costumava aplaudi-la diariamente. Acredita que a pandemia deixou claro que o ritmo do 2x4, um dos maiores atrativos turísticos de Buenos Aires, esconde muita precariedade. “Muita gente que trabalhava em casas de tango ficou sem trabalho. Reclamamos pela invisibilidade e a falta de ajudas ao setor”, conclui.