O sonho do ‘home office’ vira pesadelo na pandemia
Estresse crônico, isolamento, deterioração física, jornadas intermináveis... Covid-19 obrigou empresas e funcionários a trabalhar remotamente sem que estivessem preparados
—Você trabalha de sol a sol. É mentira que possa administrar melhor o seu tempo. Mistura seu espaço de trabalho com seu espaço privado. Não desliga. Já me deparei com 20 emails às dez da noite. Nos fins de semana também [Ana, de 61 anos, funcionária pública].
Em meados de março, os edifícios de escritórios do mundo todo ficaram vazios de pessoas e cheios de incertezas. Sete de cada dez empresas espanholas enviaram todos ou parte de seus trabalhadores para casa, segundo uma pesquisa recente. Mais de três milhões de pessoas trabalharam remotamente durante o confinamento na Espanha. Quatro vezes mais do que a pequena fração de 4,8% de empregados que habitualmente realizam suas tarefas remotamente durante parte da semana.
No Brasil, segundo pesquisa feita pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), 20,8 milhões de pessoas podem utilizar o home office, o que que corresponde a 22,7% dos postos de trabalho. Quem tem mais possibilidades de trabalhar em casa são os profissionais da ciência e intelectuais (65%), seguidos de diretores e gerentes (61%), apoio administrativo (41%) e técnicos e profissionais de nível médio (30%).
A imersão no teletrabalho devido à crise sanitária da covid-19 foi, em grande parte, um mergulho arriscado. De um dia para outro, os empregados começaram a abrir o laptop na mesa da sala de jantar enquanto as crianças invadiam suas teleconferências pelo Zoom. Em tempo recorde, os empresários tiveram de procurar computadores com o país fechado, adaptar plataformas seguras e organizar virtualmente tarefas até então presenciais, assinala Rosa Santos, diretora de Relações Trabalhistas da Confederação Espanhola de Organizações Empresariais (CEOE). Quase cinco meses depois e com os surtos se multiplicando, a recomendação de priorizar o teletrabalho permanece.
Tivemos de nos adaptar subitamente aos novos costumes trabalhistas, afirma a especialista em Medicina do Trabalho Teófila Vicente-Herrero. “Nem todo mundo está preparado e tem a mesma velocidade”, acrescenta. A tensão de manter o nível de rendimento diante de exigências às quais não estamos habituados, assinala a também especialista em teletrabalho, causa “somatizações, com alterações digestivas, do ciclo do sono e ansiedade por essa má adaptação à nova situação de estresse”. Isso se agrava entre quem nunca trabalhou à distância. “Havia desinformação, falta de formação e de tecnologia. Os horários foram quebrados. Em muitos casos, as jornadas são intermináveis, e isso gera uma alteração nos ciclos biológicos e nas relações familiares e sociais.”
As pessoas passaram a trabalhar mais. Até duas horas diárias a mais na Europa e três nos Estados Unidos, segundo dados do NordVPN, uma fornecedora do cordão umbilical que conecta os computadores domésticos com os servidores das empresas. Um de cada quatro empregados tem de usar seu tempo livre para dar conta das tarefas, aponta uma pesquisa do Eurostat, o serviço de estatística da União Europeia. E fazem isso do sofá ou da cadeira da cozinha, compartilhando espaços improvisados com companheiros e filhos. Trabalhando à custa do sono.
—Está sendo uma das piores experiências da minha vida. Tenho três trabalhos. Tarefas escolares de um lado, teletrabalho de outro, as coisas da casa... já fiz videoconferências de capacitação com pessoas nada interessadas, que não sabiam como fazer, ou não tinham dados no celular, ou davam risada. E meus filhos aparecendo [María Tovar, 36 anos, orientadora de emprego em uma empresa. Dois filhos, de oito e cinco anos].
A realidade não é diferente no Brasil. Uma pesquisa do Centro de Inovação da Escola de Administração de Empresas de São Paulo (FGV-EAESP) durante a pandemia mostrou que 56% entre 464 entrevistados encontraram muita dificuldade ou dificuldade moderada em equilibrar as atividades profissionais e pessoais no home office. O levantamento constatou ainda que para 45,8% houve aumento da carga de trabalho após o isolamento. Ainda 34% dos entrevistados consideraram difícil ou muito difícil manter a motivação, e 36% opinaram difícil ou muito difícil continuar com a mesma produtividade.
O que ocorre depois de todos estes meses? “Não nos adaptamos, pensávamos que trabalhar remotamente era transferir o escritório para nossa casa e pronto. Não temos controle da situação, sofremos de estresse crônico. Não há descanso”, diz o professor de Psicologia Social da Faculdade de Relações Trabalhistas e Recursos Humanos de Granada Francisco Díaz Bretones. “Expandimos o tempo e o espaço. Se antes o trabalho estava restrito a um lugar determinado durante certo tempo, isso desapareceu. Trabalhamos sob um guarda-sol na praia, em casa, no escritório, a qualquer hora. É a primeiro coisa que fazemos ao acordar e a último ao nos deitar. Não temos períodos de recuperação e de descanso. A recuperação física é muito mais rápida. Mas psicologicamente demoramos muito mais para voltar a um estado de relaxamento.”
—Quando termino uma videoconferência, meu pescoço e meus ombros doem. Eu me sinto muito exposta e, ao mesmo tempo, tenho falta de informação. Para uma pessoa introvertida e observadora como eu, o Zoom tem todo o lado ruim de reunir você com gente na vida real, mas nesses encontros cara a cara há muitas coisas que aqui [em uma videoconferência] não estão presentes [Carly Micó, 42 anos, tradutora e editora].
O Zoom, como epítome de todas as plataformas de videoconferência, tomou conta dos computadores durante o confinamento. Saltou de 10 milhões de participantes diários em dezembro para 300 milhões em grande parte da crise. Os especialistas defendem sua enorme utilidade: “Economizamos tempo, não precisamos nos deslocar, podemos nos comunicar de forma não verbal e trabalhar bem compartilhando a tela”, afirma Jeremy Bailenson, fundador do laboratório de Interação Humana Virtual da Universidade de Stanford. “Sem as videoconferências, o mundo estaria sofrendo ainda mais durante a pandemia.” O professor Díaz Bretones garante que as reuniões virtuais são mais eficazes: “Otimizamos melhor o tempo, pois suprimimos parte do contato social e nos concentramos mais no desenvolvimento da reunião. E tem outra coisa, em um encontro presencial, se ele se prolonga ou é muito chato, você precisa mostrar atenção. No Zoom você pode fazer outras coisas”.
Quem faz videoconferências diariamente, como os professores, obrigados a dar aula, conhece bem a chamada “fadiga do Zoom”. Bailenson acaba de iniciar um estudo ambicioso sobre o fenômeno e explica o que ocorre quando as reuniões são um monte de cabeças na tela do computador: “Em uma reunião presencial com uma dezena de pessoas, o tempo que passam se olhando mutuamente nos olhos é muito curto. Quando isso ocorre, não dura mais do que poucos segundos. Com o Zoom, uma reunião com o mesmo número de participantes transcorre em uma grade de rostos e todos olham da tela para você o tempo inteiro. Isso pode ajudar na produtividade, mas tem um custo. As pessoas se sentem muito incomodadas ao ser observadas permanentemente. O cérebro se mostra particularmente atento aos rostos, e quando os vemos grandes, interpretamos que estão muito perto. Nosso reflexo de luta ou fuga reage. Em um estudo que fizemos em Stanford, descobrimos que você encolhe fisicamente quando se expõe a rostos virtuais de grande tamanho. Esse pode ser, em parte, o motivo pelo qual o Zoom é tão esgotador. Durante cada minuto que estamos em videoconferência, temos rostos que nos observam a poucos centímetros do nosso”.
As videoconferências entraram na vida profissional e, aparentemente, para ficar. As reuniões devem ser repensadas quando alguns estão no escritório e outros não, afirma Eva Rimbau, professora de Recursos Humanos e Organização da Universidade Aberta da Catalunha e especialista em teletrabalho. “Os participantes devem se sentar como se todos estivessem fora, senão aqueles que estão juntos fisicamente tomam o poder. A reunião é deles e eles se esquecem dos ausentes. Este é o momento de aprender isso.” E também de promover “a comunicação assíncrona, com ferramentas que permitam que não estejamos todos conectados ao mesmo tempo para dar uma resposta, uma pessoa deixa sua informação e outra a encontra depois”. Além disso, existem truques para aliviar o esgotamento causado pelas reuniões virtuais. Um óbvio, muito usado, é desligar a câmera para não nos vermos constantemente. Outros são propostos pelo professor Bailenson: “Uma das minhas reuniões semanais dura duas horas. Depois das primeiras que fizemos, que nos deixaram exaustos, decidimos que só apareceria na tela aquele que estivesse falando. Ajudou. Ter nossos cães, gatos ou móveis aparecendo constantemente não é crucial para a maioria das reuniões. O Zoom também permite controlar a posição e o tamanho das janelas que mostram o rosto dos outros participantes, dá para jogar com as configurações. E é possível instalar uma webcam para que sua imagem apareça próxima na tela e você possa afastar o computador”.
O cansaço da conexão virtual não é a única consequência destes meses de teletrabalho. O estresse nos faz comer mais e pior. E passar 10 horas na frente do computador, interrompendo, caso existisse, nossa rotina de exercícios, afeta também as costas e articulações. “Agora que começamos a analisar os dados, vemos que tudo se altera, os níveis de colesterol, açúcar e triglicérides sobem. As pessoas com artrose e aquelas que têm problemas nos tendões tiveram de limitar a atividade, perderam mobilidade. Isso é o que começamos a ver agora. E acredito que em um prazo de seis a oito meses mais coisas virão à tona.” A principal causa de não comparecimento ao trabalho sempre foram os problemas musculoesqueléticos, e neste ano eles dispararam.
− Tenho me sentido solitário. Sinto falta daquela conversa com os colegas sobre assuntos que não são do trabalho, na qual surgem ideias. De qualquer forma, gostaria de poder trabalhar alguns dias em casa [Arturo, 30 anos, jornalista].
“Perdemos repentinamente o local de trabalho, uma conquista social, voltamos para uma solidão que nos isola dessa cultura do café e da conversa que cria vínculos. A longo prazo, não sabemos quais serão as consequências. Nem todos têm a capacidade de voltar-se para dentro de si mesmos, algo que a escrita e a arte exigem. Isso pode se tornar uma ameaça se seu trabalho não for criativo”, diz o psiquiatra Enrique García Bernardo, lembrando que boa parte de nosso entorno social surge no ambiente de trabalho. Um risco clássico do teletrabalho é o isolamento, que pode ter consequências depressivas.
O teletrabalho era isto? Não, dizem os especialistas. Eva Rimbau acredita que a situação é excepcional: “Nossos filhos pararam de ir à escola, nós ou nossos familiares ficamos doentes, sem poder sair. Muitas coisas mudaram para pior. Não podemos tirar nenhuma conclusão além de dizer: o teletrabalho em caso de crise é um horror? Sim. Estamos muito cansados, mas o que sentimos agora não representa o que podemos sentir em um teletrabalho normal”. Rosa Santos, da CEOE, também pensa dessa forma. Mesmo assim, diz, as pessoas não querem voltar ao trabalho presencial. “É uma mistura entre ter medo de trabalhar em casa e gostar da capacidade de compatibilização que isso possibilita.”
E o que ocorre normalmente é que os trabalhadores que estão em casa “podem estar mais estressados porque misturam muito mais o trabalho com a vida pessoal”, diz Rimbau, citando estudos. “É um pouco paradoxal, porque ao mesmo tempo eles estão mais satisfeitos porque isso lhes permite conciliar as coisas”, afirma. Há dois tipos de trabalhadores remotos. Um deles é o integrador, aquele que, segundo a especialista, “faz coisas pessoais no horário de trabalho e vice-versa, como responder emails enquanto espera os filhos terminarem a lição de casa. Corre o risco de trabalhar a qualquer hora”. O outro tipo, o separador —que divide o trabalho e a vida pessoal—, corre o mesmo risco. “Seu desafio é aprender a dizer: ‘Bom, antes eu separava as coisas porque saía do escritório. Agora tenho de fazer isso de outra forma, fechando a porta do quarto do computador ou algo assim’”, assinala Rimbau. Temos de reaprender, diz García Bernardo: “Reaprender que se não respondo um email às dez da noite, por exemplo, não é que eu seja um mau trabalhador”. O trabalho permanente seria incentivado por chefes que, ao não nos ver, exageram com os emails, mensagens por WhatsApp e videoconferências. Liderar à distância é dar confiança, destacam os especialistas.
À solidão, soma-se outra peculiaridade: se você não está, não é visto. “Em empresas onde alguns trabalham à distância e outros não, os trabalhadores remotos receberam menos promoções, menos capacitação e menos feedback sobre seu desempenho por estarem um pouco fora de vista”, afirma Rimbau. “Esse é um risco que existe.”
O trabalho remoto é agora uma realidade muito mais tangível. O Twitter dá essa opção a seus funcionários para sempre. O Facebook planeja ter metade de seu pessoal trabalhando à distância em cinco anos. O Google não terá funcionários no escritório até meados de 2021. Na Espanha, algumas empresas, como a ING, oferecerão opções para trabalhar remotamente de uma forma completamente flexível. Entre as empresas espanholas, 41% planejam continuar com a fórmula de trabalho remoto. E 30% dos trabalhadores poderia fazer isso, segundo cálculos do Banco da Espanha. Mas vai ser diferente. O Governo está finalizando um projeto de lei negociado com agentes sociais para regulamentar essa forma de trabalho. O projeto inclui a voluntariedade, a flexibilidade e o direito à desconexão.
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