Magnitude da crise empurra vários bancos centrais latino-americanos para território desconhecido
Colômbia e Chile adotam programas modestos de injeção de liquidez através da compra de dívida. Brasil já tem autorização do Congresso para fazer o mesmo. Não se comparam em volume aos da Europa e EUA, mas são uma opção contra os efeitos da crise provocada pelo coronavírus
Duas letras (QE) que salvaram os Estados Unidos e a Europa da paralisia total na grande crise financeira de uma década atrás começam a ser pronunciadas nos últimos dias em algumas capitais latino-americanas. O avanço de uma crise econômica que se prevê especialmente intensa nos países emergentes está forçando vários órgãos emissores de divisas da região a ensaiarem uma fórmula inédita nestas latitudes: a injeção de liquidez, através de compras de dívida pública ou privada para assegurar o bom funcionamento dos mercados e reduzir o custo de financiamento de Governos e empresas. Entre os grandes países da região, a Colômbia e o Chile foram os primeiros a quebrar o gelo ―o primeiro comprando títulos públicos e privados, e o segundo apenas adquirindo papéis privados―, abrindo um caminho inexplorado na região.
Nada indica que serão os únicos: o Banco Central (BC) brasileiro já recebeu o aval do Congresso para seguir o mesmo caminho. A PEC do chamado “orçamento de guerra” autorizou o BC a comprar e vender títulos do Tesouro Nacional, bem como títulos de crédito de empresas privadas no mercado secundário, que já fazem parte de carteiras de fundos e corretoras, por exemplo. Até então, o BC não podia adquirir títulos privados. O objetivo é garantir liquidez ao mercado de capitais, no modelo das políticas de quantitative easing (QE na sigla em inglês), traduzido livremente como flexibilização quantitativa, que é utilizada há anos em outros países. Mas a medida pode deixar o banco exposto a papéis com alto risco de inadimplência.
A América Latina parte de uma posição complicada para enfrentar a crise, com uma margem fiscal muito mais estreita que o bloco rico e com os mercados à espreita. Sem a proteção de uma moeda forte (como os EUA, que, com o baluarte do dólar, poderia emitir praticamente toda a sua dívida se quisesse), o guarda-chuva de um banco central sólido (como a Espanha e a Itália) nem o respaldo dos credores nacionais (Japão), os países da região estão tendo sérias dificuldades para lançar programas ambiciosos de contenção de danos com dinheiro público, quando nem sequer chegou a fase crucial dos estímulos, a da reativação. O secretário (ministro) de Fazenda do México, Arturo Herrera, recentemente apresentou a questão sem meias palavras neste jornal: “O México não pode ter um programa de estímulo fiscal do tamanho da Alemanha ou do Canadá”. A perna monetária deve ser, neste cenário, mais importante do que nunca.
De uma forma ou de outra, todos os bancos centrais da região deram um passo à frente. Alguns, como o mexicano, com um severo corte dos juros ― que ainda têm margem para continuar caindo. Mas outros, como o colombiano, o chileno e o costa-riquenho, tomaram um caminho que lembra com algumas variações o transitado pelas economias avançadas uma década atrás. “É um choque de magnitude sem precedentes, e o poder da política econômica, tanto a fiscal como a monetária convencional, não basta para mitigar os riscos”, observa Martín Castellano, chefe de análise para a América Latina do Instituto de Estudos Internacionais (IIF, a entidade patronal mundial dos bancos). “A pandemia trouxe consigo uma nova realidade que exige medidas extraordinárias, e estas são”, completa por telefone Alberto Ramos, economista-chefe do Goldman Sachs para o subcontinente. Não só a América Latina vai embarcando pouco a pouco no trem dos programas de flexibilização quantitativa, ou QE: outros emergentes, como a Turquia, África do Sul e Polônia, também apostaram nessa via de emergência contra a paralisia causada pela crise sanitária.
O movimento da Colômbia, Chile e Costa Rica, acrescenta Ramos, é fundamentalmente voltado para assegurar que alguns segmentos dos mercados de dívida privada “não se congelem nem se atrofiem”. “Mas, claro, à medida que você injeta liquidez, também beneficia o setor público com suas necessidades de financiamento, movendo para o mercado de dívida pública os investidores que estavam no mercado de bônus privados. Embora não seja explicitamente o objetivo primário, é um efeito secundário importante”, acrescenta o economista do banco de investimento norte-americano. Paralelamente, alguns bancos centrais da região ―alguns deles envolvidos no QE, como o chileno ―bateram à porta do Fundo Monetário Internacional (FMI) para assegurar a liquidez necessária nestes tempos estranhos, em que o dinheiro vivo voltou a ser o rei.
As compras de dívida feitas até agora pelos BCs da região são pequenos, mas o sinal que enviam a esse ente etéreo chamado mercado é importante. “Ao injetar liquidez, eles estabilizam as taxas de financiamento do setor público e do setor privado”, aponta Esteban Pérez, técnico da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) e autor de um recente estudo sobre os possíveis caminhos para a reativação econômica da região. Diferentemente dos EUA, Europa e Japão, entre outros, a região chegou a este ponto antes de esgotar todos os instrumentos de política monetária ao seu dispor e com os juros ainda muito acima de zero em todos os países da região. Mas a necessidade de medidas extraordinárias desse tipo, salienta Pérez, está diretamente vinculada à volumosa fuga de capital dos mercados financeiros latino-americanos para praças mais seguras no bloco dos países ricos.
Funcionará? “É possível, mas depende da expectativa de demanda que houver: as políticas de expansão quantitativa só funcionam se houver expectativa de demanda”, salienta o técnico da Cepal, o braço das Nações Unidas para o desenvolvimento da região. “É a forma mais rápida de oferecer liquidez e respaldar a atividade econômica. É uma opção válida e há margem de inflação para isso, com toda a cautela a que obriga o passado inflacionário da região”, acrescenta Castellano. Esse flanco hoje parece preocupar pouco: esses países também têm, nas palavras do técnico do IIF, metas de inflação “mais factíveis”, um nível geral de preços bastante baixo e, na maioria deles, marcos jurídicos muito restritivos quanto à compra de dívida pública. Se havia um momento para dar o passo, era este.
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