Em nome do Pai
Lideranças católicas no Brasil sofrem ameaças e são acusadas de uso político da fé por seus trabalhos sociais em meio à combustão do encontro entre uma igreja mais próxima das comunidades defendida pelo papa Francisco e o ultraconservadorismo empoderado por Bolsonaro
Dom Vicente, Frei Lorrane, Padre Júlio, Frei José Hélio, Padre Lino, Padre Leonardo. Eles não cabem apenas entre as paredes da Igreja. Em nome de Deus, dizem atualizar o evangelho e levá-lo aos mais pobres e oprimidos. Desbravam as periferias do Brasil para repartir alimento e acolher pessoas em situação vulnerável. Fome, frio, dor. A fé deles transcende os sacramentos para ganhar forma de denúncia ―contra as desigualdades, os desastres ambientais, o direito à moradia ou pela inclusão das minorias. Querem aplicar na vida atual os ensinamentos de Jesus Cristo, que também se revoltou com os vendedores ao redor do templo que lucravam com a fé. Movem-se pela comoção à dor alheia. São padres, freis e bispos empoderados pela Igreja em Saída que o papa Francisco tenta fortalecer desde o Vaticano ―uma corrente mais progressista, próxima às comunidades, forjada nos princípios da Teologia da Libertação e intrinsecamente latino-americana.
Mas a corrente bateu de frente com o Brasil conservador e fundamentalista que elegeu o presidente ultradireitista Jair Bolsonaro. O mesmo que, há poucos anos, afirmou que a maioria dos gays é fruto de consumo de drogas e que seria incapaz de amar um filho homossexual. O presidente que já chamou o programa Bolsa Família de “esmola” por gerar uma legião de acomodados, ou que disse que a população quilombola “nem para procriar serve mais”. O confronto com ideias como essas produziu ondas turbulentas que expõem a divisão dentro da Igreja católica brasileira, empurrada à autorreflexão enquanto perde fiéis para as vertentes evangélicas. Segundo o último censo disponível, de 2010, 64,6% dos brasileiros se declaravam católicos, contra 73,6% em 2000. Já os evangélicos, passaram de 15,4% em 2000 para 22,2% em 2010. Projeções mostram que o avanço evangélico continua, e com ele, a pregação conservadora.
Em nome do mesmo Deus, líderes religiosos passaram a ser chamados de satanistas, comunistas, esquerdopatas. E foram acusados de fazer uso político da fé. Entraram no foco das milícias digitais e da cultura do ódio, que assolam o país. Alguns temem pela própria vida e precisaram recorrer à Justiça e ao Estado por proteção física.
Dom Vicente, de Brumadinho, e “a economia que mata”
“Agem como se tivessem a posse da verdade da nossa fé. Falam que em vez de me preocupar com as almas, estou me preocupando com as coisas deste mundo”, define Dom Vicente de Paula Ferreira, de 50 anos, nomeado bispo auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte pelo papa Francisco em 2017. Ele atua na pequena Brumadinho ―uma cidade de 40.000 habitantes no interior de Minas Gerais. Desde que uma barragem de mineração da Vale rompeu em Brumadinho há dois anos e arrastou centenas de vidas em um mar de lama, ele atua junto aos familiares das vítimas. Chegou a ser ovacionado ao organizar campanhas de doação. Mas quando ergueu a voz contra “a economia que mata” em busca de responsabilizar os culpados por uma das maiores tragédias ambientais brasileiras, virou foco de críticas. “Por quê?”, questiona. “Não basta a gente ficar somente na caridade de ajudar o outro, é preciso denunciar porque as pessoas morreram. Não estavam aceitando essa voz profética de denúncia.”
Dom Vicente raramente sai desacompanhado, evita dirigir sozinho à noite e pensa mil vezes antes de decidir se participará de alguma manifestação popular. Já ouviu que não merece respeito porque é contra Bolsonaro e que será içado às portas do inferno junto com sua igreja progressista. Vez por outra, recebe pacotes com ameaças à sua integridade física cujos detalhes prefere não revelar. “Falam que sou um comunista, coisa do satanás, que estou dividindo a igreja. Mandam ir para Cuba, para a Venezuela. Mas a gente está focando na doutrina social da igreja, no que o próprio papa Francisco nos pede”, defende. Dom Vicente calcula bem a repercussão de sua voz antes que as palavras lhe saltem da boca. Tenta evitar ser mal interpretado em um país em combustão política como o Brasil, muitas vezes em vão. “O senhor tem medo?”, pergunto. “Claro!”
Mas ameaça e intimidação mesmo só vieram mais recentemente, quando Dom Vicente passou a usar suas redes sociais para criticar a política errática de Bolsonaro na pandemia. Chamou o presidente de “fascista”, defendeu o impeachment contra “o desgoverno da morte” quando o Brasil superou as 550.000 mortes por covid-19. Ironizou a fala do presidente de que só Deus lhe tiraria do cargo. “Não tardes, senhor”, clamou o religioso no Twitter. Não demorou para que seu nome fosse jogado ao centro de uma campanha de destruição de reputação encampada por grupos da ala mais conservadora da Igreja católica, que acreditam que somente cultuando Deus dentro da igreja é possível alcançar o paraíso.
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Clique aquiO Centro Dom Bosco, um grupo católica tradicional, que, segundo sua própria definição, visa “resgatar o que foi perdido por causa do modernismo e das diversas infiltrações na estrutura eclesiástica”― publicou em junho vídeos com falas cortadas do religioso. Pintava-o como “extremista” e o acusava de doutrinar futuros sacerdotes. Conclamava fiéis para deixar “suas insatisfações” nas redes sociais de Dom Vicente. Veio uma enxurrada de ameaças e xingamentos anônimos. O centro conta com um canal no Youtube onde apontam o dedo para os padres progressistas.
Dezenas de entidades religiosas ou não então emitiram uma nota solidária a Dom Vicente, que o grupo respondeu com ironia: “Vossa excelência é um grande defensor das árvores, dos coletivos LGBT, do MST (...). Aguardamos ansiosamente o dia em que Vossa Excelência se torne um denodado defensor de Nosso Senhor Jesus Cristo e da Santa Igreja Católica, fora da qual não há salvação”.
Dom Vicente se enxerga no meio de uma cruzada. De um lado, os “detentores da verdadeira família”, que já têm um certo bem-estar social. Do outro, milhares passando fome. A decisão lhe parece fácil. “Isto é o contrário do que eu chamo de Reino de Deus: ter privilegiados”, diz. ”Acho que tem muita máquina de internet, de fazer discípulos. A política descobriu que pode ter um grande aliado na religião”, lamenta.
Frei Lorrane, em busca de proteção na Justiça por acolher os LBGT+
A mais de 2.000 de quilômetros dali, o Frei Flavio Lorrane Clementino de Almeida, de 27 anos, caminha pelo jardim central da Paróquia Nossa Senhora de Lourdes, em Fortaleza. Acomoda sobre a cabeça um chapéu de couro estilizado que chama a atenção junto ao hábito marrom com os três nós de seus votos religiosos: nada de próprio, castidade e obediência. Nascido em Triunfo, interior de Pernambuco, Lorrane é um frei que não quer ser padre nem celebrar missas. É como uma antítese do que defende uma ala conservadora do catolicismo de que só pelos sacramentos se garante o céu. A missão que ele abraçou é a de trabalhar junto à comunidade.
Inspirado por São Francisco, tenta amenizar o sofrimento do próximo. Atua com migrantes, população em situação de rua, recicladores. “Escolhi uma vida de doação para que o amor que eu tenho seja compartilhado”, ele diz. É por isso que uma vez por mês participa de encontros religiosos com a comunidade LGBT+, sempre em locais não divulgados por medo de represálias e atentados, já que atua no país das Américas que mais mata essa população, segundo levantamento do Grupo Gay da Bahia (GGB), que contabilizou ao menos 237 mortes por conta da violência LGBTfóbica em 2020. “Somos presença aos que só querem trabalhar sua espiritualidade. Quando um religioso está com eles, percebem que Deus também está”, explica.
No mês passado, o frei decidiu participar da ocupação de um centro de referência LGBT de Fortaleza, uma forma de cobrar da prefeitura maior atenção ao equipamento responsável pela defesa dos direitos deste público. Acabou hostilizado nas redes sociais. Páginas religiosas mais conservadoras passaram a publicar imagens suas e questionar se até seu nome ―Lorrane― não seria feminino demais para um frei. No Instagram, onde é mais atuante, multiplicam-se as mensagens de ódio e ameaças, muitas delas usando trechos da bíblia. “Agora eles estão mais agressivos”, conta. “Querem derrubar as pessoas pela sua moral, por isso dizem que meu nome é sugestivo, que pertenço à comunidade LGBT.”
Frei Lorrane costuma receber mensagens do tipo: “Tome cuidado. Muitos já morreram” ou “Quero te encontrar para mostrar a verdade. Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Também são comuns ligações para a secretaria da paróquia perguntando os horários e dias que ele celebrará missas. “Não vão achar porque eu não celebro, mas o que está acontecendo é muito sério. E pior: também vem de dentro da igreja”, critica.
Frei José Hélio: “Se Bolsonaro está certo, Jesus está errado”
Frei José Hélio Vieira da Silva, de 26 anos, atua junto ao Frei Lorrane, mas tenta manter-se mais à margem das redes sociais e por isso acredita sofrer menos ataques, ainda que eles estejam ao seu redor. “Insinuam que somos burros e querem dar uma aula da doutrina. Mas somos seguidores do Evangelho”, diz. Os dois frades viralizaram na internet com uma fotografia em uma manifestação contra Bolsonaro na qual erguiam um cartaz “Se Bolsonaro está certo, Jesus estava errado”. Compartilhada à exaustão nas redes sociais, a imagem não foi planejada, mas fruto de um pedido do casal que produziu o letreiro. Mas foi compartilhada até por famosos cheios de seguidores como Tico Santa Cruz e Xuxa. “Virei paquito”, brinca o frei Lorrane. Chamou tanta atenção entre o público do protesto que eles ganharam o cartaz, agora guardado na casa dos frades. “Tentam dar a ideia de que o lado certo do cristão é o bolsonarista conservador. Estamos aqui para dizer que não”, diz José Hélio com assertividade.
Ele conta que o tom dos ataques ganhou força há mais tempo, quando postaram uma foto com uma bandeira do Movimento Sem Terra (MST). O grupo historicamente mantém vínculos com religiosos e setores da Igreja que trabalham no amparo aos mais pobres. “As reações a essa foto mostram que as pessoas não sabem da nossa vida. Eles têm uma imagem ultrapassada dos frades menores”, pondera. Nas redes sociais, acusavam-os de comunistas e diziam que eles deviam se preocupar apenas em rezar missas. Os dois religiosos, porém, são freis-irmãos e atuam junto às comunidades, dialogando com vários movimentos sociais. Frei José Hélio defende que o país não pode se render ao ódio e que o pontificado de Francisco faz bem à igreja brasileira, agora imersa em uma disputa de narrativas à flor da pele. “Mesmo diante de tantos ataques, novos rumos estão sendo redefinidos”, acredita. “As pessoas estão procurando religiões alternativas. Por quê? Precisamos nos perguntar porque estão saindo do catolicismo se temos uma cultura tão forte.”
Padre Lino e a guerra na Igreja da Paz
Padre Lino Allegri retirava a batina depois de uma missa em uma manhã de domingo quando cerca de dez militares e empresários adentraram na sacristia da Igreja da Paz, uma paróquia localizada em uma ilha bolsonarista de Fortaleza. Já chegaram aos berros, inconformados com o sermão do padre de 82 anos que lamentava as vítimas da covid-19 e apontava a responsabilidade do presidente no caminho trágico da crise sanitária. “O senhor desrespeitou o nosso presidente, que foi eleito por nós e é cristão, honesto e bom”, bradou uma mulher. Eles mandavam o italiano com cidadania brasileira voltar ao seu país e o acusavam de ser esquerdopata. Na semana seguinte, Allegri viu formar-se contra si uma espécie de patrulha aos seus sermões. O grupo passou a ir à igreja vestido de camisas verde-amarelas, algumas com o nome do presidente escrito nas costas. Todos pareciam tão prontos para reagir caso o padre voltasse a criticar o Governo que, do lado de fora, policiais militares precisaram montar vigília para evitar que a situação saísse do controle.
Enquanto Padre Lino cancelou uma celebração naquela igreja por sua própria segurança, o grupo comemorava o sucesso do boicote em áudios no Whatsapp. “Estava cheio de general, coronel, foram todos de verde-amarelo. Não apareceu um dos vermelhos. Os padres pediram arrego”, dizia um integrante. “Botamos os comunistas pra correr”, emenda no mesmo áudio. As ameaças e xingamentos não foram poupadas nem dentro da própria Igreja da Paz. “Este padre transformou o altar em um palanque político”, bradou um militar durante uma missa celebrada por outro padre, Oliveira Braga Rodrigues, quando foi lida uma nota em apoio a Allegri.
“Foi uma intimidação”, define ele. “O presidente criou uma situação de antagonismo e ódio”, acrescenta, com receio de que a situação piore com as eleições do ano que vem. O vocabulário usado pelos cristãos mais conservadores contra os padres progressistas é vasto: “satanista”, “comunista safado”, “picareta”, “imbecil”, “desagregador”, “comunista com a batina de padre”. Mas há ameaças mais sérias que empurraram os padres Lino Allegri e Oliveira para o programa de proteção aos defensores dos direitos humanos do Ceará. Ambos precisaram recorrer ao Estado para enfrentar a cultura de ódio que vem ganhando força no país em um conflito duplo: a polarização política brasileira e a divisão que tem se intensificado dentro do próprio catolicismo entre os adeptos da Igreja em Saída do papa Francisco e os conservadores e fundamentalistas. Os religiosos contam que conflitos sempre existiram, mas nos últimos anos, eles têm alcançado um patamar perigoso.
As ameaças chegam ao Padre Leonardo em Roma
“O primeiro passo para entender este contexto é lembrar que a América Latina produziu uma teologia própria, da libertação, que nunca foi bem compreendida pela igreja. Sofreu embate nos papados de João Paulo II e Bento XVI”, explica o padre Leonardo Lucian Dall Osto, doutorando em Teologia Dogmática na Universidade Gregoriana de Roma. Quando o papa Francisco assumiu, nomeou uma série de novos bispos e estimulou uma visão mais crítica da realidade depois de cerca de três décadas de desconstrução desta teologia. Surgida nos anos 1960, ela faz uma reinterpretação da fé cristã e prega que a Igreja deve servir aos mais pobres, que devem ser libertados de injustas condições econômicas, políticas e sociais. No Brasil, o maior expoente dessa corrente, vinculada à esquerda política e ao marxismo, é o teólogo Leonardo Boff. No período em que foi censurada, durante os papados de João Paulo II (1978-2005) e Bento XVI (2005-2013), houve crescimento das igrejas evangélicas neopetencostais e dos grupos pentecostais na Igreja católica, estes últimos agora estão se unindo ao movimento tradicionalista da igreja que nunca assumiu as causas do Concílio Vaticano II ―uma série de conferências realizadas entre 1962 e 1965 para modernizar o catolicismo.
Padre Leonardo explica, por telefone, os meandros internos destes conflitos olhando para a própria trajetória. Está a menos de dois anos em Roma, mas antes disso atuava na diocese de Caxias do Sul, no interior do Rio Grande do Sul. Foi lá que começou a sofrer ataques ainda durante o processo de impeachment contra a ex-presidenta Dilma Rousseff. Naquela época, em 2016, já criticava os elogios do então deputado Jair Bolsonaro ao torturador Brilhante Ustra. Desde então, os ataques nunca cessaram completamente, mas ganharam mais força nos últimos dois anos, tanto a partir de pessoas individualmente quanto de grupos que se organizam para atacar. “Temos denunciado essa religiosidade instrumentalizada para fins políticos”, alega Leonardo. Toda semana, ele posta nas redes um vídeo de cinco minutos sobre temas da atualidade. Há um mês, enfrentou a fúria de grupos conservadores por defender uma nova visão da igreja sobre a homossexualidade. “Há uma fúria de ódio irracional”, aponta. Além de ameaças e xingamentos de anônimos nas redes sociais, grupos religiosos mais conservadores compartilharam vídeos contra ele. Usavam suas falas para pintá-lo como “extremista” e acusá-lo de fazer “apologia” à homossexualidade. Nos comentários nas redes sociais, pediam sua excomungação, diziam que o inferno o aguarda e o taxavam de “anticatólico”. Padre Leonardo também já sofreu ameaças à sua integridade física e teve seu nome enviado à nunciatura, uma espécie de embaixada do Vaticano.
Se, como diz Leonardo Boff, a igreja sempre fez política, mas uma política de direita, agora os padres reivindicam o direito de expor críticas sociais ainda que não façam necessariamente política partidária. Nas eleições de 2018, dois grupos foram criados para fazer frente ao ultraconservadorismo bolsonarista e contam hoje com cerca de 250 padres. “Nos organizamos para fazer uma denúncia pública contra projetos populistas e as falas que contrariam os preceitos do Evangelho”, explica o padre gaúcho. Uma carta foi enviada ao Papa, que precisou se posicionar durante a campanha da Fraternidade deste ano, que defendia o diálogo inter-religioso. Papa Francisco afirmou que os cristãos devem ser os primeiros a dar exemplo e defendeu que é tempo de superar os obstáculos de um mundo que é muitas vezes “um mundo surdo”. “Quando nos dispomos ao diálogo, estabelecemos ‘um paradigma de atitude receptiva, de quem supera o narcisismo e acolhe o outro’”, defendeu.
Padre Julio Lancellotti, ameaçado por conviver e acolher os “irmãos de rua”
Para o Padre Júlio Lancellotti (São Paulo, 1948), Jesus não está na Igreja, mas sim “debaixo do viaduto”, entre aqueles que moram nas ruas e mais precisam de acolhimento. Vigário episcopal para a população de rua da Arquidiocese de São Paulo, Lancellotti possui um entendimento sobre o papel da Igreja que desde sempre resulta em ameaças, incluindo as de morte, dos grupos mais retrógrados da sociedade. “São constantes. Há momentos piores que outros, de ameaças bastante explícitas”, conta ele. A chegada de Bolsonaro ao poder e a ascensão da extrema direita, conta ele, tornaram o ambiente “super ameaçador”. A partir de 2018, mensagens como “morte ao padreco” se tornaram mais frequentes. A saída foi acionar o Ministério Público e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, que cobrou, em 2019, medidas cautelares das autoridades brasileiras para proteger o padre.
Os embates públicos também são frequentes. O último deles ocorreu no último fim de semana com a deputada estadual Janaína Paschoal (PSL-SP), alçada à política por liderar juridicamente o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT) e se portar como defensora do conservadorismo. A parlamentar, que em seu Twitter usa uma foto abraçada a Jesus Cristo, acusou o padre nas redes sociais de alimentar o vício e o crime ao distribuir alimentos pela Cracolândia, área do centro de São Paulo onde centenas de pessoas vivem e usam drogas ilícitas, sobretudo o crack. Na ocasião, os voluntários mobilizados por Lancellotti também haviam sido barrados pela polícia ao entrar naquela zona.
Paschoal acabou despertando um efeito contrário, que resultou num aumento de 10% das doações em dinheiro para as ações da Igreja São Miguel Arcanjo, da qual é pároco. “Mas também acendeu vários focos de ataque, com várias pessoas dizendo que estou sustentando vagabundo”, afirma Lancellotti. As críticas de Paschoal vieram num momento de visível aumento da população de rua em São Paulo, por conta da pandemia e da grave crise econômica e social vivida pelo país. Ao mesmo tempo, moradores e comerciantes de bairros paulistanos já se organizam num coletivo chamado Moradores Sem Rua para “reivindicar o direito à cidade, usurpado por parte daqueles que vivem nas ruas”, exigindo, numa lógica eugenista, que sejam retirados pelo poder público.
Lancellotti acorda cedo todos os dias porque a população que mora nas ruas de São Paulo não pode esperar. Antes da pandemia, costumava servir um café da manhã na Igreja São Miguel Arcanjo, na zona leste de São Paulo, para cerca de 200 pessoas. Com o aumento da demanda, transferiu suas atividades matutinas para o Núcleo de Convivência São Martinho de Lima, da prefeitura. De volta a sua paróquia, espécie de quartel-general, distribui roupas limpas e cestas básicas, recebidas meio de doações. Voluntários mobilizados pelo padre também andam pelas ruas da cidade distribuindo cobertores e alimentos, sobretudo nos dias de frio. “A situação deles já é bastante precária, e tanto o frio como a pandemia só agravam a situação. É uma população que aumenta, e com isso também aumentam as dificuldades, a exposição e os riscos”, afirma. Costuma dizer que não trabalha com os “irmãos de rua”, e sim que convive com eles. Também diz que não consegue “viver a dimensão religiosa sem humanizar a vida”, mas que isso também gera conflitos numa sociedade tão desigual como a brasileira.
Ativo nas redes sociais, Lancellotti conta com o respaldo de figuras públicas diversas e, por vezes, até de autoridades municipais e estaduais, por mais que seja incômodo seu trabalho de apontar para as falhas nas políticas públicas —no início deste ano, quebrou a marretadas as pedras instaladas pela Prefeitura debaixo de viadutos para afastar a população de rua. No ano passado, recebeu uma ligação de papa Francisco pedindo que ele “não desanimasse” e citou seu trabalho em discurso no Vaticano. Para o padre de 72 anos, desanimar não é opção. Mas não enxerga um caminho fácil. “Esses grupos que ameaçam são uma rede que promove artimanhas”, explica. “Dentro dessa estratégia da retórica do ódio, eles buscam desqualificar as pessoas que estão no campo contrário.”
É um caminho árduo no Brasil da intolerância política e da cultura do ódio. A igreja católica, que já vinha perdendo adeptos nos últimos anos, está dividida entre os que abraçam uma linha de ação com os pés na realidade e os que defendem o culto individual a Deus para alcançar os céus. Mesmo na hierarquia, há muitos que não seguem o papa Francisco. Perseverar entre tantas fraturas é o desafio de Dom Vicente, Frei Lorrane, Padre Júlio, Frei José Hélio, Padre Lino, Padre Leonardo.
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