Evangélicos progressistas reagem contra homofobia de pastores e ensaiam avanço na política
Ala da igreja evangélica rechaça pregação por “medo do inferno” e uso deturpado de trechos bíblicos para criticar homossexuais. Grupo, também contrário à isenção de tributos a igrejas, prepara candidaturas em várias cidades do país em oposição às bancadas religiosas conservadoras
Na semana passada, o clã de um dos mais tradicionais templos evangélicos do país, fundado em Belo Horizonte, foi exposto por discursos públicos de intolerância a LGBTs. Primeiro, o pastor André Valadão, da Igreja Batista da Lagoinha, afirmou em uma postagem que igreja não é lugar para gays, porque “a prática homossexual é considerada pecado”. Depois, sua irmã mais velha, Ana Paula Valadão, teve um vídeo resgatado nas redes sociais, de 2016, em que aparece pregando que a Aids “mostra que a união sexual entre dois homens causa uma enfermidade que leva à morte”. Diante de reiteradas manifestações homofóbicas proferidas por líderes religiosos, correntes de evangélicos progressistas se mobilizam para defender a igualdade de gênero e se contrapor à mercantilização da fé nas grandes igrejas.
Em manifesto divulgado no último sábado, a Aliança Nacional LGBTI+, movimento que reúne entidades políticas e religiosas, informou que acionou Ana Paula Valadão na Justiça por homofobia, comparando a fala da pastora aos discursos de Adolf Hitler. “Ana Paula atinge toda a coletividade da comunidade LGBTI+ e, principalmente, a dignidade das pessoas que vivem com HIV/AIDS, colocando-as como responsáveis pela proliferação de um vírus e equiparando de maneira vergonhosa, antiquada e criminosa uma expressão legítima de amor e afeto a um ato criminoso como ceifar a vida de um ser humano”, diz a organização.
Coordenador da Aliança em Minas Gerais, o pastor Gregory Rodrigues, 29 anos, observa que a discriminação de gênero é conduta predominante entre a comunidade protestante no Brasil. Por outro lado, ele diz acreditar que há uma crescente resistência por parte de setores progressistas de diferentes correntes da igreja. “Em meio à onda de conservadorismo, esse tipo de pensamento [como o dos irmãos Valadão] tem sido revelado sem constrangimentos. Por fora, vemos um discurso de amor e aceitação. Mas, na primeira oportunidade, os pastores não hesitam em tachar integrantes da comunidade LGBT como seres impuros e pecadores.”
Formado em teologia e história, Gregory descobriu-se gay por volta dos 16 anos. Enfrentou rejeição da família e da igreja que frequentava na época. Depois de levar uma surra do pai, chegou a tentar suicídio, mas acabou acolhido em uma igreja inclusiva de Belo Horizonte. “Fui atacado ao defender a tese de que Deus não faz distinção de pessoas, independentemente de orientação sexual”, conta o pastor, salientando que grupos de fiéis progressistas não são exclusividade dos templos inclusivos. “O medo do inferno é uma forma de manipular pessoas. Dentro das igrejas tradicionais de cunho conservador, também temos gente com pensamento mais aberto. Mas há repressão por parte da alta cúpula a essas ideias. Ou, em alguns lugares, a defesa do que chamamos de inclusão de cabresto”, afirma.
Segundo o religioso progressista, inclusão de cabresto, no que diz respeito à diversidade de gênero, se refere a movimentos que aceitam fieis declarados LGBTs, desde que se proponham a abrir mão da sexualidade e cumprir voto de castidade. A Igreja Batista da Lagoinha, por exemplo, embora negue impor a condição a seus seguidores, mantém o Movimento Cores, destinado ao público LGBT, que, nos cultos, emite orientações sobre como “se transformar” e afastar o “pecado da homossexualidade”. Outras igrejas operam ministérios mais explícitos, que propõem tratamentos espirituais e processos de conversão conhecidos como “cura gay”. Um deles, o Movimento de Ex-Gays do Brasil, apoiado pela ministra dos Direitos Humanos e da Família, Damares Alves, busca estreitar laços com políticos, sobretudo ligados ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido), para legitimar a prática.
Em contrapartida, movimentos de evangélicos progressistas, como Cristãos Contra o Fascismo e Evangélicxs pela Diversidade, articulam candidaturas coletivas em várias cidades na tentativa de fazer oposição ao fundamentalismo religioso. É o caso do grupo de esquerda que concorrerá à Câmara Municipal de Belo Horizonte pelo Unidade Popular (UP). Os quatro integrantes dizem que o objetivo da candidatura é representar evangélicos que não se sentem contemplados pela “bancada da bíblia” e ressignificar a ideia de como a religião se manifesta nas esferas de poder. “Somos uma minoria [na igreja] que não dá pra ser ignorada. Os movimentos de evangélicos progressistas já estão em praticamente todas as capitais do país”, diz Jonatas Aredes, um dos membros do coletivo, lembrando que a frente do progressismo protestante começou a ganhar corpo em 2016, após a bancada evangélica apoiar o impeachment de Dilma Rousseff.
De acordo com pesquisa Datafolha, de abril, 41% dos evangélicos aprovam o Governo de Jair Bolsonaro, enquanto 30% defendiam a renúncia do presidente, que, em um culto na Câmara dos Deputados, já afirmou que pretende indicar um ministro “terrivelmente evangélico” para o Supremo Tribunal Federal. Aredes pondera que, além dos que rejeitam Bolsonaro, a comunidade evangélica é majoritariamente composta por mulheres, negros e pobres, que estariam à margem da representação pela bancada religiosa. “Nossa percepção é de que os evangélicos não são, de fato, representados, porque os coronéis da fé perseguem as minorias. Não podemos mais aceitar que nossa fé seja associada ao fundamentalismo e à intolerância.”
Para o teólogo LGBT, as falas dos irmãos Valadão —que moram nos Estados Unidos, declararam apoio a Bolsonaro na última eleição presidencial e não se retrataram pelas ofensas homofóbicas— sintetizam a pregação de outras lideranças religiosas que ainda tacham a diversidade sexual como comportamento pecaminoso. “Os fundamentalistas jogam a Bíblia na cara da pessoa LGBT, selecionando de maneira irresponsável meia dúzia de trechos isolados do contexto”, diz Aredes. “Assim a concepção de pecado se perpetua no que sempre foi: uma categoria de juízo, sem base alguma, que visa justificar discriminação por um determinado grupo de pessoas que acham estar fazendo a vontade de Deus, quando o pecado, na verdade, é a igreja ser preconceituosa.”
Homoafetividade condenada, dívida perdoada
Nesta segunda-feira da semana passada, Bolsonaro vetou parte de um projeto de lei que visava perdoar dívidas de igrejas, sob a justificativa de que, se sancionasse o texto completo, correria risco de sofrer impeachment com base na Lei de Responsabilidade Fiscal. No entanto, em rede social, o presidente sugeriu ao Congresso que derrube seu próprio veto. “Confesso, caso fosse deputado ou senador, por ocasião da análise do veto que deve ocorrer até outubro, votaria pela derrubada do mesmo”, escreveu. Pela propostas, as igrejas estariam isentas da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), assim como das multas pelo não pagamento do tributo, que somam mais de 1 bilhão de reais.
Correntes progressistas dos evangélicos se opõem à concessão de outra benesse tributária às instituições religiosas que, no Brasil, já têm garantida por lei a imunidade de impostos. “Nós somos contra a isenção fiscal sobre lucros e encargos trabalhistas”, afirma Jonatas Aredes, em nome da candidatura coletiva do UP. “Bispos como Edir Macedo, R.R. Soares e Silas Malafaia são milionários, não precisam de mais benefícios. Esse dinheiro das autuações faz falta no orçamento. O Governo cortou pela metade o auxílio emergencial. Nessa conjuntura é indefensável perdoar dívida de igrejas e líderes religiosos.”
O pastor Gregory Rodrigues também critica o presidente pela incoerência de vetar o perdão das dívidas e, ao mesmo tempo, recomendar a derrubada do veto. Ele conta que já abriu um templo inclusivo em BH, mas acabou fechando o espaço por falta de recursos financeiros. “Não é fácil manter uma igreja pregando a fé de forma responsável, sem um discurso tão enfático do dízimo.” Gregory enxerga a isenção de impostos sobre lucros das igrejas, defendida pela Frente Parlamentar Evangélica no Congresso, como uma afronta aos princípios do Estado laico. “Milhões de brasileiros estão impossibilitados de trabalhar por causa da pandemia, enquanto o Governo cogita perdoar 1 bilhão de reais das igrejas. Quantas famílias não seriam socorridas com esse valor? A mistura de militarismo, religiosidade e política é nefasta para o país.”
Na mesma linha, o pastor Ricardo Gondim, presidente da Igreja Betesda, de inclinação progressista, se posiciona contra a medida favorável às grandes corporações evangélicas. Aos 66 anos, ele recorda que, ao rever os valores dos mandamentos bíblicos que professava, se arrependeu “por ter promovido uma religião que condena, exclui e prefere punir ao invés de compreender”, em alusão à intolerância a seguidores LGBTs. “A igreja não pode fazer de conta que os homossexuais não existem. Jesus os acolheria. Nunca coube aos cristãos o papel de reprovar, condenar e hostilizar”, argumenta o pastor, que hoje defende a separação de Igreja e Estado, além de ações para desmistificar relacionamentos homoafetivos entre a comunidade evangélica. “Ser contra a homofobia é ser cristão.”
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