Padre Julio Lancellotti: “Não se humaniza a vida numa sociedade como a nossa sem conflito”
Líder religioso, conhecido por seu trabalho com a população em situação de rua em São Paulo, fala ao EL PAÍS sobre seus 35 anos de sacerdócio. Alvo de críticas da extrema direita, ele voltou a sofrer ameaças durante a pandemia
São oito horas da manhã de quinta-feira, 17 de setembro, e o padre Julio Lancellotti (São Paulo, 1948) veste jaleco branco, avental laranja, sandálias pretas, luvas de látex e uma máscara respiratória rosa com filtro embutido. Há uma fila de centenas de pessoas para tomar café da manhã no Núcleo de Convivência São Martinho de Lima, da prefeitura da capital paulista, e é o religioso quem aponta um termômetro para a testa de cada uma delas. Aos 71 anos, pertence ao grupo mais propenso a desenvolver complicações da covid-19, mas nem uma pandemia tão longa e mortífera freou sua convivência diária com a população que vive nas ruas de São Paulo.
Quando Cassiano, de 40 anos, se juntou à fila com o corpo sujo, as roupas rasgadas, machucado na testa e olhar triste, Lancellotti não hesitou em se aproximar e tocar a cabeça do homem com as duas mãos. “Nós vamos cuidar de você”, disse, com a voz suave. Quando ele já estava sentado e comendo, o padre se aproximou de novo para saber o que havia acontecido. Um abraço demorado cobriu então a cabeça do rapaz. Um carinho incomum que fez com que ele chorasse. “Não são anjos ou demônios. Eu procuro ver os olhos deles... Tem os que estão com raiva, tristes, solitários, alegres... Desses 40 anos, há quanto tempo Cassiano não recebia um afeto?”, pergunta Lancellotti.
Sua quinta-feira começou como todos os dias, com uma missa na Igreja São Miguel Arcanjo, da qual é pároco. Ali, no bairro da Mooca, zona leste de São Paulo, mantém há 35 anos um compromisso constante com a população em situação de vulnerabilidade. Costumava servir um café da manhã na própria igreja para cerca de 200 pessoas. Veio a pandemia e o número praticamente triplicou. As atividades tiveram de ser transferidas, com o aval da Prefeitura, para o centro comunitário a algumas quadras dali. “Eu não trabalho com morador de rua. Eu convivo com eles. Porque trabalhar parece que são objetos. É preciso olhar para a vida de forma humana. Isso não é tarefa só para os religiosos. Mas eu não conseguiria viver a dimensão religiosa sem humanizar a vida", explica.
Incômodo e ameaças
Lancellotti é vigário episcopal para a população de rua da Arquidiocese de São Paulo e destaca que tudo o que faz é em nome da Igreja Católica. Apesar de ter reduzido o número de missas e batizados e o horário de abertura da paróquia devido ao coronavírus, seu trabalho durante a crise sanitária atraiu a atenção de muitas pessoas, grande parte delas admiradas pelo esforço de um padre que se mobilizou até para cadastrar moradores de rua no auxílio emergencial do Governo Federal. Mas sua atuação também incomoda ―desde moradores de edifícios residenciais da região a políticos.
“Humanizar a vida significa entender que existe conflito. E você não humaniza a vida numa sociedade como a nossa sem conflito”, argumenta. Os últimos ataques partiram do deputado estadual Arthur do Val, conhecido como Mamãe Falei e membro do direitista Movimento Brasil Livre (MBL). Pré-candidato à prefeitura de São Paulo pelo Patriota, ele é crítico do trabalho de Lancellotti, a quem chegou a chamar de “cafetão da miséria”. Um ex-comandante da Guarda Civil Metropolitana e pré-candidato a vereador fez coro.
Na semana passada, um homem em uma motocicleta passou perto da paróquia gritando “ô seu padre filho da puta defensor de ‘nóia", e disse a catadores de materiais recicláveis que vivem na região que “meteria" fogo neles, segundo relataram ao sacerdote. Em outro momento, um homem que dirigia um carro abriu a janela do veículo e gritou “Mamãe Falei!”.
As ameaças não são uma novidade na vida do religioso. Ainda assim, os últimos episódios geraram uma série de preocupações de seu entorno. A Igreja Católica, que na capital é comandada pelo cardeal Dom Odilo Scherer, se uniu para defender seu membro. “Eu estou com ele. Constantemente, ele fala comigo sobre essas situações", disse o cardeal. "Mas saibamos: quem cuida dos pobres, vai sofrer junto com os pobres também. Sempre foi assim”. Já a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) publicou uma nota de solidariedade em sua defesa.
O prefeito Bruno Covas (PSDB), alvo de críticas do padre por conta das políticas públicas voltadas para a população de rua, também saiu em sua defesa. Em entrevista ao EL PAÍS na última quinta, o candidato à reeleição afirmou que ele era um “incômodo necessário para a Prefeitura não perder o foco”. Também disse que o religioso nunca pediu nada que não fosse direcionado aos mais vulneráveis. Naquele mesmo dia, o presidente do diretório estadual do partido Patriota, Ovasco Resende, entrou em contato com Lancellotti para se desculpar e repudiar a difamação promovida por Arthur Do Val. “Pedi que telefonasse para Dom Odilo e dissesse a mesma coisa. Também convidei ele e Arthur para uma visita e ouçam o que tenho a dizer”.
Ainda assim, o padre é cuidadoso e evita relacionar diretamente as ameaças ao parlamentar. “Não posso afirmar que tem a ver com Arthur. Mas minha preocupação não é que ele vá fazer algo contra mim. Ele só vai me xingar, mas não é ele quem vai me ameaçar. Ele só insufla”. Questionado por jornalistas sobre as ameaças recentes e por que alguns se incomodam com suas ações, ressalta a coerência com aquilo que defende. “Falo aquilo que vivo. Na pandemia, os irmãos de rua esperavam que eu estivesse aqui e não posso traí-los”, responde. Também falou sobre nunca ter aceitado as ofertas de escolta que já recebeu. “Então eu fico com a escolta e os moradores de rua ficam com o cassetete, com a tortura?”, questiona.
Inspiração em Jesus Cristo
Conforme o café da manhã chegava ao fim e Cassiano recebia os auxílios dos assistentes sociais da Prefeitura, Lancellotti retornou para sua paróquia, espécie de quartel-general. É de lá que distribui roupas limpas e cestas básicas, adquiridas por meio de doações, inclusive em dinheiro, para quem precisa. E onde recebe jornalistas, voluntários ou pessoas como Raimundo. Aos 33 anos e morando há 18 na rua, foi atropelado e precisou imobilizar a perna na Santa Casa. Aparecera dias antes com duas muletas, o gesso imundo e os pés ainda inchados. Na quinta-feira, já sem gesso, o padre tocou seu pé e o examinou de perto, com uma voluntária fisioterapeuta. “Agora preciso andar um pouco para me acostumar de novo”, afirmou o rapaz, que ganhou um par de chinelos, bermuda e casaco novos.
O religioso cita em vários momentos que Jesus Cristo é sua maior inspiração. “Jesus está do lado dos fortes ou dos fracos? Hoje em dia ele estaria no palácio de governo ou na cracolândia tomando bomba? A gente insiste em buscar Jesus na Igreja, mas ele insiste em ir para debaixo do viaduto", afirma. "Quando abracei Cassiano, eu abracei Jesus”.
Para o padre, as políticas públicas voltadas para a cracolândia —área do centro da cidade de venda e consumo de crack e outras drogas ilegais— precisam de uma mudança radical na abordagem. “O pano de fundo da cracolândia não é moral, é de saúde mental, de saúde pública, de afeto... Não precisa jogar bombas, precisa jogar direitos”. Acusado de fomentar o consumo de drogas nas ruas, ironiza: “Bom, se a cracolândia existe por causa do padre Julio, então pode me matar hoje. De manhã é o enterro e de tarde a cracolândia acabou".
O padre que cuida também é cuidado
Por volta de meio dia de quinta-feira, Lancellotti trocou o jaleco branco por um colete e o termômetro em forma de pistola por uma bengala de madeira. Se a Igreja São Miguel Arcanjo é seu quartel-general, na maior parte da tarde ele está circulando pela cidade, atendendo demandas ao lado de voluntários que se mobilizam diariamente para auxiliá-lo em suas andanças. Pelo aparelho celular, do qual não desgruda, recebe pedidos de socorro, é informado sobre ações da polícia, fala com autoridades, concede entrevistas, lê mensagens de solidariedade e se posiciona nas redes sociais. Nas noites geladas de inverno, mobiliza alguns desses voluntários para ajudá-lo a distribuir cobertores e barracas de madrugada. A energia parece infinita.
Nesse dia, porém, o padre que está sempre cuidando dos outros também vai receber seus cuidados. A primeira parada no centro da capital, no escritório do advogado e amigo Luiz Eduardo Rodrigues Greenhalgh, político e militante pelos direitos humanos desde a época da ditadura militar. Preocupado com a segurança de Lancellotti, indica medidas básicas de precaução e afirma que cada injúria deverá ser levada aos tribunais. “Não quero que você dê sopa para o azar. Não carimbe sua rotina, não ande sozinho”, sugere Greenhalgh.
Pausa para o almoço. A segunda parada é no Jardins, em uma clínica de medicina funcional e integrativa. Na consulta médica, na qual é atendido semanalmente e de forma gratuita, cuida de sua artrite e de sua imunização com injeções de ozônio. Os três testes de covid-19 que fez deram negativo, mas pessoas próximas se preocupam com seu ritmo de trabalho e sua exposição ao coronavírus. A consulta também serve para falar sobre si e cuidar da mente.
Rebelde desde sempre, ele conta que foi expulso do seminário aos 19 anos. Acabou estudando Pedagogia. Somente em 1985, aos 36 anos, é que estudou Teologia e foi ordenado padre pelo bispo auxiliar Dom Luciano de Almeida. Nunca pensou em entrar para a política institucional, mas diz que, entre os políticos com quem tem contato, conserva apenas uma amizade verdadeira: a da ex-prefeita Luiza Erundina, atualmente candidata a vice na chapa de Guilherme Boulos (PSOL).
Enquanto circula pela cidade no carro de uma voluntária, Lancellotti também lembra de alguns episódios de sua vida. Como na época dos protestos contra a Copa do Mundo de 2014. “A gente dizia que ‘O povo da rua é o primeiro eliminado da Copa’. Eu ficava com o pessoal da tática black bloc, que me dava máscara de proteção", recorda, entre risadas. “Um dia ficamos presos numa lan house sem janelas enquanto os policiais jogavam bomba de gás dentro. Achei que fosse morrer.”
No caminho, ainda passa na paróquia para pegar dez cestas básicas que serão dadas para os varredores da rua onde mora. Também faz questão de mostrar o solidéu que o Papa Francisco enviou de presente do Vaticano e de levar o EL PAÍS na paróquia Coração Eucarístico de Jesus e Santa Marina, em Vila Carrão, para contar sobre a santa por quem ele nutre profunda admiração. “Ela é protetora dos difamados, caluniados e perseguidos”, explica.
A identificação é inevitável. “Sinto pena de minha família. Por causa do que faço ficam cobrando muito eles”, afirma. O tom já não é questionador, mas emotivo. Ele é o segundo dos três filhos de Wilma Ferrari Lancellotti, sua principal referência familiar. Nunca deixaram de viver com sua mãe. Órfã ainda adolescente, ela precisou trabalhar desde cedo. Tornou-se datilógrafa. O padre recorda da época em que trabalhava com menores infratores da antiga Febem (atual Fundação Casa) e dos dias que havia rebelião. “Nas quintas, quando tinha feira na rua, minha mãe era hostilizada. ‘Aquele seu filho defensor de bandido!’”. Possivelmente o maior obstáculo que enfrentou em sua vida foi a acusação de pedofilia, da qual foi inocentado, por parte de um ex-interno da Febem, que acabou condenado em 2007 por extorqui-lo. Apesar da vitória judicial, o caso ainda é explorado por detratores do padre.
— Nos momentos mais difíceis eu deitava no ombro de minha mãe e dizia "estou precisando de um carinho”. Ela então me fala “você escolheu esta vida”.
— E agora, quem dá ombro amigo para o senhor?
— Pois é, agora não tenho um ombro para deitar. Mas tenho amigos. E tiro força da fé.
Wilma morreu em 2010, aos 88 anos. Até hoje Lancellotti segue vivendo na pequena casa que era de sua mãe, no bairro do Belém, com mais três sobrinhos —seus dois irmãos também já faleceram. Reserva os sábados para as tarefas domésticas. “Fazemos de tudo. Eu sou um lavador de banheiro mor”, conta.
A casa é rodeada por livros em estantes e empilhados nas mesas. Sua mãe era uma leitora voraz, e o padre faz questão de conservá-los. “Gosto dos meus livros, cada um tem uma vida. Não são só objetos”, afirma, enquanto mostra algumas de suas obras preferidas, o bilhete deixado por sua mãe dentro de uma delas e o sofá de madeira maciça, pesadíssimo, que pertencia a ela. Costuma sentar no canto direito, onde a matriarca da família sempre ficava. “Sinto sua presença quando estou sentado no sofá”, afirma. Já é noite, mas Lancellotti ainda encontra energia para participar de uma live, do sofá de sua mãe, para falar sobre as pessoas que moram nas ruas.