Flamengo não é “Brasil na Libertadores”, mas o país só fala do rubro-negro
Time carioca, adversário do River Plate, mobiliza legião de torcedores em busca de uma taça que só a geração de Zico conseguiu levantar

Galvão Bueno não vai narrar a final da Copa Libertadores entre Flamengo e River Plate. O narrador titular da Globo precisou ser substituído depois de sofrer um infarto em Lima, sede da decisão em jogo único. Mas seu célebre bordão, que sempre atribuiu a equipes brasileiras finalistas na competição o papel de representante do “Brasil na Libertadores”, continua permeando o imaginário que une torcedores e “secadores”. Ao contrário dos apelos ufanistas de Galvão, muitas torcidas, especialmente as dos rivais cariocas, não escondem sua preferência pelo time argentino, enquanto a avalanche de seguidores do clube mais popular do país faz loucuras para viajar até o Peru, encara quase uma semana dentro de um ônibus pelas estradas e toma as ruas em manifestações de apoio incondicional ao rubro-negro.
O ápice do sentimento flamenguista, que não via seu time chegar a uma final de Libertadores desde 1981, quando Zico marcou os gols do primeiro e único título da América contra o Cobreloa, aflorou na última quarta-feira. Milhares de torcedores escoltaram o ônibus da delegação rumo ao aeroporto do Galeão antes do embarque para a capital peruana. O fenômeno de massa conhecido como “AeroFla” não é novo na história do clube, mas acabou potencializado pelo fato de o Maracanã não abrigar nenhuma partida da final, deixando na mão rubro-negros que tentaram, sem sucesso, comprar ingressos ou carecem de recursos financeiros para bancar a longa viagem a Lima.
Relatos de torcedores que venderam carro, moto, móveis ou até largaram o emprego pela obsessão de acompanhar o time nessa jornada se cruzam com histórias de quem já havia agilizado transporte e hospedagem em Santiago, que acabou abrindo mão de sediar a decisão por causa dos protestos no Chile, e agora terá de se contentar em assistir ao duelo à distância. Como consolo à legião de aproximadamente 40 milhões de flamenguistas, seis estádios pelo país abrirão as portas para transmitir a partida. No Maracanã, que espera receber mais de 50.000 pessoas na tarde deste sábado, os cantores Buchecha, Ivo Meirelles e Ludmilla animarão o evento pré-jogo. A transmissão da final contará com dez telões de LED gigantes, com ingressos que variam de 55 a 640 reais – preço cobrado nos camarotes.
Outras Fan Fests com atrações musicais serão promovidas no Mané Garrincha, em Brasília, e no Kléber Leite, região metropolitana de Vitória. No Pará, torcidas organizadas como a Fla-Fla de Belém articularam com o clube um evento semelhante no Mangueirão, porém disponibilizando entradas a troco de um quilo de alimento não perecível. A arrecadação será destinada a ONGs e entidades sociais do Estado, em modelo semelhante ao organizado pela Arena Pantanal, em Cuiabá. Em São Paulo, o Museu do Futebol, no Pacaembu, também vai disponibilizar um telão aos rubro-negros.
Além dos bares, os flamenguistas podem assistir o confronto com o River em telas de cinema. Somente na cidade do Rio de Janeiro, oito salas estão equipadas para transmitir ao vivo a partida. Fora a mobilização despertada pela TV, a final da Libertadores consolida o rubro-negro como o “time mais comentado do mundo” nas mídias sociais, superando até mesmo as marcas globais de Barcelona e Real Madrid. Entre janeiro e agosto deste ano, segundo uma parcial divulgada pelo Twitter, nenhuma outra equipe de futebol recebeu tantas menções como o Flamengo. Apenas na semana do segundo jogo da semifinal diante do Grêmio, o clube carioca gerou um volume de quase 6 milhões de tweets. Contando todas as redes (Facebook, Instagram, Twitter e YouTube), o time da Gávea se tornou o primeiro do Brasil a ultrapassar a marca de 25 milhões de seguidores, de acordo com levantamento do IBOPE Repucom.
Badalado pelo desempenho desta temporada, sobretudo após a contratação do técnico Jorge Jesus, o Flamengo ainda ostenta média superior a 50.000 torcedores em seus jogos no Maracanã. A capacidade de arrastar multidões, entretanto, está longe de converter o time em unanimidade, nem mesmo às vésperas do embate contra uma equipe argentina. Indiferente à onda de euforia rubro-negra, grupos com diferentes motivações para “secar” o Fla engrossam sua audiência e a chuva de menções nas redes. Alguns torcedores do Vasco, por exemplo, chegaram a confeccionar camisas que mesclam o uniforme cruzmaltino com o do River – ambos distinguidos por uma faixa transversal.

A questão “Flamengo é Brasil na Libertadores?” também ganhou espaço na rotina de outros clubes brasileiros. Caso conquiste a taça, a equipe de Jesus abre automaticamente uma vaga para o torneio de 2020 via Campeonato Brasileiro. Na corrida pela classificação, times como Corinthians, Grêmio, Internacional e São Paulo podem se beneficiar com o título continental dos rubro-negros. Ainda assim, para o lateral espanhol Juanfran, contratado no meio da temporada, o elenco são-paulino segue indiferente ao jogo deste sábado. “Apesar de termos amigos lá, não podemos torcer para o Flamengo. Um time grande pensa em si mesmo, não nos demais. E nós somos time grande.”
Questionado sobre a decisão da América, o volante Matheus Henrique, do Grêmio, afirmou que, embora seu time tenha perdido para o Flamengo, vai torcer pelo representante nacional no duelo. “Não torço para argentino. Sou patriota. Eles nos eliminaram, mas que tragam o título ao futebol brasileiro.” Nem todos, no entanto, adotam o mesmo tom patriotista ao declarar suas predileções na final. Atacante do Palmeiras, principal concorrente do Flamengo no Brasileirão, Dudu reconheceu que prefere que o River Plate saia campeão. Já o argentino e torcedor do Boca Juniors, Joel Carli, zagueiro do Botafogo, rechaçou, em entrevista ao canal TyC Sports, a hipótese de apoiar o rival de seu atual clube. “Não digo que vou torcer pelo River porque meus amigos na Argentina me matariam, mas não quero que o Flamengo ganhe nada.”
Para espantar o mau agouro, o Flamengo confia no suporte de sua torcida, que comparecerá em peso ao estádio Monumental de Lima, mas, principalmente, na força do ataque puxado por Gabigol e Bruno Henrique (juntos, somam 69 gols na temporada) e na solidez de um conjunto orquestrado a partir das laterais pelos experientes Rafinha e Filipe Luís. Nessa inédita final única, que monopoliza a atenção de todas as torcidas – contra e a favor – no Brasil, o clube rubro-negro carrega a mística de “o mais querido” na tentativa de reconquistar a América exatos 38 anos após a geração de Zico arrebatá-la.