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Uma diplomacia paralela a serviço pessoal de Trump

Explosivo depoimento de um veterano diplomata detalha campanha de pressão à Ucrânia orquestrada pelo presidente dos EUA que surge depois de um mês de investigação do ‘impeachment’

Pablo Guimón
O presidente Trump nos jardins da Casa Branca.
O presidente Trump nos jardins da Casa Branca.SAUL LOEB (AFP)

Faz exatamente um mês, a denúncia de um informante anônimo, que relatou pressões do presidente Donald Trump ao seu colega ucraniano para investigar seus rivais políticos, levou os democratas a iniciar um impeachment, um processo extraordinário destinado a destituir o presidente por “crimes ou faltas graves”. Nessas semanas, desafiando ordens de Trump, uma série de diplomatas e funcionários do Governo prestaram depoimento, a portas fechadas, aos investigadores do Congresso. De seus depoimentos emerge um desenho explosivo da política externa da Administração Trump, que coloca o presidente em sérios apuros. O que se segue é uma reconstrução do que foi divulgado até agora:

1. “A Ucrânia é um objeto”

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O respeitado diplomata William Taylor, o mais alto representante dos Estados Unidos na Ucrânia desde junho, com meio século de serviço público nas costas, tem o hábito de fazer anotações minuciosas de todas as conversas profissionais que mantém. E com base nelas relatou na terça-feira, em seu depoimento no Congresso, “uma história de rancores, informantes, canais paralelos, quid pro quos, corrupção e interferência nas eleições” que coloca o presidente Trump em sérios apuros. “Nesta história”, acrescentou Taylor, “a Ucrânia é um objeto”.

Em maio, o ator cômico Volodymir Zelenski tornou-se presidente da ex-república soviética, que luta contra os esforços da Rússia para redesenhar à força suas fronteiras desde que a Crimeia foi anexada em 2014. É irônico que tenha sido alguém que passou toda a carreira “tentando fazer os ucranianos rirem”, como lembrou Zelenski em seu discurso de posse em Kiev, em 20 de maio, que pediu ao presidente dos EUA que levasse a Ucrânia “a sério” e não como mero “instrumento na política interna e eleitoral de Washington”. Mas isso foi enviado a Taylor, conforme este contou a Gordon Sondland, embaixador norte-americano na União Europeia, em uma mensagem de texto em 21 de julho.

2. “Quando um empresário vai assinar um cheque...”

O depoimento de Taylor, que começou com um texto explosivo de 15 páginas que se tornou público, descreve em detalhes uma campanha de pressão sobre a Ucrânia orquestrada por Donald Trump. Uma campanha, que o presidente nega há semanas, na qual os Estados Unidos fizeram seu relacionamento com um país aliado depender do compromisso deste em investigar seus adversários políticos. Segundo Taylor, em linha com outros depoimentos que os congressistas ouviram por estes dias, o presidente Trump reteve um pacote de ajuda militar vital para a Ucrânia no valor de 391 milhões de dólares (cerca de 1,474 bilhão de reais) e se recusou a agendar uma visita à Casa Branca tão esperada por Zelenski, até que este concordasse em fazer uma declaração pública comprometendo-se a investigar as atividades do ex-vice-presidente Joe Biden e sua família no país.

“Mais de 13.000 ucranianos foram assassinados na guerra, um ou dois por semana”, lamenta Taylor em seu depoimento. “Sem dúvida, mais ucranianos morrerão sem a ajuda dos Estados Unidos.”

Taylor disse que foi informado de que o pacote de ajuda à Ucrânia havia sido congelado “por ordem do presidente”. Quando tentou obter uma explicação de Sondland, o embaixador disse que a ajuda estava condicionada a Zelenski ordenar a abertura das investigações que Trump lhe havia solicitado em uma conversa por telefone em 25 de julho. Ele recorreu a uma comparação extravagante. “Quando um empresário vai assinar um cheque para alguém que lhe deve algo, o empresário pede que essa pessoa lhe pague antes de assinar o cheque”, diz Taylor que Sondland lhe explicou.

3. Um canal diplomático “regular” e outro “altamente irregular”

Nas últimas três semanas, em uma discreta sala do Capitólio, depois de uma placa que indica “área restrita”, meia dúzia de diplomatas e funcionários da Casa Branca prestaram depoimento perante os congressistas encarregados de investigar o impeachment do presidente. Há exatamente um mês, os democratas lançaram esse processo excepcional de destituição previsto na Constituição ao considerar, depois de uma denúncia de um informante anônimo, que o presidente pode ter pressionado seu colega ucraniano, abusando de seu poder, a investigar seus adversários políticos.

Os resultados dessa investigação estão sendo devastadores para o presidente. E os esforços de Trump para boicotá-la estão se mostrando pouco frutíferos, a julgar pelo número de testemunhas que, desafiando suas ordens, foram ao Capitólio para contar sua versão. A difícil situação do presidente é comprovada pelo fato de que na terça-feira ele chegou a falar em “linchamento”, termo que tem sérias conotações racistas nos EUA.

Das mais de 50 horas de depoimentos a portas fechadas, uma história vai emergindo com clareza: a de um presidente orquestrando uma política externa na sombra, em detrimento da diplomacia oficial, com o objetivo de pressionar um Governo estrangeiro para atender seus interesses pessoais.

“Encontrei um arranjo confuso e inusual para a política dos Estados Unidos em relação à Ucrânia”, afirmou Taylor. “Parecia haver dois canais (...), um regular e outro altamente irregular. Como chefe de missão, eu tinha autoridade sobre o regular (...). Ao mesmo tempo, porém, havia um canal irregular, informal, que incluía o enviado especial Kurt Volker, o embaixador Sondland, o ministro da Energia Rick Perry e, como descobriria mais tarde, [o advogado pessoal de Trump, Rudy] Giuliani”.

4. “Os três amigos”

Volker, Sondland e Perry se autodenominavam “los tres amigos” (em espanhol). Com exceção de Volker, que foi embaixador na OTAN entre 2008 e 2009, não tinham nenhuma experiência diplomática. E lhes unia a uma relação de confiança com Trump. Em 23 de maio, segundo o depoimento aos congressistas de um alto funcionário do Departamento de Estado, foi realizada uma reunião em que o chefe de Gabinete, Mick Mulvaney, explicou que a política com a Ucrânia sairia dos canais oficiais e seria coordenada por meio dos três amigos. Pouco antes o Governo havia chamado de volta a embaixadora em Kiev, a respeitada diplomata María Yovanovitch, que, em seu recente depoimento aos congressistas, denunciou uma campanha de assédio e derrubada contra ela orquestrada por Giuliani.

Tudo o que se relacionava à Ucrânia, deu a entender o presidente aos três amigos, tinha de passar por Giuliani. Algo que surpreendeu até mesmo Sondland, um empresário de hotelaria que comprou por um milhão de dólares, como doação à posse de Trump, sua indicação para representar o país na União Europeia. Causou-lhe estranheza porque Giuliani não tem nenhum cargo relacionado à política externa. O ex-prefeito de Nova York sequer faz parte do Governo. É o advogado pessoal de Donald Trump.

“Eu não teria recomendado que Giuliani ou qualquer outro cidadão particular se envolvesse nesses assuntos de política externa”, disse Sondland em seu depoimento.

5. Giuliani, “uma figura central”

O nome de Giuliani é repetido em todos os depoimentos, e o informante anônimo que deu origem ao impeachment o menciona 31 vezes em seu relatório e deixa claro, a partir do segundo parágrafo, que o ex-prefeito de Nova York é “uma figura central” na trama. O próprio Giuliani, que faz negócios na Ucrânia desde meados da década passada, não teve nenhum escrúpulo em reconhecer publicamente que tentou obter de autoridades ucranianas algo que incriminasse Biden, candidato democrata favorito a enfrentar seu cliente em 2020.

Giuliani e Trump viram um valioso potencial para seus interesses políticos em uma série de teorias conspiratórias, entre elas uma que inclui a mão invisível do bilionário filantropo George Soros e outra não menos desacreditada que aponta que a Ucrânia ajudou os democratas nas eleições de 2016. Segundo outra dessas teorias, o vice-presidente Joe Biden teria pressionado a Ucrânia a abandonar uma investigação à companhia de gás Burisma, em cujo conselho seu filho Hunter permaneceu por cinco anos. A verdade é que Hunter Biden nunca foi acusado de nada pelas autoridades ucranianas. Seu pai, que teve um papel na diplomacia norte-americana em relação à Ucrânia durante a presidência de Obama, pressionou na época pelo afastamento de um procurador muito criticado por sua incapacidade de combater a corrupção, mas a investigação à Burisma foi arquivada antes que o ex-vice-presidente fizesse algo.

Que um advogado procure informações beneficiosas para seu cliente na Ucrânia não teria nada de errado. O problema seria se fosse demonstrado que o próprio presidente usou a política externa para pressionar um Governo estrangeiro, com dinheiro do contribuinte, para abrir essa investigação com vistas a seu próprio benefício eleitoral. É por isso que Trump insiste que não houve quid pro quo: que o “favor” que pediu a Zelenski por telefone era em troca de nada. Uma linha de defesa que, até agora, foi rechaçada por boa parte dos depoimentos aos congressistas e até pelo chefe de Gabinete interino da Casa Branca, Mick Mulvaney, embora depois tenha querido nuançar suas palavras.

Nos dois processos anteriores de impeachment contra Richard Nixon e Bill Clinton, sobre o encobrimento dos escândalos Watergate e Monica Lewinsky, respectivamente, processos que não prosperaram, mas foram letais para os dois presidentes, o que estava em jogo era a integridade da democracia e da justiça. Neste impeachment contra Trump se junta a política externa em grande escala da principal potência mundial. Portanto, se o que Taylor e as outras testemunhas estão denunciando se consolidar, será mais difícil para os republicanos qualificarem as acusações de menores ou partidárias e se oporem à destituição, se o processo chegar ao Senado.

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