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Argentina e Chile se envolvem em uma disputa marítima no extremo sul da América

Governo de Buenos Aires acusa seu homólogo andino de se apropriar de 5.500 quilômetros quadrados de sua plataforma marítima em uma das regiões mais austrais do planeta

Frente a la bahía de Ushuaia, la ciudad más austral del mundo, en Tierra del Fuego
Diante da baía de Ushuaia, a cidade mais austral do mundo, na Terra do Fogo, ergue-se o farol Les Éclaireurs (Os Iluminadores, em francês) sobre um pequeno ilhote. Desde 1920 sua luz branca e vermelha guia os navegantes que entram no Canal de Beagle.Minsterio de Turismo

A palavra que mais se repete no Ministério das Relações Exteriores da Argentina é “surpresa”. Quando menos esperavam, dizem, o Chile decidiu por decreto ampliar sua plataforma continental em 30.500 quilômetros quadrados. Segundo a Argentina, 5.500 lhes pertencem e o restante é patrimônio universal. “O Chile, com esse decreto intempestivo, se apropria”, acusou o ministro das Relações Exteriores argentino, Felipe Solá. “Ninguém se apropria do que lhe pertence”, respondeu seu homólogo chileno, Andrés Allamand.

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Ambos os países se envolveram em uma acirrada disputa territorial. As relações bilaterais ficaram mais sombrias do que nunca desde a disputa que em 1978 os levou à beira de uma guerra. A mediação do papa João Paulo II pôs fim em 1984 à luta por três ilhas localizadas ao sul do Canal de Beagle, no extremo sul do continente. Os limites impostos por esse Tratado de Paz e Amizade são os que agora estão em tensão. O texto do acordo assinado há 37 anos estabeleceu que a oeste do 67º meridiano o Chile tem soberania, e a leste, a Argentina. O problema é que essa linha se corta no chamado “ponto F”, e foi ao sul desse ponto imaginário que o Chile projetou sua plataforma marítima para o leste.

Em relatório apresentado ao Senado argentino na quarta-feira, o chanceler Solá disse que “o Chile não pode pretender projetar sua soberania para além dos limites acordados no Tratado de Paz e Amizade de 1984”. “O Chile tem o direito de estar a oeste do meridiano, não tem o direito de estar a leste do meridiano”, disse. A tensão aumentou no ano passado, quando a Argentina transformou em lei os novos limites de sua plataforma continental que em 2017 foram reconhecidos pela Comissão de Limites de Plataforma Continental das Nações Unidas. Durante esse processo, iniciado em 2009, a posição argentina recebeu reclamações de seis países. Entre eles estava o Reino Unido, por suas pretensões sobre as Ilhas Malvinas, mas nunca do Chile, um passo que teria bastado para que a comissão suspendesse seus trabalhos sobre a área agora em disputa. O Chile nega não ter apresentado queixas. A Argentina aponta uma nota de 2016, mas afirma que só manifestou uma preocupação sobre a Antártica, sem menção alguma à plataforma continental.

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Do lado chileno, a posição é outra. O Chile, dizem, não reivindicou nem reclamou, mas simplesmente atualizou sua Carta Náutica nº 8 de acordo com a Convenção sobre os Direitos do Mar, que tem o conceito de plataformas continentais, explica o democrata-cristão Ignacio Walker, ministro das Relações Exteriores da centro-esquerda entre 2004 e 2006. “Não tiramos nenhum coelho da cartola”, acrescenta. Segundo Walker, os dois países estavam “absolutamente tranquilos” até 12 anos atrás, porque o Tratado de Paz e Amizade de 1984 havia estabelecido o limite marítimo ao definir o ponto F no mar austral. Mas a Argentina, “por uma iniciativa unilateral”, apresentou em 2009 ao organismo competente das Nações Unidas seu argumento sobre a plataforma continental ampliada, ou seja, ultrapassando as 200 milhas. “Ampliou unilateralmente o limite marítimo 23 quilômetros ao sul do ponto F”, relata o ex-chanceler chileno.

Mapa elaborado pelo Ministério das Relações Exteriores da Argentina que mostra em azul a porção da plataforma marítima disputada com o Chile.
Mapa elaborado pelo Ministério das Relações Exteriores da Argentina que mostra em azul a porção da plataforma marítima disputada com o Chile.Cancillería argentina

“O Chile nem sequer se opôs formalmente em 2009, e poderia tê-lo feito, porque não queria agravar nenhum conflito e buscava dar um sinal de diálogo”, lembra Walker sobre esse episódio que aconteceu no primeiro Governo de Michelle Bachelet (2006-2010). Segundo o ex-ministro, o Chile apresentou uma nota diplomática ―que não deve ser minimizada, segundo Walker―, dizendo que o que a Argentina estava fazendo era inoponível (porque o aforismo jurídico indica que as questões se desfazem como se fazem, ou seja, bilateralmente e não unilateralmente) e que os direitos marítimos do Chile estavam a salvo à luz do Tratado de Paz e Amizade e da Convenção sobre os Direitos do Mar. “Alguns poderão apontar que foi uma omissão, mas trata-se de uma via legítima e habitual da diplomacia entre dois países”, indica o democrata-cristão.

Assim como a Argentina invocou a Convenção sobre os Direitos do Mar para a plataforma continental ampliada, o Chile invocou a mesma Convenção sobre os Direitos do Mar “para dizer que a plataforma continental tem 200 milhas náuticas a partir das ilhas Diego Ramírez”, afirma Walker. O argumento argentino é que “o Chile pegou um compasso, que apoiou na ilha Diego Ramírez, calculou as 200 milhas e em vez de parar no meridiano 67, deu toda a volta”, segundo uma fonte do Ministério das Relações Exteriores. O que está em jogo agora é a qualidade das relações bilaterais. Para a Argentina, os dois países tinham estabelecido uma agenda positiva à qual agora “o Chile coloca um manto que cobre tudo”.

A questão não é menor. O ministro das Relações Exteriores chileno, Allamand, está em viagem pela Espanha e reservou um momento para gravar um vídeo que postou no Twitter pedindo à Argentina “negociar” uma saída consensual, aproveitando que o Tratado de Paz e Amizade já estabelece mecanismos internos para isso. No Ministério das Relações Exteriores, porém, consideraram que ainda é cedo para um diálogo. “Nossa posição agora é informar e não vamos nos cansar de informar enquanto for tempo de informar. Temos um direito adquirido e vamos defendê-lo”, diz a mesma fonte do Palácio San Martín, em Buenos Aires. A solução, seja ela qual for, pode levar anos. Se não houver acordo, a disputa terminará em um tribunal internacional.

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