_
_
_
_
_

Baltasar Garzón: “O Direito está sendo usado para fins de perseguição política no Brasil e no mundo”

Jurista espanhol, que ficou famoso por deter o ditador Augusto Pinochet em Londres, vê um risco no Judiciário brasileiro por tirar o foco dos fatos para personalizar sentenças, em referência ao ex-presidente Lula

Baltasar Garzón, jurista espanhol
Baltasar Garzón, jurista espanholF.Cavalcanti

Baltasar Garzón (Torres, Espanha, 1955) ascendeu muito cedo, ganhou holofotes por sua luta contra a corrupção, o narcotráfico e o terrorismo, e por colocar a Justiça num patamar ambicioso de alcançar poderosos e levá-los para a cadeia. Essa descrição pode lembrar um personagem famoso para o Brasil, que atende pelo nome de Sergio Moro. Mas a aparente semelhança entre o atual ministro da Justiça do Brasil e o magistrado espanhol, hoje suspenso de suas atividades, é superficial. Enquanto Moro fez fama internacional com a Operação Lava Jato que destrinchou grandes empresas, Garzón tem nos direitos humanos sua profissão de fé. Ficou mundialmente conhecido quando em 1998 decretou a prisão do ditador Augusto Pinochet enquanto o chileno fazia tratamento de saúde em Londres.

Embora tenha se notabilizado por suas batalhas jurídicas que inspiraram magistrados, como o próprio Moro, Garzón amargou, em 2010, a perda do direito de exercer a magistratura por 11 anos. A Corte Suprema espanhola condenou o notável juiz por prevaricação durante a investigação de uma trama que envolvia dezenas de políticos do conservador Partido Popular (PP). Garzón utilizou-se de escutas para gravar conversas de seus investigados com advogados de defesa na prisão. Reinventou-se como defensor de figuras consideradas malditas nos Estados Unidos, caso de Julian Assange e Edward Snowden, que divulgaram informações secretas da Agência Nacional de Segurança no caso que ficou conhecido como Wikileaks. É também uma das vozes que defendem o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no mundo.

Mais informações
De tornozeleira eletrônica na aula de ‘compliance’
Lava Jato planejou buscar na Suíça provas contra Gilmar Mendes

Pergunta. O senhor integra uma rede internacional de juristas que busca alertar para o retrocessos que podem ser causados por governos como os de Trump, Bolsonaro, ou o da Polônia. Tem sido eficiente?

Resposta. O mundo não é como quando o fascismo começou a tomar forma, nos anos 1920, 1930 [do século XX], e depois o nazismo. Essa experiência nefasta para a humanidade, que foram Hitler e o nazismo, e tudo o que aconteceu depois foi nos mostrando as presas da fera. Agora começa uma época que se estende pelos últimos cinco, seis, sete anos, em que se ouve de novo o discurso negacionista. Mas transforma-se o que então era fascismo em xenofobia, em ódio ao diferente, ao imigrante, a procurar lá fora a causa dos problemas que temos como sociedade e como sistema. Surge uma série de indivíduos ou de colocações neofascistas, ultraliberais, que procuram essa posição que se apresenta como ameaçadora à democracia. E isso produz uma resposta, que vem da própria sociedade, das próprias vítimas, dos próprios coletivos de direitos humanos, em advertência, como um alarme.

P. Qual papel o Judiciário ocupa nos países hoje?

"Denunciemos a utilização do Direito com finalidade política de luta contra a corrupção"

R. Os coletivos de juristas observam que alguns países, como a Polônia e Hungria, buscam submeter o Poder Judiciário. Outros, como o Brasil e Argentina, também utilizam ou podem utilizar o Poder Judiciário para determinadas propostas. Por outro lado, na Turquia, há ataques diretos aos meios de comunicação e a jornalistas independentes. Ou então no caso dos EUA, a perseguição a Snowden e Assange. [Esses fatores] começam a interagir. E isso é o que agora mesmo estamos vendo no caso Lula. Vemos, do ponto de vista internacional, certos alarmes que nos dizem que o Direito está sendo usado politicamente para fins ou com fins políticos de perseguição. Há ações universais, coordenadas, perante ameaças que estão vindo dessa extrema direita, desse neopopulismo, dessa ação populista neofascista, que tenta reverter a história e reconquistas obtidas por parte da sociedade, essencialmente no âmbito de direitos humanos. Esse é o fato novo. Estruturas jurídicas que já estavam em funcionamento, em casos nacionais e internacionais. A universalização dessas iniciativas já ocorreu, em algum momento histórico, como na época da detenção de Pinochet através da jurisdição universal, que foi uma explosão de ações e utilização de mecanismos que estavam aí para fazer frente à impunidade. Agora se colocam em movimento para prevenir, evitar ou impedir que se consolidem essas novas ações. Protejamos quem denuncia. Mas também é preciso denunciar quem pode abusar. Por exemplo, as delações premiadas. É preciso saber quais são os limites. Denunciemos a utilização do Direito com finalidade política de luta contra a corrupção, que segmenta a ação e esquece outra parte. E, ao final, se torna uma arma política para promover um candidato em detrimento de outro.

P. O senhor está descrevendo o Brasil de 2014 para cá?

R. É que é assim. Não posso senão estar de acordo com a luta contra a corrupção, absolutamente. Mas é que, quando entram em marcha todos os mecanismos de luta, é preciso ter um cuidado absoluto, porque haverá muitos interesses cruzados, que podem apostar em determinados interesses ou finalidades que não são de forma alguma os que a Justiça representa. E podem ser instrumentalizados. De alguma forma é o que aconteceu aqui [no Brasil]. Aqui havia, muito claramente, interesse por parte de grandes estruturas econômicas, corporativas, de que o Governo do PT, fosse de Lula ou Dilma, não continuasse. O impeachment de Dilma, do meu ponto de vista, foi um golpe de Estado brando, como foi o do [presidente paraguaio Fernando] Lugo e como foi em outros casos. Portanto, isso acontece e, quando acontece e são usados os mecanismos da Justiça, é preciso sermos extremamente exigentes com as garantias. Porque, se não formos, é muito fácil que vire uma perseguição ao homem, e não uma investigação do fato. Acredito que seja isso que aconteceu por aqui.

P. Como vê o ex-juiz Sergio Moro?

R. Sou da opinião que, se você está atuando como juiz, não pode ficar opinando sobre o que faz e compartilhando o que faz. Eu não entendo um comentário ou um tuíte, no Facebook ou em outra rede social, de um juiz que está trabalhando. Não entendo isso nem justifico. Os princípios da imparcialidade e independência são centrais.

"Moro está no poder agora com Bolsonaro e a verdade é que eu mal consigo entender isso"

P. Mas ele só começou a usar o Twitter depois de virar ministro da Justiça.

R. Mas o que vimos depois, as revelações do The Intercept, são o cúmulo das mensagens ou comunicações que havia com o Ministério Público, supostamente. [Deveria prevalecer] sempre o princípio de presunção de inocência num sistema como o brasileiro, em que há uma separação absoluta entre o Ministério Público e o juiz. Porque o juiz dita a sentença. Não é como na Espanha. Lá, o juiz de instrução investiga, o promotor investiga. Ao final há um tribunal que decide sobre as garantias e medidas cautelares, e outro tribunal, que não tem conexão nem com o intermediário nem com o juiz,  julga. Garante-se absoluta imparcialidade. Aqui, não. Se pessoas que tiverem que estar em um lugar e em outro estabelecem laços de conexão, surge a dúvida. Não duvido que se cometam crimes ou não. Depois quem tiver que decidir decidirá. Mas a partir do momento em que há essa interconexão, a credibilidade sobre a imparcialidade se perde.

P. O senhor leu a sentença que levou o ex-presidente Lula à prisão? Vê falhas?

R. Eu a acho muito inconsistente, são elementos circunstanciais, e não há uma base juridicamente objetiva e defensável para uma condenação. É uma opinião jurídica. Mas acho que não havia elementos para considerar que Lula fosse partidário de ser sujeito ativo de uma corrupção passiva.

P. Mas há muitíssimos elementos, provas que mostram transações em dinheiro etc...

R. Nenhuma diretamente com Lula.

P. Não dele em particular, mas há demonstrações de que o partido deixou que se construísse ou que fossem aprovados esquemas de corrupção…

R. No que se refere ao conteúdo da sentença e do julgamento, não tenho que opinar além da análise externa de uma resolução para a qual, já naquele momento, estabeleci a posição sobre a investigação, porque via que havia uma direção determinada com relação a um espectro político, concretamente do PT e do presidente Lula, que tinha uma influência política e a teve, sem lugar a dúvida, acelerando prazos, tomando decisões mais que discutíveis, semeando todo um procedimento com dúvidas e irregularidades. Até que se chegou à sentença para evitar que houvesse uma apresentação eleitoral de uma candidatura, e que depois se revelou que de alguma forma havia, não sei se uma conexão ou pelo menos um interesse, ou se este surgiu depois, quando o juiz Moro foi nomeado ministro da Justiça. Mas todos esses elementos influem, embora as provas tivessem sido mais ou menos consistentes, em contaminar todo o cenário. Esse é o problema. Já não é só quantos indícios havia ou quantos elementos podiam ter sido levados em conta, mas sim que quem os usou estava de alguma forma violando os limites, ao manter essa comunicação permanente com o Ministério Público. Se isto é proibido pelo sistema processual brasileiro, então tem que haver consequências. Mesmo que os elementos fossem definitivos.

P. O ministro Gilmar Mendes já disse que havia coisas a serem revistas.

R. Sim, coisas a serem revistas, porque afinal o que temos é que há uma pessoa condenada a oito anos da prisão e que esse procedimento agora está se comprovando que não foi totalmente limpo. Esse é o problema. O problema é: até onde chega a contaminação? Até onde chega a dúvida? Bom, são os tribunais que terão que dizer.

P. Os procuradores da Lava Jato e o ex-juiz argumentam que tudo foi ratificado pelas instâncias superiores.

R. Ratificariam agora depois de conhecer as revelações? Para mim, é incompreensível.

P. Também tivemos, durante um julgamento no Supremo [do pedido do habeas corpus de Lula em abril de 2018], um representante do Exército [General Villas Boas] insinuando um posicionamento da instituição contra a soltura de Lula

R. Isso é uma intimidação muito clara contra a independência do Judiciário. Isso é uma interferência grave. Isso, não sei, no meu país, na Espanha, teria se armado um reboliço se o Exército sugerisse que pode haver ruído de sabres. Os caminhos das instituições têm que ser perfeitamente independentes. E se depois houver um abuso ele deve ser punido. O que não se pode fazer é incidir em um âmbito político utilizando armas judiciais. Não é possível, ao menos para mim, utilizar o Direito para fazer uma interferência política, por mais arriscada que seja, não é evidentemente um mecanismo democrático. Porque, se da investigação judicial ficar demonstrado que houve uma relevância ilícita delitiva, ficará demonstrado em dado momento, e nesse momento é que se deverá produzir o efeito. Mas não utilizar essa investigação para que interfira em um processo político.

P. O senhor acredita que as democracias latino-americanas são mas suscetíveis à pressão social contra instituições? Porque essa acabou sendo uma justificativa do general no ano passado [“o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia”], repetido na semana passada, mencionando o risco de “convulsão social”.

R. Conheço os argumentos dos militares, sobretudo quando tomam para si a defesa da democracia através do Twitter. Deixam muito a desejar. Porque o Exército sempre deve estar submetido ao poder político. Constitucionalmente tem sua função e não tem que advertir sobre nada, porque isso soa mal. O que ocorre é que as instituições democráticas precisam ser empoderadas, fortalecidas, e são fortalecidas com a independência, não com o isolamento entre poderes. A separação e a independência de poderes são uma coisa, e a submissão de um a outro é algo bem diferente. Foi o que aconteceu em alguns países da região latino-americana, e que também se viu em outras partes do globo, não? Se há uma mudança política, se a Justiça é utilizada como uma arma imediata contra o sistema ou o regime anterior, seja ele qual for...  Não é possível que os regimes populares que houve, de esquerda, tenham cometido tantíssimos crimes como se lhes imputa. Não tiveram tempo de cometer tantos crimes. Porque um pouco de Governo tiveram que fazer, não? Parece que não existiam, só para delinquir.

P. Essa leitura —de que existiam para delinquir— foi questionada.

R. Então me parece um excesso e, o excesso suscita a dúvida. Porque não é que se selecione ou se priorize. Não. É  necessário investigar o fato. E se o fato deriva de fortes indícios de que uma autoridade política tem uma responsabilidade criminal, que se exija. A questão não é que seja Lula ou Bolsonaro ou qualquer presidente ou chefe de Governo quem esteja supostamente envolvido em uma trama. É que é preciso demonstrar, e acima de tudo no caso dessa autoridade máxima, com uma resolução muito maior, distinguir a responsabilidade política do que é responsabilidade jurídico-penal, porque aqui somos iguais. E se houve uma má prática, se houve determinada condescendência com práticas irregulares, muito bem, que sofra sanções politicamente. Mas, daí a passar para atos criminosos, certamente exige uma investigação digna de crédito, clara, contundente e, sem dúvida, limpa. E é isso que acredito que não aconteceu aqui, como estamos vendo. Para mim, estamos no turbilhão em que estamos porque precisamente essas margens não foram respeitadas. Não posso acreditar que todos os líderes da esquerda sejam corruptos e os da direita ninguém os persiga.

P. O senhor acredita que estamos vivendo uma era de democracias cínicas, em que a mentira?..

R. Sim, bem, já falamos de fake news, falamos já sem rodeios: dizemos que não é que isto seja mentira, mas me serve. É que, se alguém lê a história, percebe como é isso. Volto a dizer: há um poder, não vou dizer absoluto, mas absolutamente prepotente e preponderante, que é o poder político, neste caso, de um presidente republicano. Na outra opção da balança estão elementos absolutamente vulneráveis da sociedade. O que podemos dizer quando há um discurso como o do governador do Rio de Janeiro, que diz que a ação violenta das forças de segurança é a única via para acabar com o crime? E vemos como até se tenta justificar a morte da menina Ágatha, dizendo: "Não, é que se perseguia um grupo criminoso".

P. É uma resposta-padrão da polícia no Brasil.

R. Já ouvi muito sobre isso. Ouvi nos anos 70, na ditadura argentina, ouvi na ditadura franquista, que sempre se justificava, e o que se faz é ocultar a ineficácia absoluta. Por quê? Porque não há mais medidas políticas, porque recorrem a mecanismos de repressão, e são as mesmas receitas, só que com outros nomes. E é isso que contribui para uma subtração de direitos, uma espécie de volta atrás, de perda desses direitos que já pensávamos que estavam consolidados e dormimos. Entramos naquela afirmação do poeta da Idade Média que dizia: "Nunca se conquista um reino para sempre". Ou seja, os direitos humanos, a democracia, não estão conquistados para sempre. Quando caímos na armadilha de dizer que já temos tudo, aí começa outra vez a volta para trás e o perigo. E foi isso que aconteceu conosco agora. Renunciamos à luta contra as fake news, porque é tal o poder das redes sociais e da comunicação que é impossível se contrapor a ele. Eu coordeno a defesa de Julian Assange. Alguém se pergunta: por que não se investiga nada que o WikiLeaks denunciou nos Estados Unidos? Por que, quando você assiste a um vídeo onde se vê, se observa nitidamente o metralhamento de civis no Iraque, esse assunto nunca foi investigado? E, no entanto, investem-se esforços, recursos em perseguir a pessoa que supostamente editava esse veículo.

P. A extrema direita cresce enquanto estamos anestesiados?

R. Eles usam os mecanismos democráticos, usam a linguagem democrática para atacar a própria democracia. E isso até mesmo pode ser democrático. Mas é preciso desvendar isso, é preciso detectar, é preciso denunciar e punir quando for possível, porque uma coisa é que, no quadro democrático, você pode até ter abordagens contra a própria democracia. Outra coisa é deixar que atuem para romper a democracia. Não é controlar, não é evitar ou proibir a liberdade de expressão como Erdogan pode fazer na Turquia. Há liberdade de expressão, vocês podem atacar o próprio sistema, agora, se o que é realmente detectado já é uma transgressão que ocorre ou que rompe esse sistema, tem que ser perseguido, obviamente. Insisto, a democracia não é conquistada para sempre. Não vai resistir se não a defendermos. Devemos até mesmo defendê-la daqueles que, a partir do próprio sistema, tentam destruí-la.

P. O México acaba de passar pela renúncia de um ministro do Supremo e o Peru enfrenta um jogo de forças entre o Congresso e o presidente para modificar a estrutura da sua Corte Suprema. Como o senhor avalia esses casos?

R. São casos diferentes do que está acontecendo em outros países da região. Na renúncia do ministro Eduardo Medina Mora no México, houve uma reação imediata do mesmo da qual poderia se dizer de uma decisão que o honra, porque diante do menor questionamento sobre sua honra, e ainda que discordando da informação publicada, o juiz apresentou sua renúncia, o que facilita a consolidação da crediblidade do máximo organismo judicial mexicano, sem ter afetada a  presunção de inocência. No caso do Peru, a questão é mais complexa. O presidente Vizcarra dissolveu o Parlamento e convocou eleições para que o povo fale e dessa forma egite a instrumentalização que se tenta fazer por alguns grupos políticos para fazer justiça. A atuação da Justiça peruana, em seu mais amplo sentido, com as dificuldades que enfrenta, está respondendo inclusive descobrindo os comportamentos corruptos que podem existir dentro da mesma. Um exemplo foi a detenção na Espanha e a extradição de uma alta autoridade judicial acusada de corrupção. As respostas judiciais precisam ser contundentes, mas proporcioinais e especialmente transparentes para que os cidadão não percam a confiança em quem, no final, são o último reduto da defesa dos direitos.

P. O senhor viveu uma situação muito particular com a suspensão por 11 anos da magistratura na Espanha.

R. Já se passaram nove anos e meio. Parece que foi ontem... Mas hoje me sinto alegre e recompensado com uma espécie de justiça poética. Finalmente, os restos mortais do ditador Francisco Franco precisam ser exumados do Vale dos Caídos, onde houve uma das maiores aberrações que podem ocorrer: os restos mortais do agressor repousam junto com os das vítimas, que foram depositadas ali sem nenhum dano, conhecimento ou autorização dos membros da família. Muito tempo depois do que deveria, deu-se lugar ao triunfo das vítimas. [Garzón defendia a retirada dos restos do ditador daquela região, que acontece nesta quinta-feira]. Portanto, hoje estou feliz por isso.

P. Mas o senhor se frustra?

R. Entrei na carreira judicial porque queria ser juiz e porque acredito que é um serviço público que deve ser prestado à sociedade. E fazer isso como marca a lei, com independência, com a legalidade, pode te levar às vezes a graves consequências. No meu caso, alguém pode me dizer: "Bem, mas o senhor foi condenado por ter aplicado mal uma lei". Bem, eu discordo, mas admito o sistema e, portanto, estou lutando com as regras que ele me permite. Eu sou da opinião de que a interpretação de uma lei, que é algo diferente do que é essa contaminação subjacente, mas à luz do público, acho que não tem nada a ver, ou seja, ninguém pode sofrer sanções por interpretar uma lei, quando também o faz sob o amparo de parâmetros internacionais. Mas são os custos da investigação do crime organizado, corrupção etc. Alguém pode dizer: "Mas, ei, isso também acontece com o juiz Moro?"

P. Isso.

R. Eu poderia dizer: Sim, é muito provável. Mas estamos em uma área em que essa pesquisa precisa ser aberta. E se houve uma transgressão desses espaços e houve uma contaminação de efeitos concatenados que podem levar ao cancelamento de processos e afins, eles devem ser investigados e estabelecer sanções, porque ninguém está acima da lei. E no meu caso, pode-se dizer: bem, você foi condenado. Sim, e o assumo ainda que não compartilhe [com a decisão], porque acredito que a interpretação que fiz não foi apenas justa, mas foi reproduzida, seguida por outros juízes que nunca foram perturbados. No meu caso foi assim. Era uma conjuntura histórica muito específica e, bem, aqui estamos. Continuo lutando pelos meios limpos, continuo dizendo que a corrupção deve ser combatida a partir da legalidade. Mas não ir além, a ponto de prejudicar a própria luta contra a corrupção.

P. Incomoda ser comparado ao Moro?

R. Não. Conheci Sergio Moro em um evento em Lisboa há alguns anos e ele me disse que eu era um exemplo de juiz. Eu agradeci e lhe disse continuasse seu trabalho, mas também lhe disse para sempre lutar com as armas que a lei nos dá. E fazê-lo como o fez Falcone, assim como Borsolino, que lhe custou a vida ou o emprego. A outros lhes custa a privacidade, paz etc. Bem, no caso de Moro, ele está no poder agora e está no poder com quem o nomeou e, a verdade é que eu mal consigo entender isso.

P. Pelo fato de ter sido nomeado por alguém que está do lado oposto de onde o senhor está hoje?

R. Não se trata de ser do lado oposto. Estou em defesa de valores e direitos, da garantia que a humanidade conquistou, que custou muito. Não ouso questioná-los sob nenhuma circunstância. Nem de uma maneira jocosa ou como uma piada..

P. Bolsonaro nomeou Moro, e Bolsonaro é contra o que senhor acredita.

R. Não é contra o que acredito, mais bem contra os princípios básicos de um sistema democrático.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_