_
_
_
_
_

Mulheres dos EUA tomam as redes sociais contra o estigma do aborto

Uma campanha inspira as mulheres norte-americanas a contar que abortaram País está em pleno debate sobre as restrições a esse direito

Michelle Kinsey, ativista pelo direito ao aborto.
Michelle Kinsey, ativista pelo direito ao aborto.C. F. PEREDA

Michelle Kinsey se registrou como voluntária em uma clínica de Nova Jersey, nos Estados Unidos, em 2009, o mesmo dia em que o doutor George Tiller foi assassinado em uma igreja de Wichita, no Kansas, por praticar abortos. Desde então, colabora como “escolta”, acompanhando mulheres que visitam essas clínicas. Às vezes caminha com elas quando saem do carro, em lugares onde ativistas contra o aborto protestam de forma quase permanente. Outras vezes as leva de carro até centros onde possam receber atenção, a centenas de quilômetros de distância.

Mais informações
A odisseia das mulheres pelo direito ao aborto na América Latina
Contra o inverno conservador, uma primavera feminista
Como usar a pílula do dia seguinte
Mulheres vão às ruas: “Pílula fica, Cunha sai”
O estupro nosso de cada dia
As mulheres brasileiras dizem basta

Kinsey é também uma das mulheres que participam da campanha #ShoutYourAbortion – “grite seu aborto” –, que nos últimos meses tem inundado as redes sociais com relatos nos quais as usuárias contam em primeira pessoa quando e por que abortaram. Seu objetivo é tanto o de reivindicar que não sejam impostas restrições ao direito de abortar como o de levantar o manto de silêncio que até agora manteve em segredo que uma em cada três mulheres norte-americanas interrompe sua gravidez em algum momento de sua vida.

“As histórias viajam muito rápido nas redes sociais, têm um alcance maior, e é possível atrair a atenção das pessoas de maneira instantânea”, afirma Julia Reticker, porta-voz da organização Advocates for Youth e criadora da campanha “1 in 3” (“uma em cada três”), em referência à proporção de mulheres que abortam nos EUA. Sua estratégia é a mesma da campanha #ShoutYourAbortion. Reticker explica que há quatro anos tentaram divulgar esse tipo de relato pela internet, mas não obtiveram o mesmo resultado e precisaram começar de forma privada, realizando reuniões nas quais as mulheres compartilhavam suas experiências.

De lá para cá, entretanto, dois movimentos baseados no poder dos relatos pessoais mudaram o ambiente. As ativistas atribuem à comunidade LGBT –que em junho conseguiu ver reconhecido seu direito ao casamento igualitário– e aos dreamers (“sonhadores”), os jovens sem documentos que revelaram que viviam ilegalmente nos Estados Unidos para reivindicar uma reforma das leis de imigração, o impulso para revelar a onipresença do aborto na sociedade norte-americana. “Quando uma mulher que se sentia sozinha nessa experiência compartilha sua história, está ajudando outra a estar menos sozinha”, diz Reticker.

Uma em cada três mulheres norte-americanas interrompe sua gravidez em algum momento de sua vida

“Quando iniciamos a campanha ‘1 in 3’, isso surpreendeu muitas pessoas porque a imagem que havia na sociedade e nos meios de comunicação era muito diferente. Agora tudo mudou, graças ao fato de que mais mulheres têm contado [suas histórias] em primeira pessoa”, afirma Reticker. “O momento atual é crucial por causa da quantidade de restrições aprovadas nos Estados, e além disso podemos aproveitar a tecnologia para divulgar nossa mensagem.”

As palavras dessas mulheres desenham uma realidade que se choca diretamente com a retórica conservadora que invadiu o debate sobre o direito ao aborto nos Estados Unidos, particularmente intenso em plena campanha eleitoral e com o primeiro caso pendente na Suprema Corte em quase uma década. “Não tive nenhuma dúvida de que era o que eu tinha de fazer, eu podia pagá-lo e fiz [o aborto] porque naquele momento era necessário”, conta Deborah Hauser, diretora da organização Advocates for Youth. Ela abortou há 15 anos, quando tinha um bebê de seis meses e seu marido acabava de abandoná-los. “Se você não conta isso, nunca pode defender o direito ao aborto”, diz. “Não me envergonhei do que tinha feito, mas senti medo de que me julgassem”.

Se você não conta [seu caso], nunca pode defender o direito ao aborto”

Estava bem claro para Kinsey que abortar era sua única opção. Tinha 18 anos, acabava de entrar na universidade e havia fugido de casa por causa dos abusos de seu padrasto. “Eu sabia que precisava superar minha infância antes de ser mãe”, afirma. Hoje, diz que sua vida não teria sido a mesma se tivesse tido um filho naquela ocasião. Seu ativismo, motivado pela convicção do direto de escolha, rejeita principalmente leis como a do Texas, que restringem o direito ao aborto às mulheres desse Estado. “A opressão com a qual os legisladores aprovaram essa lei mostra que eles não procuram ser justos e abusarão da democracia se precisarem fazer isso para conseguir o que querem”, afirma Kinsey. A Suprema Corte estudará no ano que vem se a lei do Texas é inconstitucional. “Acredito que a população está começando a perceber”, diz ela, em alusão à estratégia republicana.

“O aumento da violência e os ataques à organização Planned Parenthood nos fizeram dizer chega”, acrescenta Hauser, referindo-se à campanha que meses atrás acusou a organização médica de vender órgãos de fetos. Embora tenha sido demonstrado que os vídeos usados nas acusações tinham sido manipulados e tudo era parte de uma operação contra a Planned Parenthood, vários candidatos republicanos têm se referido às gravações para defender a retirada dos fundos públicos concedidos à organização, que atende a cada ano milhares de mulheres sem recursos. “Durante anos houve tanta pressão social e política que não se podia falar disso por causa do estigma. Agora, cada vez que conto, sinto-me mais forte e aliviada”, destaca Hauser.

Hauser afirma que o principal objetivo dessas campanhas não é defender o aborto, e sim a liberdade de escolha. Ela trabalhou em uma clínica enquanto estudava na universidade e viu, naquela ocasião, quantas mulheres precisam de acesso a centros médicos para poder interromper sua gravidez. Hoje, opina que se todos os norte-americanos estivessem familiarizados com a proporção de “uma em cada três”, seriam mais favoráveis a permitir o acesso a um procedimento do qual tanto se necessita. Para Kinsey, a campanha poderia conseguir algo mais: “Minha esperança é que o público perceba que a linguagem política, a violência e as restrições legislativas estão fora do controle”.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_