_
_
_
_
PIEDRA DE TOQUE
Coluna
Artigos de opinião escritos ao estilo de seu autor. Estes textos se devem basear em fatos verificados e devem ser respeitosos para com as pessoas, embora suas ações se possam criticar. Todos os artigos de opinião escritos por indivíduos exteriores à equipe do EL PAÍS devem apresentar, junto com o nome do autor (independentemente do seu maior ou menor reconhecimento), um rodapé indicando o seu cargo, título académico, filiação política (caso exista) e ocupação principal, ou a ocupação relacionada com o tópico em questão

Outras vozes, outros lugares

Depois de reler Carlos Rangel, hoje parece incrível que suas idéias tenham causado tanta polêmica. O que não concordo em sua tese é que o que vale para o Ocidente não funciona para a América Latina

Mario Vargas Llosa
Otras voces, otros ámbitos / Mario Vargas Llosa
Fernando Vicente

Na última vez em que estive em Caracas, Sofía Ímber me narrou com riqueza de detalhes aquele dia horrível, o 15 de janeiro de 1988. Carlos e ela se levantaram ao alvorecer, como de costume, para seu programa televisivo, o Buenos Días, e este transcorrera de maneira sossegada, sem as polêmicas e gritarias tão frequentes. Preparavam-se para sair, ela para o seu museu, e ele para o seu escritório, onde escrevia os artigos publicados no El Universal e na Vuelta, a revista mexicana de Octavio Paz. Carlos recordou então que tinha um pacote na esquina do qual necessitava com urgência e, como era dia de saída do serviço, pediu a sua mulher que o recolhesse. “Levei dez minutos, no máximo”, contou-me ela. Quando voltou, a casa estava mudada. Reinava um silêncio profundo em todos os quartos. A voz de Sofía era insegura: “Carlos! Carlos!”. Ele estava no banheiro, com o revólver na mão. Havia estourado a tampa dos miolos.

Tanto já se disse sobre o suicídio de Carlos Rangel que ninguém mais sabe a que se ater: que havia uma longa lista de suicidas entre seus antepassados, que estava convencido de que a América Latina tinha optado por um bom rumo ― ou seja, o democrático e liberal, que ele tanto defendeu ― e que podia morrer tranquilo. O que teria sido dele com as ditaduras de Chávez e Maduro? Estaria preso, teria sido assassinado como tantos adversários desses tiranos, ou talvez exilado na França, onde veria muito Jean-François Revel, que o havia estimulado a escrever aquele livro de 1976, Do Bom Selvagem ao Bom Revolucionário, que provocou polêmicas em toda a América Latina.

Mais informações
Los dos modelos / Mario Vargas Llosa
Os dois modelos
Cayetana
Cayetana
Tribuna Vargas Llosa 2/8
A função da crítica

Carlos nasceu em 1929 e estudou na França, onde conheceu Revel, muito influente em sua vida. Praticou o jornalismo desde muito jovem, defendendo a democracia naqueles anos em que o delírio marxista havia tomado conta de todas as universidades do Ocidente. Quando o conheci, ele e sua mulher, Sofía, acabavam de aceitar um convite da Universidade Central da Venezuela ― então domínio da revolução e da guerrilha e, hoje, grande resistente à ditadura de Maduro ―, onde, para chegar ao auditório, tiveram que receber insultos, cusparadas e pedradas. Mas chegaram e falaram, defendendo, perante os rugidos de uma matilha, os valores liberais que ambos promoviam contra tudo e contra todos.

Eram “outras vozes, outros lugares”, para repetir o título de um romance de Truman Capote. Mesmo que entre socos e bofetadas, ainda se podia falar. Agora não: um manto de trevas e de sangue caiu sobre a terra de Bolívar. A publicação de Do Bom Selvagem ao Bom Revolucionário, onde Rangel comparava o fracasso político da América Latina ao sucesso democrático e industrial dos Estados Unidos, tinha sido a exceção à regra sociológica e política daqueles anos, em que proliferavam os ensaios sobre a teoria da dependência, o subdesenvolvimento e a captura do Estado pelos agentes culturais, de inequívoco sabor gramsciano. Sem a menor hesitação, Carlos Rangel defendia a liberdade, a propriedade privada, a economia de mercado e ― cúmulo dos cúmulos ― a globalização, vista por ele como a fórmula pela qual os países deveriam optar se quisessem vencer o subdesenvolvimento. A esse livro havia se seguido El Tercermundismo, em 1982, e, já póstumo, em 1988, essa excelente coletânea de ensaios que é Marx y los Socialismos Reales y Otros Ensayos. Em três livros e centenas de artigos se apoiava o grande prestígio ― e os múltiplos ódios ― que Carlos Rangel havia alcançado.

Acabo de reler Do Bom Selvagem ao Bom Revolucionário e parece incrível que aquelas propostas tão sensatas, que em nossos dias são as de uma imensa maioria dos latino-americanos, de governos civis nascidos de eleições genuínas, de uma imprensa livre e crítica, de empresas independentes, de combater a pobreza com investimentos nacionais e estrangeiros e de uma educação pública de alto nível, tivessem provocado tanta controvérsia. É provável que naqueles anos de ideologias e políticas destrutivas estivesse sendo lavrada a ruína de uma América Latina à qual agora o coronavírus afundará na miséria. No ensaio, de resto, há uma supervalorização dos partidos social-democratas, que Rangel chama “apristas”, porque nasceram das ideias do peruano Víctor Raúl Haya de la Torre; nem todos funcionaram tão bem como na Venezuela, onde, graças a Rómulo Betancourt e a Carlos Andrés Pérez, deram bons resultados, mas em outros países, como o Peru e Argentina, receberam tanta influência do nazismo quanto do comunismo, foram fonte de corrupção e chegaram inclusive a praticar o terror. Ninguém diria agora que o peronismo argentino, que destruiu aquele país, difundiu as ideias liberais e democráticas naquilo que foi a grande nação do rio da Prata e é agora uma ruína. Há no livro, inclusive, uma perigosa admiração por certos caudilhos, como Porfirio Díaz, e certa simpatia pelo “sistema” do México, que apresenta como o único país que não teve golpes de Estado nem revoluções em meio século, como se a “ditadura perfeita” do PRI não tivesse concentrado todo o horror e a corrupção que prevaleciam esporadicamente nos outros países latino-americanos. Pequenas fragilidades que parecem ter escapado a esse democrata íntegro e valente que foi Carlos Rangel.

Entre seus três livros, prefiro o último, Marx y los socialismos reales y otros ensayos. O prólogo do Manifesto Comunista que ele escreveu para uma edição do Ateneu de Caracas em 1980 é uma pequena obra-prima, sobretudo a maneira como, segundo ele, aquelas ideias antiquadas e defasadas na atualidade foram se infiltrando nos países do Terceiro Mundo e gerando uma esperança de libertação, trabalho limpo e uma vida decente e justa nas massas famintas e oprimidas. Por outro lado, os artigos publicados no El Universal de Caracas eram de uma rigorosa informação ― ele comentou ali com riqueza de detalhes a polêmica entre Sartre e Camus, e o “caso Padilla” e as indignas denúncias feitas por esse poeta cubano numa sessão pública da União de Escritores contra seus colegas e amigos que falavam mal da Revolução e eram potenciais “dissidentes”.

No que não concordo com ele é quanto à sua tese de que as ideias políticas que valem para o Ocidente não servem na América Latina, e que é preciso buscar outras, que se adaptem a nossas tradições e costumes. Por que não valeriam para nós? Todos os países, sem exceção, da Europa e da Ásia ― para não falar da África ― passaram por tiranias execráveis e por sonhos quiméricos que os empobreceram e afundaram, e depois, alguns, como Singapura, Coreia do Sul e Taiwan, por exemplo, em consonância com os tempos que corriam, descobriram a fórmula do verdadeiro progresso, aplicaram-na e agora superaram a fome, a desocupação e o subdesenvolvimento e começam a viver na prosperidade e na liberdade. Por que não poderia a América Latina seguir seu exemplo?

Uma última palavra sobre Sofía Ímber de Rangel, uma dessas mulheres venezuelanas íntegras e corajosas que arriscaram a vida encabeçando a resistência à ditadura de Maduro. Ela sozinha criou, assediando seus amigos pintores ― que eram os melhores ― para que doassem quadros, o Museu de Arte Contemporânea de Caracas. Chegou a formar um acervo de altíssimo nível, um exemplo para toda a América Latina. O comandante Chávez apagou primeiro o nome de Sofía de suas portas e depois o “nacionalizou”. Sofía morreu a tempo de não ver o que restou da obra em que tinha passado meia vida trabalhando.

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo

¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?

Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.

¿Por qué estás viendo esto?

Flecha

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.

Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.

En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.

Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_