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Tribuna
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Os dois modelos

Para que o modelo do progresso funcione é preciso acabar com a corrupção; mas para muitos Estados, isso é impossível. Os casos da Venezuela e da Alemanha são exemplos de escolha sobre pobreza e prosperidade

Mario Vargas Llosa
Los dos modelos / Mario Vargas Llosa
Fernando Vicente

Uma das teses mais controversas do liberalismo hoje é que, pela primeira vez na história da humanidade, os países podem escolher ser pobres ou prósperos. Nunca antes isso foi possível, porque a prosperidade dependia sempre da quantidade de recursos com que uma nação contava, de sua situação geográfica e de sua força militar. Mas no mundo globalizado de nosso tempo, se sabe perfeitamente quais são as políticas que criam emprego e fortalecem economicamente um país, e as que o empobrecem e afundam. Os casos antinômicos da Venezuela e da Alemanha podem nos servir de exemplo.

O caso da Venezuela é conhecido por todo mundo. Era um dos países mais ricos do planeta, porque, resumindo, se trata de um imenso lago de petróleo e outros minerais, que não faz muitos anos atraía uma imigração gigantesca, para a que sobrava trabalho, e o país progredia a passos de gigante, apesar da corrupção e das transgressões de seus Governos, o que permitiu ao comandante Chávez e seu “socialismo do século XXI” conquistar o poder em eleições que provavelmente foram livres. Nunca mais o seriam, evidentemente. Atualmente, a Venezuela morre de fome, se afoga na corrupção, e pelo menos cinco milhões de venezuelanos fugiram do país, a pé, com suas malas e filhos, para sobreviver. É óbvio que o socialismo, do passado e do presente, não garante a prosperidade, e sim a miséria, a curto e longo prazo. Por isso a Rússia e a China deixaram de ser socialistas e praticam, na verdade, um capitalismo de compadrio, com ampla margem na vida econômica à empresa privada e à concorrência, mas uma estrita rigidez na esfera política, onde o velho sistema autoritário persiste quase intacto.

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A Alemanha, por outro lado, é um país que prospera a cada dia, e em todos os sentidos. Acabo de ir para lá, após sete meses, e voltei a ficar surpreso com o espetáculo de uma antiga Alemanha Oriental em plena efervescência, onde ressuscitam os velhos palácios e se constroem arranha-céus por todos os lados, onde ninguém parece morrer de fome, onde a democracia funciona em todos os níveis e onde a maioria da população parece contente com seu destino. O Governo de coalização, que Angela Merkel ainda preside, ainda que possua discrepâncias e conflitos em seu interior, parece firme e as próximas eleições não devem mudar, em seu conjunto e apesar do coronavírus, que ali parece perfeitamente controlado, esse período de estabilidade e progresso vivido pelo país.

O que fez a Alemanha para estar como está? Escolheu ser próspera, ou seja, estimulou a empresa privada, a concorrência e a poupança, integrou sua economia aos mercados mundiais, e o desenvolvimento econômico que vem experimentando por longos anos lhe permitiu ser muito independente ―o país mais rico da União Europeia, de fato― ainda que, em matéria de energia, ainda dependa da Rússia, com quem a une um tratado preocupante. Mas, no que concerne ao seu europeísmo, às suas políticas de imigração e ao seu respeito pela legalidade, não há nada a que criticar e sim muito o que imitar.

É fácil seguir o modelo alemão? Não é e, por isso, muitos países que quiseram ser prósperos não podem seguir seus passos. Qual é o problema? Basicamente, a corrupção. É o caso da América Latina, sem dúvida. A corrupção está tão profundamente arraigada em seus Governos, seus ministros e funcionários roubam tanto e o roubar é uma prática tão estendida em quase todos os Estados, que é de todo impossível estabelecer uma economia de mercado que funcione de verdade e exista uma concorrência séria e genuína em seu seio. Para que o modelo do progresso funcione é preciso acabar com a corrupção, ou reduzi-la a sua mínima expressão, e isso, para muitos Estados, é simplesmente impossível. Os que conseguiram, como Hong Kong, antes de voltar a ser parte da China, e Singapura, Coreia do Sul e Taiwan, progrediram sem travas e acabaram com a fome e o desemprego. E a democracia começou a funcionar neles (no caso de Singapura, de maneira mais limitada).

Por outro lado, a transição de uma economia sequestrada pela corrupção, onde os ministros, os chefes militares e os meros funcionários enchem os bolsos de maneira ilegal, não é nada fácil. É preciso apoio popular e jornalístico incessante, um poder judicial que aja de acordo com as leis, e governantes convencidos e corajosos que acreditem no modelo e o coloquem em prática sem vacilos e temores. E, principalmente, uma opinião pública que acredite nele e o respalde. Nem tudo se desenvolve no campo econômico. Pelo contrário; uma economia próspera não basta para criar magicamente uma sociedade onde a maioria da população se sinta confortável. É preciso ao mesmo tempo uma verdadeira igualdade de oportunidades que só uma educação pública de altíssimo nível pode oferecer, que garanta, em cada geração, um ponto de partida uniforme. Isso foi uma realidade na França antes do que em qualquer outra parte e o foi também ―surpreendam-se― na Argentina, desde o século passado, quando o modelo educativo criado às margens do rio da Prata pelos herdeiros de Sarmiento causava a admiração de todo o mundo.

O curioso é que, apesar do evidente, os ataques ao que o modelo bem-sucedido representa são a cada dia mais intensos e vêm sobretudo de países que tentaram aplicá-lo e não conseguiram por múltiplas razões, especialmente, por um setor público populista e demagógico que questiona o sistema por motivos supostamente morais. Lá, a maior dificuldade para que os países sigam o modelo que traz progresso é semântica: um problema de palavras. Assumir o “capitalismo”, requisito essencial, é simplesmente impossível para a maior parte dos países, pois a esquerda em geral, e a esquerda comunista em particular, hoje minúscula, conseguiu criar em torno a essa palavra ―capitalismo― uma sensação de injustiça e desigualdade, de patifaria e egoísmo, que a faz impronunciável, ou, melhor dizendo, a associa a um complexo de inferioridade que impede os que, secretamente, acreditam nela, de pronunciá-la e ainda menos promovê-la. Frequentemente, é o caso dos próprios empresários, que se envergonham do que são e representam.

Aí está um dos grandes paradoxos de nosso tempo: o sistema que trouxe modernidade, prosperidade e, principalmente, liberdade aos países mais adiantados do mundo, costuma ser impronunciável e nenhum líder político respeitado se atreveria no terceiro mundo a promover uma fórmula “capitalista” ―palavra maldita― a seus eleitores, pois o mais provável é que teria bem poucos. A esquerda conseguiu essa confusão mental que hoje impede, sobretudo nos países subdesenvolvidos, de aproveitar essa extraordinária possibilidade de arrancar a pobreza e o subdesenvolvimento de dezenas, ou centenas, de países da terra, que, paralisados pelo suposto socialismo que por fim traria a igualdade, a solidariedade e os bons rendimentos a sua população, se afundam cada vez mais, como a Venezuela, na corrupção e na miséria.

A possibilidade de escolher entre a pobreza e a riqueza está sempre ali, como possibilidade teórica. Mas, na prática, o socialismo continua triunfando sobre o capitalismo, pelo menos no papel e nos discursos. A este não lhe importa, porque tem a sensação ―a segurança― de que o futuro lhe pertence. Os outros se contentam, enquanto continuam empobrecendo, não com adquirir o progresso, e sim com o triunfo de uma só palavra.

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