O paradoxo do sucesso alemão que os radicais querem explorar
Protestos exigem o fim das restrições em um país modelo na contenção da pandemia de coronavírus
Há um país no mundo em que não houve confinamento, não é obrigatório usar máscara na rua, os serviços se saúde não entraram em colapso, o número de mortos se manteve relativamente baixo, as escolas funcionam com normalidade e choveram milhões de euros de dinheiro público para conter os estragos da covid-19. É também o país onde dezenas de milhares de pessoas se manifestam contra as restrições que sofrem em suas vidas devido à pandemia. Bem-vindo à Alemanha.
Stephan Bergmann é um dos rostos visíveis do Querdenken (“pensamento lateral”), o movimento nascido em Stuttgart que consegue trazer dezenas de milhares de pessoas para as ruas. Há dois meses, durante uma manifestação, ele foi entrevistado por um canal de TV da Internet e o vídeo viralizou. Desde então, esse especialista em terapias com pedras e tambores usa os palanques para conclamar as massas, atuando como porta-voz da organização.
Ele afirma que o Querdenken é uma organização guarda-chuva, que atua com grupos descentralizados que têm milhões de seguidores no país. Esses grupos protestam contra “a restrição em massa de direitos fundamentais, como o de manifestação. Para protestar, tivemos de ir à Justiça”, diz Bergmann, referindo-se à autorização de última hora para a grande marcha realizada em 29 de agosto em Berlim. Destaca a ruína econômica que a pandemia causou a artistas ou organizadores de eventos e se opõe à obrigação de usar máscara, que na Alemanha é exigida em lugares fechados. “Deve ser uma decisão individual.”
Assim como ele, 38.000 céticos em relação à covid-19 ― um milhão, segundo os organizadores ― saíram às ruas em Berlim há uma semana, e estão previstas novas convocações. É um grupo heterogêneo do qual participam pessoas contrárias às vacinas, hippies, libertários, conspiranoicos e ultradireitistas. Negam que o vírus seja um problema tão grave, rejeitam as vacinas e declaram guerra à máscara. Bebem de fontes científicas alternativas e colocam seus direitos individuais acima de qualquer decisão política e coletiva. Junto com uma maioria pacífica que proclama a paz, o amor e os direitos fundamentais, como o de religião, a ultradireita alemã desfila em esplendor, decidida a aproveitar a oportunidade desestabilizadora única que a pandemia lhe oferece.
Partidos e grupos neonazistas foram os protagonistas da ameaça de tomar o edifício do Parlamento há uma semana, conseguindo a foto alarmante que buscavam e a condenação de toda a classe política alemã. Um dia antes, a chanceler (chefa de Governo) alemã, Angela Merkel, admitiu haver um mal-estar muito minoritário, mas com potencial explosivo. “O vírus é uma imposição à nossa democracia”, afirmou.
A verdade é que existe um certo desconcerto tanto na classe política como na acadêmica em relação aos protestos. “Talvez uma parte não esteja politizada, mas [os manifestantes] são um sintoma dos tempos de incerteza que vivemos e buscam respostas nas conspirações”, interpreta Hans Vorländer, diretor do Centro de Pesquisa Constitucional e Democrática da Universidade de Dresden, que fala de pessoas “muito empoderadas, que sentem que a pandemia não existe e que se negam a ter seus direitos individuais restringidos”.
Os que saem às ruas não deixam de ser uma minoria muito barulhenta em um país onde as pesquisas confirmam que a imensa maioria (quase 90%) apoia as medidas do Governo. O alemão médio trata esses manifestantes com desdém e os apelidou de “covidiotas”, rótulo contra o qual se queixaram à Justiça. A procuradoria de Berlim declarou, entretanto, que a liberdade de expressão permite, sim, esse apelido ― também na boca de Saskia Esken, a líder social-democrata que o utilizou.
Parte da explicação está no fato de que a Alemanha é vítima do paradoxo do sucesso, ou da prevenção, como dizem os especialistas. Porque o vírus invisível ainda é algo muito distante para muitos alemães. Está muito presente na mídia, mas não tem presença real em suas vidas. “Você conhece alguém que tenha tido?”, costumam repetir os manifestantes. Na Espanha, a resposta seria óbvia, mas não na Alemanha.
Um estudo recente da More in Common indica que apenas 11% dos alemães conhecem alguém infectado, em comparação, por exemplo, com 39% dos britânicos. Na Alemanha, a combinação de um bom sistema de saúde, boa gestão e pedagogia política e talvez certa sorte conseguiu controlar, até certo ponto, o vírus e fazer com que o número de mortos ― 9.324 em um país de 83 milhões de habitantes ― seja comparativamente baixo. “Em qual outro país esse pessoal preferiria estar?”, perguntou esta semana o ministro alemão da Saúde, Jens Spahn, vaiado em atos públicos. O sucesso é, ao mesmo, tempo sua condenação.
Esta semana, em uma das menores manifestações em Berlim, Harald Wilfer, um professor aposentado que chegou de Darmstadt, no oeste do país, protestou como outros, com o rosto descoberto. Afirmou ter ido de protesto em protesto na capital desde o início da semana porque “restringem nosso o direito de opinião e manifestação”. Dizer isso em público, enquanto se manifesta, não parece uma contradição para ele. “A polícia poderia te deter”, disse, referindo-se à nova norma regional que tornou obrigatório o uso de máscara nas manifestações de mais de 100 pessoas. Usando um chapéu Panamá e com um lenço colorido de seda no pescoço, Wilfer deixa claro: “Não tenho máscara. Quando entro no metrô, cubro-me com o lenço”.
Respostas simples
Jan Rathje, especialista em extrema direita da fundação Amadeu Antonio, assinala que os que se manifestam “leem muito sobre biologia, mas não entendem como funciona a sociedade nem as contradições próprias de uma democracia. Querem respostas imediatas e abraçam como verdade absoluta a informação que recebem. Tentam explicar a pandemia de uma forma muito simples. Não entendem que para salvar pessoas é preciso restringir direitos”. Rathje diz que o elo entre a ultradireita e os manifestantes pacíficos é “o inimigo comum, as elites que querem impor sua vontade”.
A manifestante Claudia Rosa, de 52 anos, expressa outro dos temores mais difundidos: “Tememos que nos obriguem a tomar vacina contra o chamado coronavírus. Não sabemos o efeito colateral de uma vacina fabricada muito rápido. Esta é uma doença que não é letal para todos. Não se pode confinar toda a sociedade porque uns poucos a têm. Isto nunca tinha acontecido”.
Rosa promete sair às ruas todos os dias, até que o Governo “assuma a responsabilidade pelo que fez com a gente. Existem pessoas com depressão. Fazemos as crianças ficarem doentes com a máscara”. Ela afirma que os manifestantes são “pessoas pacíficas” que querem “amor”, e ressalta que nunca tinha participado de protestos antes. Assinala que sempre havia sido de esquerda, mas diz que agora está tão desconcertada que não saberia em quem votar. Suas novas crenças, confessa, custaram-lhe o rompimento com parentes e amigos. “Muita gente ainda não percebeu”, diz, convencida de que ela sim viu a luz.
“TRUMP ESTÁ EM BERLIM”
Tamara K., uma jovem naturopata do oeste do país, agora é conhecida em toda a Alemanha. No último fim de semana, do alto do palanque, incitou os manifestantes a tomar o edifício do Reichstag. “Trump está em Berlim”, gritava, espalhando sem escrúpulos uma notícia falsa.
O especialista em extrema direita Matthias Quent, diretor do Instituto para a Democracia e a Sociedade Civil de Jena, fala de uma expansão das teorias conspiratórias de ultradireita que circulam nos EUA, como os seguidores do QAnon, e de uma trumpificação. “Vimos nas mensagens do Telegram que o objetivo era tomar o edifício do Reichstag”, assinala Quent. Ele afirma que Trump se transformou em um exemplo. “É o messias”, diz o pesquisador, que acusa o partido ultradireitista alemão AfD de fomentar a radicalização ao “espalhar notícias falsas e negar os fatos”. Segundo ele, “a estratégia passa por politizar a frustração associada ao coronavírus”.
O especialista também destaca a presença do antissemitismo nos protestos. Isso é evidente entre aqueles que relativizam o Holocausto ao exibir uma estrela no peito, imitando a insígnia amarela usada pelos nazistas para estigmatizar aos judeus, ou entre os que apontam figuras da comunidade judaica como grandes inimigos em suas teorias da conspiração.
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