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Coluna
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Cayetana

Está convencida, como mostrou neste ano, que na política pacífica e tolerante da democracia e do liberalismo tudo pode ser modificado, com a condição de que se ditem as leis adequadas e, sobretudo, se defenda a liberdade contra os que queriam transgredi-la

Cayetana
FERNANDO VICENTE

Quando Pablo Casado, líder do Partido Popular [da Espanha], teve a coragem de nomear Cayetana Álvarez de Toledo como porta-voz da bancada parlamentar do seu partido, de oposição ao Governo de Pedro Sánchez, muitos nos perguntamos quanto duraria Cayetana no cargo. Durou um ano e, certamente, não perdeu neste período nem um minuto de tempo. Embora eu saiba que não gosta desta palavra, o que esta jovem admirável fez na Espanha foi uma pequena revolução, que, ao menos eu, acredito ser de longo alcance.

Por enquanto mostrou que não é verdade que os jovens mais brilhantes da Espanha se interessam pela economia e as empresas, mas detestam a política. Há poucas pessoas mais preparadas intelectualmente que Cayetana, com um doutorado em História na Universidade de Oxford, e, entretanto, é apaixonada pela política e está convencida, como mostrou neste ano, que na política pacífica e tolerante da democracia e do liberalismo tudo pode ser modificado, com a condição de que se ditem as leis adequadas e, sobretudo, se defenda a liberdade contra os que queriam transgredi-la, como agora, na Espanha, a extrema esquerda do Podemos e os independentistas da Catalunha. É o melhor trabalho que Cayetana fez e pelo qual mais temos que lhe agradecer: demonstrar, com palavras e com fatos, que não há razão alguma para que a direita democrática tenha complexos de inferioridade frente à esquerda comunista, que arrasta, dentro de suas taras, coisas tão horrendas como o Gulag, a Revolução Cultural chinesa e, mais perto de nós, a desgraçada Venezuela, um dos países mais ricos do mundo, ao qual “o socialismo do século XXI” do comandante Chávez sepultou na miséria, e do qual pelo menos cinco milhões de pessoas tiveram que fugir para poder comer e trabalhar. Por que a doutrina da liberdade teria que baixar a cabeça e se render frente aos responsáveis por esses crimes, sabendo que ela representa o que há de mais avançado, livre e próspero no nosso planeta?

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Quem são os que têm se esgoelado pedindo moderação e centrismo a Cayetana neste ano? Alguns distraídos militantes do Partido Popular, sem dúvida, mas sobretudo os socialistas e comunistas, surpresos por verem alguém da direita que se atrevia a lhes recordar os horrores cometidos em nome do sacrossanto marxismo. Isso me recordava os anos de Margaret Thatcher na Inglaterra, quando socialistas e comunistas lhe exigiam, desesperados, que se centrasse e moderasse, porque com suas inconveniências políticas levariam os tories à extinção. A verdade é que os levou ao poder por três vezes consecutivas – pela primeira vez na história – e que a Grã-Bretanha jamais esteve tão bem, desde a Segunda Guerra Mundial, como com a senhora Thatcher.

Quais são as posições que Cayetana defendeu como porta-voz parlamentar do Partido Popular? Coisas tão sensatas e caras a meia Espanha quanto que o Partido Socialista volte a ser o que era nos tempos de Felipe González, e que o Partido Popular possa se unir a ele em uma coalizão que permita a recuperação do país neste ano de gravíssimas vicissitudes sanitárias e econômicas. E ninguém expressou tão claramente como ela a distância que há entre um partido democrático e liberal, como o Partido Popular, e uma força conservadora e nacionalista, como o Vox. É esse o temido radicalismo de Cayetana? Também disse com a mesma clareza com que sempre se expressa que um partido político democrático e liberal não é o mesmo que o Exército, onde as “ordens dos chefes são obedecidas sem dúvidas nem murmúrios”. Claro que não. Em um partido democrático, as ideias se discutem, assim como os programas, dentro de uma adesão geral a certos princípios, que inevitavelmente se traduzem em políticas distintas. Isto sabem de sobra todos os militantes democráticos, mas o ignoram, claro, os que fazem política para crescer, para se arrumarem no Estado ou se sentirem – ai deles – poderosos.

O sociólogo alemão Max Weber diferenciou muito claramente a ética da convicção e a ética da responsabilidade. Um partido democrático precisa de dirigentes que representem ambas as coisas; caso contrário, pode se encher de oportunistas corrompidos ou se condenar a ser apenas um grupo de pressão afastado da massa popular. O político de convicção obedece a suas ideias e princípios antes que a outra coisa; o político responsável sabe que as ideias e princípios são generalidades de difícil aplicação e que, em muitos casos, deve fazer concessões, às vezes muito amplas, para fazer avançar sua causa e as reformas que defende. O político de convicção não cede nem faz concessões sobre as ideias nem os princípios. Na Espanha não houve muitos políticos de convicção, e talvez essa seja a razão da triste história de seus partidos políticos; não os houve no sentido que Cayetana Álvarez de Toledo é, defendendo aquilo que acredita, sem olhar para os lados nem se atemorizar pelas possíveis consequências. É verdade que dirigentes tão rigorosos podem significar a desgraça de um partido; mas, sem eles, o que é certo é que esse partido apodrecerá em vida, cheio de “moderados”, vale dizer oportunistas, aproveitadores e, inclusive, ladrões e pessoas querendo se arrumar. Nós, que votamos várias vezes no Partido Popular, não queremos que este partido, o que mais se parece com uma força liberal na Espanha, termine na confusão e no pragmatismo cínico em que caiu o Partido Socialista desde que Felipe González deixou de dirigi-lo. E, por isso, muitos que sem sermos militantes votamos nele, acreditamos que Cayetana prestou um serviço imenso aos populares defendendo em suas fileiras, às vezes contra seus próprios militantes, a ética da convicção. Os princípios e as ideias antes que os cargos e a representação.

Conheci Cayetana há alguns anos, quando o rei Felipe VI salvou a Espanha, com um discurso, do frenesi dos independentistas catalães, que, logo depois de organizarem uma consulta ilegal para justificar a independência, já se acreditavam donos da realidade política espanhola. Cayetana, sem ter nem receber apoio de ninguém, organizou a resistência à ilegalidade catalã, com o “Livres e Iguais”, que mobilizou muitos jovens e velhos Espanha afora, os quais, sob seu comando, saímos às ruas para recordar que a Constituição espanhola proíbe expressamente que uma região autônoma convoque um referendo sobre a segregação, e a recordar que numa democracia a Constituição e as leis são respeitadas. Ou seja, para defender aquilo mesmo que Felipe VI tinha defendido com tanta lucidez em seu discurso. Cito isto para mostrar que uma dirigente política que promove a ética da convicção não é uma molenga extraviada no mundo das ideias; pode ser também um ser prático e corajoso, que recorre à ação em defesa daquilo que acredita e promove. Cayetana sempre fez isso, com coragem, na Catalunha, quando trataram de impedi-la de entrar em uma universidade, ou nas viagens políticas pelo País Basco, sem se alterar perante os insultos e as pedras nacionalistas. A ética da convicção não está brigada com a valentia e com a ação.

Dito tudo isto, esperamos dela, agora que terá mais tempo, que escreva o ensaio político sobre a Espanha que nos deve. E, claro, todos que a admiramos e queremos vamos sentir sua falta, sobretudo quando escutarmos os debates nas Cortes e morrermos de tédio.

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