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Investigação sobre o coronavírus agrava atritos entre EUA e China

Biden trata a disputa com o regime de Xi Jinping como uma batalha entre democracia e ditadura

Joe Biden e Xi Jinping se cumprimentam em dezembro de 2013, em Pequim.
Joe Biden e Xi Jinping se cumprimentam em dezembro de 2013, em Pequim.POOL (REUTERS)
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O inquilino da Casa Branca mudou, mas o clima de confrontação entre os Estados Unidos e a China está muito longe de se suavizar. As duas maiores potências mundiais travam uma disputa no terreno comercial e tecnológico, na corrida armamentista e até na espacial, evocando assim aromas da Guerra Fria. Desde seus primeiros compassos, a Administração de Joe Biden manteve um discurso de pulso firme perante a escalada autoritária do regime de Xi Jinping. As dúvidas sobre a origem do coronavírus que brotou na China no final de 2019 agravaram a tensão. Biden não descarta a hipótese de que o vírus tenha escapado por acidente de um laboratório de Wuhan ―algo que Xi nega taxativamente― e encarregou a CIA de fazer uma investigação independente. É a enésima frente aberta entre os dois colossos.

“A relação está destroçada, e não vai voltar aonde estava como se fosse um pêndulo. Sua direção é mais a de uma espiral descendente. Ambas as partes se veem mutuamente com receio. Olham-se com desconfiança, cada uma está convencida de que seus motivos são os bons, e de que a outra se move por razões malignas”, descreve por videoconferência Daniel Russel, ex-responsável da Casa Branca para a Ásia durante a Administração Obama e atualmente no laboratório de ideias Asia Society.

A tensão veio crescendo nos últimos anos, à medida que a China acumulava influência econômica no mundo sem cumprir as expectativas criadas sobre sua abertura comercial e política, mas piorou a partir da pandemia. Até janeiro deste ano, Pequim não havia autorizado a entrada de uma missão da Organização Mundial da Saúde (OMS) para investigar a origem do coronavírus. E, com ela já presente, impediu que a equipe tivesse acesso às amostras e informações primárias, levando tanto a OMS como os Estados Unidos e outros países a desconfiarem dos dados obtidos. O relatório resultante aponta o salto de um animal para um ser humano como a teoria mais provável sobre o surgimento do surto, mas sem descartar a alternativa que Pequim rejeita: que esse salto tenha ocorrido de forma acidental dentro do Instituto de Virologia de Wuhan.

Seguranças na entrada do Instituto de Virologia de Wuhan, em fevereiro.
Seguranças na entrada do Instituto de Virologia de Wuhan, em fevereiro. THOMAS PETER (REUTERS)

Na quarta-feira passada, Biden afirmou em nota que ambos os cenários são plausíveis e anunciou uma investigação com o objetivo de obter um relatório conclusivo em um prazo de 90 dias. A hipótese do contágio acidental no laboratório de Wuhan tinha sido avalizada pelo Governo do republicano Donald Trump ao longo de 2020, quando a maior parte da comunidade científica a desdenhava, mas seu sucessor democrata lhe deu credibilidade após o surgimento de relatórios sobre a doença escritos por três pesquisadores desse centro em novembro de 2019. Para as autoridades chinesas, trata-se de uma teoria “conspiratória”. “Algumas pessoas nos Estados Unidos ignoram completamente os fatos e a ciência”, criticou na quinta-feira passada o porta-voz do Ministério de Relações Exteriores chinês, Zhao Lijian.

A nova era das relações foi verbalizada de forma crua na quarta-feira passada pelo principal diplomata do Governo Biden para a Ásia, Kurt Campbell. Em uma conferência na Universidade de Stanford, citada pela agência Bloomberg, Campbell afirmou que “o paradigma dominante” atualmente é a “competição” entre potências. “O período conhecido usualmente como vinculação e compromisso [engagement] terminou”, disse, acrescentando que a política de Xi é a responsável pela guinada de Washington com relação a Pequim.

A colaboração sobre assuntos como a Coreia do Norte ou o desafio da mudança climática ficam à margem desses atritos, mas a política de Biden para a China está mais próxima de Trump que de Obama. E esse tom assertivo contra Pequim é um dos poucos elementos de consenso político entre ambos os partidos nos Estados Unidos.

Em seu primeiro discurso ao Congresso como presidente, em 28 de abril, Biden apresentou sua corrida contra a China como uma questão de princípios políticos de nível mundial, uma batalha entre democracia e autocracia. “Ele [Xi] e outros autocratas acreditam que as democracias não podem competir com as autocracias no século XXI, porque é muito demorado obter consensos”, disse. E acrescentou: “Devemos demonstrar que a democracia ainda funciona”.

Também Pequim enxerga desta disputa como uma batalha por hegemonia que vai além de desacordos sobre assuntos concretos. A China está convencida, nas palavras do próprio Xi, de que “o Oriente está em alta, e o Ocidente, em decadência”. A invasão do Capitólio por manifestantes trumpistas em 6 de janeiro serve de artilharia ao regime chinês. Apenas cinco dias depois do incidente, num discurso à cúpula do Partido Comunista da China (PCC) que foi publicado na íntegra neste mês, Xi salientou que, apesar dos numerosos problemas que o mundo enfrenta, a China é “invencível”.

Na primeira conversa telefônica entre os dois líderes, Biden expressou a Xi sua preocupação com as práticas comerciais “coercitivas e injustas” da China, a repressão em Hong Kong e os abusos contra os uigures e outras minorias na província de Xinjiang, assim como as ações “crescentemente autoritárias” na região, incluindo Taiwan. O democrata manteve uma forte presença militar dos EUA no mar do Sul da China, onde Pequim reivindica a maior parte das águas, enquanto Washington considera ilegais as alegações de soberania chinesas. Também reafirmou seu férreo apoio a Taiwan. A primeira reunião bilateral entre Pequim e Washington em março passado, em Anchorage (Alasca, EUA), deveria ter servido para reativar as relações bilaterais, mas acabou virando uma troca de acusações diante das câmeras, deixando claro a que ponto chega o descontentamento mútuo.

A guerra tarifária persiste. Biden manteve todas as sobretaxas impostas por Trump sobre produtos chineses (mercadorias num valor de 360 bilhões de dólares em 2019, o equivalente a 66,4% de todo o comércio, segundo cálculos do Instituto Peterson). A primeira reunião telefônica entre seus respectivos chefes de delegação, Liu Hei e Katherine Tai, não parece ter chegado a resultados concretos, nesta semana.

O gigante asiático redobrou a confiança em si mesmo. A China eliminou oficialmente a pobreza neste ano e conta com Forças Armadas em rápida modernização, o que lhe permite ostentar sua musculatura nos territórios em disputa ―seja o mar do Sul da China ou a fronteira com a Índia no Himalaia― e pressionar Taiwan. É um país cada vez mais assertivo no terreno internacional, cujos embaixadores recorrem a redes sociais ocidentais como o Twitter para defender as posições de seu país, às vezes com linguagem muito pouco diplomática. Pequim acaba de assumir a presidência do Conselho de Segurança da ONU e está cada vez mais presente nas instituições multilaterais, seja dirigindo-as ou encaminhando sua pauta. “É uma sociedade convencida de que conta com uma correlação favorável de forças, uma sociedade satisfeita com sua própria força como nação e que acredita que chegou a hora de ocupar o lugar que lhe corresponde” no cenário internacional, aponta Russel.

União Europeia e G7

Também é uma sociedade, ou um Governo, que se prepara para um futuro com maiores fricções não só com Washington, mas também com outros atores no Ocidente: na União Europeia, com a qual já troca sanções, cresce a reticência ao acordo de investimentos entre Europa e China assinado em dezembro; Pequim acaba de suspender seu mecanismo de diálogo econômico e estratégico com a Austrália; e os ministros de Relações Exteriores do G7 condenaram o tratamento dispensado às minorias em Xinjiang e Tibete.

Para se proteger das condições externas mais duras, a China quer implantar uma mudança de modelo em sua economia, conforme descrito em seu novo plano quinquenal, para fomentar o desenvolvimento do mercado interno, ao mesmo tempo em que incentiva os intercâmbios com os países da sua iniciativa Nova Rota da Seda. Fixou também o objetivo de se tornar uma nação líder em tecnologia e inovação, um passo que considera imprescindível para obter a sonhada independência estratégica. Para se tornar a futura grande potência que almeja, assentando os pilares de legitimidade do Partido Comunista Chinês (PCC), inclui também a prosperidade da sua população e a estabilidade interna.

E, se os Estados Unidos tentam revitalizar suas alianças, Pequim também cultiva sócios. Desde o começo do ano, seu chanceler, Wang Yi, já fez viagens pela África, Oriente Médio e Sudeste Asiático, uma região fundamental para a China. Enquanto tenta convencer a Europa a manter sua independência estratégica, estreita relações com a Rússia em todos os âmbitos, do econômico ao militar. O conselheiro de Estado Yang Qiechi acaba de visitar o país vizinho, e Vladimir Putin e Xi inauguraram juntos, por videoconferência, um projeto de cooperação nuclear.

Mas, por mais que a antipatia predomine na relação entre os dois colossos mundiais, “um deles não é Atenas, e o outro não é Esparta”, aponta Russel. Tanto Biden como Xi são líderes racionais; o da China é um Governo pragmático. E, embora a desconfiança não deva desaparecer, Pequim sabe que há áreas onde a cooperação beneficia os dois países, da luta contra o coronavírus à estabilidade financeira global. Ainda de maneira muito incipiente, ambos já estenderam a mão e aceitaram colaborar na luta contra a mudança climática.

No entanto, em longo prazo, conforme declarava à imprensa chinesa Shi Yinhong, assessor governamental e professor de Relações Exteriores na Universidade Renmin de Pequim: “O mundo está formando um modelo de três grupos de poder: uma aliança centrada nos Estados Unidos, outra menor entre a Rússia, China e Irã, e uma grande zona intermediária”.

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