As mulheres que cultivam mandioca no Suriname para vendê-la nos Países Baixos
Cooperativa feminina impulsiona o cultivo do tubérculo para os mercados locais e internacionais e começa a mudar a vida de centenas de famílias em uma área rural onde homens e emprego são escassos
Tania Liew-A-Soe é a presidenta e fundadora da cooperativa agrícola Wi! Uma Fu Sranan (WUFS), que em português significa: Nós! As Mulheres do Suriname. Uma cooperativa que nasceu nas remotas comunidades da região de Brokopondo, no interior deste país caribenho que até a década de setenta era uma colônia holandesa. Lá, quase toda a população é de mulheres e crianças. Há muitos poucos homens. O emprego é escasso e eles saem para caçar durante semanas ou meses ou, no pior caso, migram a trabalhar nas zonas costeiras ou nas minas de ouro. Elas ficam para cuidar da família e da terra.
Em Brokopondo, a população é majoritariamente descendente dos quilombolas, africanos escravizados historicamente excluídos. A mandioca foi um alimento básico e muito especial que ajudava a subsistir às comunidades. Esse tubérculo presente na América Latina e o Caribe possui múltiplas formas de cozinha. “As mulheres conhecem bem como cultivar e produzir mandioca, por isso são as verdadeiras protagonistas da cadeia de valor. Graças a sua perseverança e determinação, em 2014 elas conseguiram colocar seus primeiros produtos à venda”, explica Lieuw-A-Soe por videoconferência.
O trabalho das mulheres da mandioca atraiu o interesse do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). “Elas formaram uma cooperativa e nós vimos a oportunidade de fortalecer a sua capacidade empreendedora. Chamou a nossa atenção que tinham uma visão e ambição de crescer, melhorar a produção em termos de qualidade e quantidade e envolver-se mais nas cadeias globais de valor”, explica por videochamada Michael Hennesey, especialista da Divisão de Competitividade, Tecnologia e Inovação do BID. Assim, focados no mercado e na comercialização, já não só cultivam mandioca para subsistir, mas a transformam, desenvolvendo inovadores produtos à base desse tubérculo, como pão pronto para o forno, panqueca de mandioca sem glúten ou seu famoso mingau para bebês e idosos. “No BID, cremos que é importante identificar e apoiar projetos com potencial de crescimento que melhorem vidas, e a mandioca era um produto tradicional ao qual se podia agregar valor.”
Para a presidenta da cooperativa, o mais importante do projeto foi e é mudar a vida das mulheres. “Ver o que elas têm mostrado e sua alegria de ganhar seu próprio dinheiro. Coisas simples para o mundo ocidental que para elas são um grande passo.” Porque um dos segredos dessa cooperativa é gerar uma renda sustentável para as mulheres e que essa experiência possa ser ampliada para projetos semelhantes.
Às vezes se esquece de que as mulheres são empreendedoras por natureza, que precisam ser empreendedoras para cuidar da família e gerar rendaMICHAEL HENNESSEY, ESPECIALISTA NA DIVISÃO DE COMPETITIVIDADE, TECNOLOGIA E INOVAÇÃO DO BID
Mas nem tudo foi sucesso. Durante o processo de formação da cooperativa, 50 iniciaram e três permaneceram. De acordo com Lieuw, muitas delas ouviram que estavam sendo enganadas, então concluíram que estavam perdendo tempo. Mas a perseverança das outras duas mulheres impulsionou a cooperativa, agora com 38 associadas. “A maioria vem de áreas rurais e todas são treinadas em boas práticas agrícolas, de higiene e de manufatura.” Além disso, os requisitos necessários são seguidos em todo o processo para que o produto seja orgânico, sem o uso de pesticidas. Por outro lado, diante da ameaça de migração do campo para a cidade, a cooperativa busca atingir as jovens. “É importante que eles permaneçam na terra, que façam parte da cadeia de valor sustentável que diminui a migração.”
Embora ela entenda que as pessoas migram. Ela própria foi criada por uma família de camponeses e nunca sonhou em ser agricultora. Especificamente, sua mãe era a agricultora, que cuidava de 15 crianças e de uma fazenda com mais de 10.000 galinhas. Em 2002, Lieuw decidiu ir para a Holanda por uma temporada e, quando voltou, se apaixonou novamente por um país onde descobriu a importância da união entre mulheres para qualquer projeto. O dela se tornou seu propósito de vida. “Agora que estou mais velha, entendo que a agricultura é a chave para o sustento da vida. E também sou uma mulher de negócios, então agora meu maior objetivo é levar a agricultura para os grandes negócios.”
Graças ao apoio do BID, apoiado por recursos do Fundo do Programa de Redução da Pobreza do Japão (JPO-JSF), cerca de 700 mulheres da aldeia de Kapasikele e de outras aldeias de Brokopondo receberam treinamento em boas práticas agrícolas e como melhorar os processos de produção e comercialização. Com essa perspectiva, oito delas até viajaram para a Holanda para participar de um festival gastronômico que as ajudou a ampliar ainda mais sua visão.
O caminho não foi fácil. As regras do mercado são exigentes e integrar-se às cadeias de valor com todas as garantias exigiu esforço, com novos métodos de produção e muita formação. As mulheres foram capazes de inovar e se reinventar. Agora, elas dizem que cada mês colhem 12 milhões de toneladas de mandioca, produzem e distribuem 12.800 embalagens de papinhas de mandioca e seus produtos estão em mais de 100 supermercados do Suriname. Além disso, conseguiram exportar para a Holanda, onde vive grande parte da diáspora surinamesa. “Tudo isso as capacitou um pouco mais. Ver que seus produtos são vendidos em supermercados, exportados e as pessoas se interessam pelo trabalho que fazem também lhes dá muito orgulho e aumenta sua autoestima. São mudanças importantes na vida das mulheres porque elas também ganham mais dinheiro que ajuda suas famílias”, considera Hennessey.
O produto estrela são as papinhas de mandioca, que são utilizadas, principalmente, na alimentação de bebês e idosos. Além disso, também misturam mandioca com banana, farinha de arroz e soja, para obter mais nutrientes sem a necessidade de importação, favorecendo a produção local e tornando visível o trabalho das agricultoras. “Às vezes é esquecido que as mulheres são empreendedoras por natureza, que precisam ser empreendedoras para cuidar da família e gerar renda. E na agricultura, o trabalho é subestimado, apesar de elas serem as responsáveis pela segurança alimentar no mundo.” Michael Hennessey não tem dados para corroborar isso, mas tem a percepção de que projetos administrados por mulheres tendem a ter maiores garantias de sucesso. “Sua participação é fundamental para o desenvolvimento econômico e social da região. Há muito talento e muitas ideias. Eles têm sido um ativo subutilizado.”
A covid-19 as atingiu com muita força o grupo e freou o trabalho. Elas não tiveram rendimentos por mais de seis meses. Agora, começam a retomar suas atividades. O processamento das certificações internacionais de Comércio Justo e o Global Gap de boas práticas agrícolas que elas desejam alcançar foram paralisadas pela pandemia. Os treinamentos também tiveram que ser adiados e deixaram de ser presenciais, sendo substituídos por vídeos de animação de cinco minutos que as mulheres compartilhavam por meio de seus celulares.
Diferença de gênero
O Suriname é um país de grande diversidade étnica. Além dos quilombolas, boa parte de sua população descende de trabalhadores indianos, indonésios e chineses trazidos pelos colonizadores ingleses, franceses e holandeses. Hoje, neste país de quase 600.000 habitantes, entre 50% e 70% de seus domicílios, dependendo da fonte consultada, vivem abaixo da linha da pobreza. Boa parte dessa pobreza recai sobre as mulheres.
Entre 50% e 70% das famílias no Suriname vivem abaixo do limiar da pobreza. Boa parte dessa pobreza recai sobre as mulheres
De acordo com o Índice Global de Diferenças de Gênero do Fórum Econômico Mundial, que mede a paridade entre homens e mulheres, o Suriname está classificado em 77º lugar entre 153 países com uma pontuação de 0,70, três pontos abaixo daquela que marcaria a igualdade. “Estamos caminhando devagar e a situação está longe do ideal, mas não é desastrosa. Existem muitas mulheres empresárias, mas, infelizmente, poucas ocupam cargos de decisão”, afirma, via WhatsApp, a consultora surinamesa em gênero Annette Tjon Sie Fat. O país tem uma pontuação muito boa em questões como saúde e educação, com 92% das mulheres entre 15 e 24 anos sendo alfabetizadas, mas muito pobre em participação e empoderamento político. “Depois das últimas eleições, a Assembleia Nacional tem 15 mulheres de um total de seus 51 membros e dos 17 ministros do país, 6 são mulheres”, afirma.
O país tem uma política de gênero de longo prazo que aspira alcançar a igualdade plena até 2035, mas o Comitê das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher (CEDAW), embora reconheça as melhorias, expressou há dois anos, sua preocupação com as altas taxas de pobreza feminina em áreas rurais, quilombolas e indígenas, principalmente e também sobre as violações dos direitos à terra de mulheres indígenas e tribais. A lei do Suriname não regula os direitos à terra coletiva.