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Análise
Exposição educativa de ideias, suposições ou hipóteses, baseada em fatos comprovados (que não precisam ser estritamente atualidades) referidos no texto. Se excluem os juízos de valor e o texto se aproxima a um artigo de opinião, sem julgar ou fazer previsões, simplesmente formulando hipóteses, dando explicações justificadas e reunindo vários dados

Por que a fome não se reduz (mais) na América Latina

Brasil e Uruguai têm as menores taxas da região enquanto Venezuela, Argentina e Guatemala apresentam a nova face da desnutrição e da insegurança alimentar

Agricultor seca cacau na Guatemala.
Agricultor seca cacau na Guatemala.FAO
Jorge Galindo
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No mundo de hoje há menos pessoas famintas do que há 20 anos, mas não menos que em 2015: desde esse ano, a porcentagem de subalimentados permanece nos mesmos níveis. A América Latina não é exceção. Pelo contrário: ao norte do Canal do Panamá, as taxas quase não mudaram. Ao sul, aumentaram levemente.

Os 5,5% de pessoas subalimentadas na América do Sul representam 68% do total de pessoas com fome na América Latina, de acordo com o relatório da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) apresentado nesta semana (nele, Brasil e Uruguai aparecem com mas menores taxas, leia mais abaixo). Nesse mesmo documento surge a questão fundamental: por que deixamos de vencer a batalha contra a fome?

De certo modo, a insegurança alimentar é o lugar onde a fome começa. Em sua versão moderada, as pessoas enfrentam incertezas e a necessidade de escolher o que comer. Se for a severa, a comida começa a ficar indisponível por épocas.

Assim, não é surpreendente que este novo indicador da FAO apresente uma trajetória igualmente negativa nos últimos cinco anos, com uma certa melhoria em 2018 que teremos de esperar o ano seguinte para confirmar. De todo modo, 2018 terminou com dez milhões de pessoas mais expostas a essas inseguranças do que em 2014.

Quando se trata de identificar os culpados pela fome, o primeiro suspeito geralmente é um conflito. Esse fator é o que permanece, de fato, por trás de boa parte do aumento da desnutrição na África Subsaariana e na Ásia Ocidental. Mas hoje em dia a América Latina está relativamente livre de guerras em grande escala. A violência é um problema de primeira ordem aqui, sim, e continua a interferir na cadeia de produção e distribuição de alimentos em muitas partes do continente. No entanto, não são os países mais violentos os que experimentaram o maior aumento da fome nos últimos 14 anos. Com uma exceção: a Venezuela.

Mas os seus parceiros no aumento absoluto da desnutrição não se caracterizam por incrementos significativos nos níveis de conflito. A Guatemala, por exemplo, é hoje um Estado consideravelmente mais pacífico do que na década passada. A Argentina mantém taxas comparativamente baixas para a região. Não: as respostas estão escondidas em outros lugares. E a análise separada da Argentina, Venezuela e Guatemala irá ajudar a elucidar pelo menos três delas: as crises econômicas, a disfuncionalidade corrupta do Estado e o maior desafio no longo prazo: os efeitos das mudanças climáticas sobre a produção de alimentos em áreas particularmente expostas.

Venezuela: inflação e corrupção

Comecemos pelo caso mais grave. Em 2018, cerca de 6.800.000 de venezuelanos estavam subalimentados. Um em cada cinco. Uma década atrás, era menos da metade. Dizer que a culpa por essas cifras é da desastrosa gestão do Estado não é muito informativo, embora seja verdade. Investigar o que está por dentro dessa declaração pode ajudar a evitar que se repitam situações semelhantes. O regime chavista apostou o futuro de um país inteiro numa única carta: o petróleo. Isso, entre outras coisas, significava que a Venezuela tinha que importar quase todo o resto. Isso, que não é ruim por si só, torna-se perigoso quando todo o dinheiro que você tem para pagar pelas mercadorias vem de uma única fonte de exportação. Quando o preço dela cai, você compra muito menos de tudo. E também de comida. Além do mais, é provável que a sua moeda acabe sofrendo nesse processo. Especialmente se você tem o Banco Central (e sua máquina de imprimir bolívares) nas mãos de um governo não sujeito a controles. Tudo isso já reduz significativamente a sua capacidade de manter um fluxo razoável de produtos básicos, enquanto a inflação galopante empobrece praticamente todos na população. Mas se esse mesmo Governo sem controles acaba tendo um quase monopólio na distribuição formal de alimentos, a receita para o desastre está completa.

No total, 63% da população venezuelana é beneficiária de algum tipo de "missão social". Mais de 16 milhões de pessoas dependem dos Comitês Locais de Abastecimento e Produção (CLAP), com presença em nove de cada dez residências. Essencialmente, a sobrevivência do país depende das caixas CLAP contendo insumos básicos. As mesmas que, em investigações da mídia independente Armando.info, se revelaram fontes de riqueza para indivíduos cujo valor comercial começa e acaba nas conexões que têm dentro do regime.

Nesta semana mesmo, a Unidade de Inteligência Financeira do México congelou as contas de vários fornecedores de alimentos do Governo venezuelano acusados de lavar cerca de 150 milhões de dólares (560 milhões de reais) por meio da venda de produtos superfaturados. Enquanto isso, os cidadãos estão literalmente perdendo peso à sombra da pobreza e da corrupção.

Argentina: a economia não se recupera

Nem é preciso dizer que os indicadores argentinos são muito menos alarmantes. Mas tudo depende do ponto de comparação: se em vez do maior desastre humanitário na história recente da América Latina os compararmos com o potencial do país (como seus habitantes costumam fazer), é desanimador que uma das nações mais ricas do Hemisfério Sul esteja criando pobreza em vez de destruí-la.

A inflação carrega novamente boa parte da culpa. O Governo de Maurício Macri não conseguiu amenizar a crise da dívida nem a subsequente escalada de preços em que sua antecessora, e agora candidata à vice-presidência, Cristina Fernández, mergulhou o país. Atingiu 55,8% em junho de 2019, em relação ao mesmo mês do ano anterior: os preços sobem mês a mês no país o mesmo que no Chile ano a ano. Como resultado, as taxas de pobreza desenharam uma espécie de U na última década e meia, caindo para 16% das famílias abaixo do limite em 2011 e subindo para quase 26% no ano passado. A mordida da desnutrição e da insegurança alimentar seguiu, simplesmente, em paralelo a um ciclo econômico que nunca chegou a ser resolvido. No final, 2018 se encerrou com 2.100.000 argentinos em situação de subalimentação enquanto seus vizinhos Chile e Uruguai reduziram suas cifras.

Guatemala: questão climática, desafio maior

Uma parte importante do sul da Guatemala (e, na realidade, cerca de 90% da população da América Central) cai no que é conhecido como o Corredor Seco. Nele, as secas cíclicas são particularmente intensas. E nos últimos anos se encadeiam com mais frequência. É provavelmente por causa disso que no ano passado a Rede de Sistemas de Aviso Prévio de Fome (FEWS NET, na sigla em inglês) detectou que o segmento mais pobre de domicílios do Corredor Seco se comprometeu no mercado para obter os seus alimentos antes do habitual. A estimativa é que quatro em cada cinco residências da região tiveram que vender gado ou ferramentas de trabalho no campo precisamente para fazer essas compras.

Os efeitos climáticos em áreas mais sensíveis, como o sul da Guatemala, rompem os equilíbrios econômicos e o de provisão de alimentos, já bastante delicados. A pressão para resolver o problema da desnutrição se desloca depois para outras áreas do mundo. Isso acontece literalmente por intermédio dos "migrantes climáticos", que são forçados a deixar as áreas sensíveis em busca de opções de vida mais viáveis.

A emigração por causa do clima não está sozinha nesta distribuição. Os milhões de pessoas que já deixaram a Venezuela, a instabilidade política que a má governança do país tem provocado na região ou o incremento nas dificuldades para os credores na hora de lidar com a crise na Argentina para que a saída seja socialmente justa são outros mecanismos pelos quais o custo da desnutrição é distribuído internacionalmente. Não há maneira de escapar: suas causas e consequências estão suficientemente entrelaçados no tecido global de tal modo que os Estados, mesmo aqueles que continuaram a melhorar e cuja população nativa se encontra relativamente segura, têm de assumir que não se trata de escolher ou não pagar o preço da fome, mas de como querem pagar.

No Brasil de Bolsonaro, cerca de 5 milhões come menos do que deveria

F. Marreiro

O tema da fome ganhou relevância no Brasil nesta semana quando o presidente Jair Bolsonaro, questionando sobre o tema pelo EL PAÍS, disse que o problema não existia mais no país e falar disso não passava de "populismo". De fato, o Brasil avançou bastante na matéria nas últimas décadas, graças aos períodos de crescimento econômico e ao aumento do colchão social com programas de transferência de renda como o Bolsa Família, que também voltaram a ser criticados por Bolsonaro. Pelos números do relatório divulgado nesta semana, os organismos ligados à ONU estimam que podem ainda haver cerca de 5 milhões de pessoas desnutridas no país, ou menos de 2,5% da população. Segundo os dados do Ministério da Saúde citados pela Folha de S. Paulo, 15 pessoas morrem de desnutrição por dia no país.

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