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“A opressão feminina se assenta sobre maternidade, sexualidade e trabalho doméstico”

María Elena Oddone e suas companheiras pioneiras do feminismo argentino narram 30 anos de mobilização até a legalização do aborto na Argentina

Em 8 de março de 1984, a feminista María Elena Oddone se manifestou com um enorme cartaz em que se lia: “Não à maternidade, sim ao prazer”.
Em 8 de março de 1984, a feminista María Elena Oddone se manifestou com um enorme cartaz em que se lia: “Não à maternidade, sim ao prazer”.Buenos Aires en el recuerdo
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Una mujer participa en una movilización a favor de la legalización del aborto en Argentina mientras su aprobación se debate en el Senado del país, en Buenos Aires, Argentina, a 29 de diciembre de 2020. El Senado de Argentina ha aprobado la madrugada de este miércoles la legalización y despenalización del aborto en el país, tras varias horas de debate y una votación muy ajustada en la que finalmente los partidarios del proyecto de ley que permite la interrupción voluntaria del embarazo hasta las 14 semanas han recabado los apoyos necesarios.
30 DICIEMBRE 2020;ARGENTINA;BUENOS AIRES;AMÉRICA;AMÉRICA DEL SUR;ABORTO;LEGALIZACIÓN;DESPENALIZACIÓN;DERECHOS;FEMINISMO;LEYES;
Matias Chiofalo / Europa Press
30/12/2020
Agenda progressista da Argentina dá oxigênio à esquerda na América Latina
Giselle Carino
“Argentina mostra que é possível legislar sobre o aborto num ano catastrófico e de polarização política”
Catholic anti-abortion demonstrators hold signs that read in Spanish "Say no to abortion, yes to life," to protest against the possible legalization of therapeutic abortion outside Congress in Santo Domingo, Thursday, Oct. 25, 2007. The Catholic Church in the Dominican Republic supports a large-scale offensive against the government's consideration of legalizing "therapeutic abortion." All types of abortion are illegal in the Dominican Republic. (AP Photo/Ramon Espinosa)
Argentina se torna oásis do direito ao aborto na América Latina

Em 8 de março de 1984, a feminista María Elena Oddone se manifestou com um enorme cartaz em que se lia: “Não à maternidade, sim ao prazer”. Era a primeira marcha pelo Dia Internacional da Mulher após o retorno da democracia à Argentina e nas ruas começava a ser pedida a despenalização do aborto. Oddone à época já afirmava que “ninguém precisa nos explicar os três pilares sobre os quais se assenta a opressão feminina: maternidade, sexualidade e trabalho doméstico”. Mais de três décadas se passaram até que, em 30 de dezembro, as mulheres conquistaram o direito a decidir sobre seus corpos e seus projetos de vida. Interromper uma gravidez de forma segura já não será mais um privilégio para quem pode pagar, estará ao alcance de todas as que precisarem.

“Parecia que estávamos cabeça a cabeça e sempre queriam nos impor mais coisas, tinha muito medo de que não saísse. Suplicávamos para que saísse nem que fosse por um voto e no final eu gritava ‘Temos votos de sobra, temos votos de sobra”, lembra por telefone a advogada e militante histórica Nina Brugo sobre a decisão do Senado argentino, que aprovou a interrupção voluntária da gravidez até a 14° semana por 38 votos a favor, 29 contra e uma abstenção. Dois anos antes, a mesma câmara o havia negado por uma diferença de sete votos.

A Argentina, pioneira no continente em leis como casamento igualitário —aprovado em 2010— e a identidade de gênero —2012— manteve, por outro lado, durante 99 anos a proibição de abortar com exceção de casos de estupro e risco à saúde da mãe. Por que esse atraso? “O aborto legal melhora a vida das mulheres e se o patriarcado tem medo de algo é fortalecer as mulheres. É lutar por nossa autonomia e nossa liberdade sexual”, responde Brugo. Afirma que o casamento igualitário não é disruptivo, inclui as pessoas dentro de uma instituição e da ordem social. Por sua vez, legalizar o aborto significa separar o prazer da finalidade de reprodução, terminar com a ideia da mulher como incubadora.

Brugo começou a militar a favor do aborto legal há 30 anos e reivindica o trabalho realizado nos Encontros Nacionais de Mulheres —realizados anualmente desde 1986, cada vez em alguma cidade diferente— para conscientizar sobre o problema dos abortos inseguros realizados na clandestinidade. Mais de 3.000 mulheres morreram no país nos últimos 37 anos por interromper suas gravidezes em condições inseguras, com métodos como sondas, cabides e salsinha, entre outros. Dezenas de milhares precisaram ser hospitalizadas por complicações.

O símbolo do lenço verde

A Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito, que aglutina mais de 500 grupos em toda a Argentina, foi fundada no Encontro de Mulheres de 2005. Dessa união surgiu o lenço verde, transformado no símbolo da luta a favor da legalização, primeiro na Argentina e depois também em toda a região. Na campanha foram forjados os projetos legislativos apresentados até oito vezes ao Congresso e nos quais o Executivo de Alberto Fernández se inspirou para o rascunho do texto que por fim virou lei.

Sua predecessora foi a Comissão pelo Direito ao Aborto (CDA), fundada pela médica Dora Coledesky no final dos anos oitenta, após seu retorno do exílio na França. O contato com movimentos feministas no estrangeiro e as vivências fora do país foram fundamentais para impulsionar a luta na Argentina, conta a socióloga e assessora de Fernández, Dora Barrancos. “Abortei duas vezes em minha vida e em uma delas quase morri. Foi no Brasil, durante o exílio, em condições inacreditáveis, porque era um médico inacreditável”. A clandestinidade do aborto no Brasil era muito mais abominável do que aqui”, lembra Barrancos, que se declara “muito feliz” pela sanção da lei. “A Argentina é hoje um país um pouco mais justo, mais igualitário e mais digno. Fica para trás a página da clandestinidade, da estigmatização, da vergonha e da morte. No momento em que a sanção da lei foi aprovada estávamos todas em uma torrente de emoção total e vinham como lufadas minhas impressões das milhares de mortes evitáveis que ocorreram neste país”, conta.

Um dos momentos mais duros na luta pelo aborto legal foram os anos noventa, sob a presidência de Carlos Menem, quando a oposição religiosa se uniu à governamental. O mandatário tentou limitar ainda mais o direito ao promover sem sucesso sua proibição total no país na reforma da Constituição. Apesar da derrota, instaurou em 1998 o 25 de março como o Dia da Criança não nascida, uma comemoração liderada pelo à época arcebispo de Buenos Aires, Jorge Bergoglio, hoje papa Francisco. Menem, agora com 90 anos, é o senador mais velho, mas não pôde votar contra a lei por estar internado em estado grave.

A ofensiva conservadora dos anos noventa não deteve a militância feminista em manifestações, encontros e até em âmbitos como o musical: em 1997 os grupos punk Fun People e She-Devils lançaram o disco ‘El aborto ilegal asesina mi libertad’ (O aborto ilegal assassina minha liberdade). Dentro havia um pôster para ser copiado e colado nas ruas do país. Ainda assim, a luta pela legalização foi intensa, mas marginal durante décadas.

O fracasso do ‘Ni Una Menos’

O grande salto ocorreu em 2015, após a irrupção do movimento Ni Una Menos (Nem Uma a Menos) contra a violência machista, que conseguiu mobilizar centenas de milhares de pessoas e impor os direitos das mulheres na agenda política. “O ativismo feminista existia, mas estava muito desunido. Com o Ni Una Menos conseguimos unir em rede mulheres de diversos lugares, percebemos que não estávamos sozinhas e tudo o que poderíamos conseguir se nos mantivéssemos unidas”, diz a comunicadora Ana Correa, uma das fundadoras. Desde então, a mobilização nas ruas foi maciça e constante. As mais jovens pegaram como bandeira o aborto legal em uma maré verde que conseguiu levar o pedido ao legislativo pela primeira vez em 2018. Mesmo fracassando sua repercussão foi enorme: o aborto deixou de ser um tabu. Programas de televisão de muita audiência falaram pela primeira vez sobre o uso de pílulas para interromper uma gravidez e das redes de acompanhamento existentes para tentar minimizar os riscos das que abortavam na clandestinidade.

“Nesses anos os feminismos deixaram de ser conceituais e se transformaram em populares, houve uma enxurrada total. Aconteceu na Argentina, que é um exemplo paradigmático, mas também no Chile, no México, no Uruguai e em outros países latino-americanos. E os feminismos acolheram também as diversidades sexuais, se uniram para ganhar direitos”, destaca Barrancos.

O avanço feminista e a despenalização social provocaram por sua vez o endurecimento do discurso religioso contrário. “O aborto era a última trincheira de resistência da Igreja que se escudou completamente”, diz Barrancos. Das províncias do norte do país, as mais religiosas, saíram grande parte dos votos negativos no Senado.

“Temos a lei, mas o trabalho não acaba porque é preciso fazer com que se cumpra. Durante décadas a legislação de 1921 não foi respeitada, fizeram tudo o que foi possível para obstaculizá-la”, alerta Brugo. Meninas de 10 a 12 anos estupradas que exigiam abortar viram como seus casos eram judicializados e as semanas se passavam sem que sua vontade fosse cumprida. O direito não foi sempre garantido nem mesmo com o risco de vida da mãe: em 2006, Ana María Acevedo, de 19 anos, faleceu após os médicos se negarem a aplicar-lhe radioterapia contra o câncer porque estava grávida. Seu pedido de interromper a gravidez para poder se curar também foi ignorado, mas abriu um precedente legal: pela primeira vez a Suprema Corte condenou os médicos por lesões culposas e por não cumprir com os deveres de funcionário público ao negarem-se a praticar um aborto legal.

A luta pela implementação virá acompanhada de esforços para estender este direito ao restante do continente. “Há uma preocupação dos setores mais conservadores, por isso Jair Bolsonaro publicou imediatamente um tuíte criticando. Mas estamos convencidas de que o efeito contágio será inevitável”, prevê Correa. Brugo concorda: “Estamos conectadas ao mundo, o aborto legal na Argentina torna mais fácil a luta das companheiras no restante da América Latina”.

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