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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

As lições para o Brasil da revolução do afeto que levou à legalização do aborto na Argentina

A vitória é fruto do diálogo e da colaboração. As argentinas transformaram um imenso tabu num construtivo debate sobre saúde pública. Não é no grito que vamos fazer alguém mudar de ideia

Mulheres em frente ao Congresso argentino acompanham votação.
Mulheres em frente ao Congresso argentino acompanham votação.RONALDO SCHEMIDT (AFP)
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Nossas hermanas argentinas finalmente conquistaram o direito ao aborto. O novo projeto de lei estabelece que as mulheres podem interromper voluntariamente a gravidez até a 14ª semana de gestação. Porém, embora a votação no Senado tenha acontecido de madrugada, nas primeiras horas do já histórico 30 de dezembro de 2020, nada disso se deu de um dia para o outro. Tem muita história e muita luta por trás da vitória.

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No início dos anos 2000, um grupo de mulheres formado também pelo Católicas pelo Direito de Decidir iniciou uma campanha chamada “Pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito”. O nome, incrível, explicativo como tinha que ser, vinha acompanhado ainda de uma frase com três diretrizes norteadoras: educação sexual para decidir, anticoncepcional para não abortar, aborto legal para não morrer.

A pauta que elas tentavam aprovar foi apresentada cinco vezes na Câmara, sendo continuamente rejeitada. Mas, enquanto isso, a sociedade foi mudando. O movimento Ni Una Menos, em 2015 e 2016, promoveu uma troca de saberes entre diferentes gerações de feministas ―das históricas mães e avós da Praça de Maio às chamadas pibas, meninas ainda na escola. E tudo foi parar num grupo de WhatsApp, onde duas deputadas (Victoria Donda, de esquerda, e Silvia Lospennato, mais à direita) começaram a articular a votação no Congresso.

Ou seja, se o aborto passou na Argentina é porque existem mulheres nas ruas e existem mulheres governando. E, mais do que isso, porque também juntou mulheres de ideologias distintas. Direita e esquerda pró-escolha, que podiam discordar em muitas, muitas coisas, mas tinham em comum a vontade de lutar pelos direitos das mulheres, se uniram e conseguiram aprovar uma comissão para ouvir 738 convidados a favor e contra vários aspectos do projeto, das questões de saúde às penais.

A estrutura dessas audiências públicas também fez a diferença. Cada sessão trazia dois debatedores que defendiam pontos de vistas opostos no que diz respeito ao aborto. As regras, entretanto, obrigavam que cada um expusesse suas ideias sem interrupções, ao longo de sete minutos. E, assim, as audiências viralizaram. Todas as tardes, centenas de jovens se reuniam em frente ao Congresso para assistir ao vivo aos debates usando lenços verdes, cor que se tornou o símbolo dessa luta. Além de remeter à esperança, à saúde e ao meio ambiente, não estava associada a qualquer partido político.

Mas essa “maré verde” de nada adiantaria se ficasse restrita aos jovens e às ruas. Entendendo isso, muitas dessas estudantes levaram o debate sobre o aborto para dentro de suas próprias casas. Elas se sentavam para jantar e, em vez de falar sobre o dia, perguntavam: “Então, mãe, vó, vocês já abortaram? Não precisa ter vergonha, está tudo bem.” E foram rompendo o silêncio e o tabu bem ali, no coração do cotidiano familiar.

Esse movimento, que ficou conhecido como “la revolución de las hijas”, a revolução das filhas, começou então a movimentar mais e mais o tema na sociedade argentina. Até chegar à caneta do presidente da República.

Em 2018, uma proposta de descriminalização do aborto foi aprovada na Câmara, mas foi rejeitada no Senado. Mas com a eleição Alberto Fernández veio a promessa de reapresentar a lei ao Congresso. E assim aconteceu. O aborto legal, seguro e gratuito vai enfim se tornar realidade.

Conhecendo essa história podemos entender que ela é fruto do diálogo e da colaboração. E é essa a lição que fica para o Brasil. O que essas mulheres fizeram na Argentina foi transformar um imenso tabu num construtivo debate sobre saúde pública.

Sim, saúde pública. Por aqui, cerca de mil mulheres morrem todos os anos em clínicas de aborto clandestinas. Proibida ou não, a prática é uma realidade para uma em cada três mulheres. O que muda com a descriminalização é que todas aquelas que optam pelo aborto podem ter acesso a médicos qualificados e ambientes hospitalares seguros. Muita dor é evitada.

Essa é a primeira coisa que precisamos entender e, acima de tudo, fazer com que todos entendam. Só não podemos perder de vista que quando discutimos o aborto não estamos falando apenas sobre a interrupção de uma gravidez, mas também sobre crenças pessoais e religiosas, memórias familiares, dogmas sociais… São pensamentos e comportamentos moldados por medos inconscientes que nos acompanham, mulheres e homens, há milhares de anos. Por isso não é no grito que vamos fazer alguém mudar de ideia. Desqualificar e apontar o dedo só atrapalha. Nada, nada mesmo, vai acontecer sem doses cavalares de diálogo e paciência.

O aborto não é uma guerra, é uma revolução. E, pelo que a experiência argentina mostra claramente, sua grande arma é o afeto. Precisamos nos munir e ir à luta.

Beatriz Della Costa é cientista social, cofundadora e diretora do Instituto Update, organização da sociedade civil sem fins lucrativos que lançou em 2020 Eleitas: Mulheres na Política (www.eleitas.org.br). O projeto transmídia, realizado em parceria com o Quebrando o Tabu, a Maria Faria Filmes e a Spray Content, mapeou mais de 600 mulheres e entrevistou mais de 100 para mostrar como elas vêm transformando a política, a sociedade e a democracia na América Latina.

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