No xadrez global, cada um tem suas fichas nas eleições dos EUA
Os anos de Donald Trump na Casa Branca agitaram o cenário internacional. Da China à Rússia, da Europa ao Brasil, cada um avalia que presidente melhor se encaixa em seus interesses
Entre a resignação e a esperança. À sombra de uma nova onda do coronavírus, o mundo olha com expectativa para os Estados Unidos, onde nesta terça-feira, 3 de novembro, será eleito o novo inquilino da Casa Branca. O mandato de Donald Trump, marcado pelo unilateralismo e por disputas comerciais, revirou o tabuleiro internacional: a China se transformou no rival a ser batido pelos Estados Unidos, deslocando o foco de Moscou em uma nova Guerra Fria; a relação se complicou com aliados como a União Europeia, foi submetida a uma forte pressão (com direito a insultos) com países como o México, e recrudesceu até a tensão máxima com o Irã, enquanto o republicano colhia os aplausos de líderes afins, como o brasileiro Jair Bolsonaro e o israelense Benjamin Netanyahu. Alguns líderes esperam que o republicano consiga a reeleição, e outros confiam em que sua substituição por Joe Biden sirva pelo menos para aparar arestas. Mas o democrata tampouco entusiasma, mesmo entre alguns dos que preferem uma mudança na direção da maior potência mundial.
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China: sem muito a ganhar, vença quem vencer
MACARENA VIDAL LIY
Seja quem for o vencedor das eleições presidenciais desta terça, a China já chegou à conclusão de que não tem muito a ganhar. As relações entre os dois colossos mundiais estão em seu ponto mais baixo dos últimos 40 anos e, quase diariamente, um fato novo vem acelerar sua deterioração.
A política proposta pelo candidato democrata, Joe Biden, não difere substancialmente da aplicada pelo republicano Donald Trump nos últimos quatro anos. Os dois grandes partidos norte-americanos já decidiram que a China é o rival a ser batido, uma postura que, segundo as pesquisas do instituto Pew, é amplamente partilhada pela maioria dos cidadãos. É provável que se mantenham tendências como o veto ao acesso da China a certas tecnologias e equipamentos norte-americanos, e que se acentue o distanciamento mútuo neste setor.
Mas, no caso de uma vitória democrata, é possível que a retórica se modere. Que as formas desse relacionamento ―ainda que não seu conteúdo― sejam menos rudes. Talvez se estendam pontes em assuntos como o combate à mudança climática, uma área-chave de cooperação durante a era de Barack Obama. Nem por isso Biden é necessariamente o candidato preferido de Pequim. Um dos temores do regime chinês é que o democrata obtenha o respaldo de outros países para uma política contra a China, algo que Trump, com suas duras críticas aos seus aliados, não conseguiu.
“Uma das coisas que Biden terá que fazer para equilibrar as divisões dentro do seu próprio partido e não parecer fraco é se diferenciar de Trump, embora a substância possa não ser muito diferente”, aponta o ex-diplomata singapuriano Bilahari Kausikan, da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Empresarial de Singapura. Uma área em que poderá tentar se diferenciar, observa, seria “no campo dos direitos humanos”, especialmente em relação à situação da minoria islâmica uigur na região de Xinjiang, no oeste da China. E esse é um problema que, como revela o ex-assessor de Segurança Nacional John Bolton em seu livro The Room Where It Happened, não preocupa muito o atual presidente.
Se Trump for reeleito, deve manter “sua maneira de pressionar a China manipulando um sentimento de confronto contra ela”, opina o professor Zhu Feng, da Universidade de Nanjing, em uma análise na revista Asian Perspective. Em curto prazo, ele pode acentuar a retórica e as medidas hostis contra Pequim. Mas a política isolacionista de Trump está contribuindo extraordinariamente, aos olhos do governo chinês, para acelerar um declínio norte-americano. Como apontou Chen Jimin, da Escola Central do Partido Comunista, “o Brexit e a Administração [Trump] tiveram atuações exemplares” no sentido de favorecer a expansão chinesa.
Uma das coisas que Biden terá de fazer para equilibrar as divisões dentro de seu próprio partido e não parecer fraco é se distinguir de TrumpBilahari Kausikan, ex-diplomata de Singapura
Trump contribuiu para elevar a já notável popularidade interna do presidente chinês, Xi Jinping. A gestão da pandemia pela Casa Branca aumentou o orgulho dos chineses por seus líderes, depois de um péssimo início nas primeiras semanas ―que os cidadãos tampouco esquecem. Embora sua intenção fosse pouco amistosa, as medidas adotadas por Trump ― a elevação das alíquotas de importação na guerra comercial e as restrições ao gigante tecnológico Huawei ― não prejudicaram particularmente a China e, pelo contrário, contribuíram para acelerar seu desenvolvimento tecnológico.
Independentemente do resultado eleitoral, é improvável que o confronto dos últimos anos se agrave. “Nem a China nem os Estados Unidos são países irracionais, e a dissuasão nuclear manterá a paz”, opina Kausikan. Mas o próprio especialista relativiza: “Isso não quer dizer que não possam ocorrer acidentes”. O lugar mais provável para um esbarrão seria o mar do Sul da China, onde Pequim e seus vizinhos disputam o controle das águas e de vários grupos de ilhas, ou o mar do Leste da China. “Mesmo assim, provavelmente haveria contenção. Onde as coisas podem ficar fora de controle é no estreito de Taiwan”, adverte o ex-diplomata..
A melhor opção para Putin: os EUA polarizados
MARÍA R. SAHUQUILLO
Para o Kremlin, uma vitória de Donald Trump seria a opção menos má. Há quatro anos, a Rússia preferia o magnata na Casa Branca, a ponto de tentar influir a favor da vitória do republicano, conforme relatos dos serviços de inteligência norte-americanos. Entretanto, as expectativas de Moscou não se cumpriram, e as relações entre os dois países estão ainda mais tensas do que quando o republicano tomou posse: os EUA impuseram mais sanções a Moscou, e Trump abandonou dois tratados nucleares cruciais e está deixando um terceiro morrer. Espera-se que, se o republicano for reeleito, siga pelo mesmo caminho.
Mas com Joe Biden as perspectivas não são absolutamente melhores. O candidato democrata disse em alto e bom som que a Rússia é “a ameaça global mais séria” para Washington. E, embora possa recolocar sobre a mesa os acordos de controle armamentista com Moscou, a ideia de que comece a revirar os papéis da trama russa sobre a ingerência eleitoral de 2016 e o risco de um novo pacote de sanções pairam sobre Moscou. O que na verdade beneficiaria ao Kremlin, salienta a cientista política a Masha Lipman, é que houvesse mais confusão sobre as eleições e uma polarização ainda mais aguda.
Vladimir Putin insistiu em que a Rússia é uma mera espectadora no processo eleitoral. E, após relatórios do FBI apontando uma nova ingerência russa para prejudicar o candidato democrata, o Kremlin voltou a negar essas acusações, que qualifica de “russofóbicas”.
Muitos dentro do Kremlin esperavam que a boa química entre Trump e Putin se concretizasse em vínculos mais calorosos e mais tangíveis. Mas, embora a Administração Trump veja a China como seu principal inimigo, e não a Rússia, as relações passam por seu pior momento desde o fim da Guerra Fria. Trump continua elogiando o estilo de Putin e fazendo vista grossa para assuntos espinhosos, como o envenenamento do opositor Alexei Navalni, mas nem por isso Moscou prevê qualquer mudança estrutural na Administração dele, que além de impor novas sanções a empresas russas e pessoas do entorno de Putin também manobrou para bloquear acordos energéticos do gigante euroasiático.
Biden, por sua vez, é um velho conhecido do Kremlin. Já era considerado hostil durante sua etapa como vice-presidente de Barack Obama. Em uma visita a Moscou em 2011, o democrata declarou que seria ruim para a Rússia que Putin disputasse um terceiro mandato. Hoje, o líder russo já está no seu quarto período à frente do Kremlin e alterou a Constituição para poder disputar mais dois. E quando a Rússia anexou a península ucraniana da Crimeia e Moscou apoiou os separatistas da região de Donbass, Biden era o homem-chave de Obama para a Ucrânia. Além disso, o democrata pode ter uma carta na manga para responder à ingerência russa contra Hilary Clinton nas eleições presidenciais de 2016.
Seja como for, Putin está se garantindo e vem se mostrando menos crítico a Biden. Mas ele também contribuiu para alimentar em parte a retórica de Trump, que acusou seu adversário democrata de se beneficiar de sua posição na Ucrânia e dos negócios de seu filho Hunter nesse país. As perspectivas de melhores relações são sombrias, ganhe quem ganhar. “Cada vez menos gente dentro da elite russa vê Trump como um objetivo em si mesmo”, afirma a analista Tatyana Stanovaya. “Mas, se não é um objetivo, pelo menos pode ser um instrumento para semear o caos dentro da classe política norte-americana e destruir a unidade ocidental”, continua. E ter os EUA mais expostos e frágeis dá mais liberdade à Rússia no cenário mundial e dentro de casa.
A Europa sai escaldada dos quatro anos de Trump
BERNARDO DE MIGUEL
A crise sanitária, social e econômica provocada pela pandemia mantém os líderes europeus fechados sobre si mesmos, com pouco tempo para olhar para o outro lado do Atlântico. Mesmo assim, paira sobre Bruxelas e demais capitais europeias a sombra de uma segunda vitória de Donald Trump nas eleições desta terça ou, pior ainda, a de uma derrota não admitida pelo atual inquilino da Casa Branca.
Nunca antes a União Europeia enfrentou o risco de um vexame eleitoral na maior potência do planeta. Com certa ironia, um eurodeputado inclusive propôs que Bruxelas envie uma missão de observadores para verificar se as eleições nos EUA cumprem os padrões democráticos que a UE costuma exigir de nações com instituições políticas sob suspeita.
A incógnita sobre o desenlace eleitoral contrasta com a clara convicção de que, ganhe quem ganhar, as grandes tendências da relação transatlântica se manterão invariáveis. “Haverá matizes se o democrata Joe Biden chegar à Casa Branca, mas não cabe esperar uma guinada brusca na política internacional dos EUA”, observa um alto funcionário da Comissão Europeia.
Bruxelas assume que Washington continuará ignorando a questão da segurança no Velho Continente, uma tendência iniciada sob a presidência de Barack Obama e acentuada com Trump. A segunda grande corrente que continuará repercutindo na Europa será o enfrentamento entre os EUA e a China, “uma política em que coincidem tanto os republicanos como os democratas”, aponta uma fonte comunitária.
Perante essas duas tendências invariáveis, a União Europeia espera as eleições norte-americanas entre a resignação e a desconfiança. A UE ― e em particular seu principal integrante, a Alemanha ― chega escaldada após quatro anos de desencontros com a Administração Trump. A chanceler alemã, Angela Merkel, e o presidente francês, Emmanuel Macron, tentaram com pouquíssimo sucesso se congraçar com o peculiar líder norte-americano, na esperança de que o exercício do poder o levasse a valorizar a relação transatlântica..
Mais sorte teve Jean-Claude Juncker, ex-presidente da Comissão Europeia (Poder Executivo da UE) que conseguiu uma trégua comercial. Mas a atual presidenta, Ursula von der Leyen, só manteve um breve encontro com Trump, e sua esperada visita à Casa Branca foi adiada por tempo indeterminado como consequência da pandemia e do escasso interesse no outro lado do Atlântico.
Diante do improvável retorno de uma relação transatlântica tão estreita como a do final do século XX, a UE prefere se debruçar sobre sua agenda de soberania estratégica, outrora adiada e agora acelerada como resposta ao vendaval Trump. “Nossa agenda tampouco vai variar, ganhe quem ganhar”, avisa um alto funcionário comunitário. Fontes da Comissão acreditam que uma derrota de Trump atenuaria os atritos com Washington e talvez permitisse recuperar o consenso internacional em assuntos como o Irã e a luta contra a mudança climática. Mas suspeitam que o multilateralismo não voltará a ser como em 2016, e com esse cálculo em mente esperam a reeleição do 45º presidente dos EUA , ou a chegada do 46º. E não descartam que a transição, se ocorrer, seja tão turbulenta e conflitiva como os quatro anos que agora terminam.
O Reino Unido, dependente da relação pós-Brexit
RAFA DE MIGUEL
A relação entre o primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, e o presidente norte-americano, Donald Trump, sempre decorreu mais da conveniência mútua e do compadrio pessoal do que de uma visão política e internacional compartilhada. Aliás, quando de sua visita a Nova York em 2016, o então prefeito de Londres se empenhou mais em demonstrar proximidade com a candidata democrata, Hillary Clinton, do que em cortejar Trump.
A continuidade do republicano na Casa Branca, entretanto, era até agora uma peça fundamental na estratégia pós-Brexit do Governo conservador britânico. Não tanto por sua defesa veemente da saída do Reino Unido da UE ― que em muitas ocasiões se tornou uma inoportuna intromissão de seu aliado na política interna ―, mas por seu firme compromisso com um futuro acordo comercial que possa substituir, ao menos aos olhos do público, os vácuos deixados pela ruptura com a UE.
O democrata Joe Biden não demonstra especial entusiasmo pelo exótico primeiro-ministro britânico. Deixou claro, além disso, seu rechaço ao Brexit. E, o que é mais grave, mostrou claramente sua irritação com a aprovação da Lei do Mercado Interno impulsionada por Downing Street, uma quebra unilateral dos compromissos assumidos por Londres ao assinar o Acordo de Retirada da UE, e que põe em risco a estabilidade da paz alcançada na Irlanda com o Acordo de Sexta-Feira Santa, de 1998. Biden, de ascendência irlandesa, expressou claramente sua rejeição a qualquer futuro acordo comercial dos EUA com o Reino Unido se esse texto legal for mantido tal qual está.
A equipe de Johnson foi pega de surpresa. A poderosa máquina que controla a campanha de Biden estabeleceu um muro de isolamento com o resto do mundo, para evitar suspeitas de ingerências externas como as que poluíram as eleições presidenciais de quatro anos atrás. E desse modo Downing Street foi incapaz de começar a estender pontes com aquela que, segundo as pesquisas, será a próxima Administração dos EUA.
Os sinais prévios sugerem que uma futura presidência de Biden, como ocorreu com Barack Obama, dará prioridade a aliados como a Alemanha e a França, em lugar de cultivar uma histórica “relação especial” com o Reino Unido, que continuará sendo firme em matéria de defesa ou inteligência, mas se prevê difusa em questões políticas. Haverá estabilidade, porque Londres e Washington mantêm posições alinhadas em assuntos relevantes, como a resposta ao desafio representado atualmente pela China e a Rússia. E, a se confirmar a vitória de Biden, pode haver aproximação, porque a visão de ambos os dirigentes perante desafios como a mudança climática é muito similar. Mas Johnson terá de começar do zero e se impor uma dose de humildade. É improvável que repita sua antecessora, Theresa May, e seja o primeiro líder a visitar a nova Casa Branca.
O Reino Unido terá a presidência do G7 e será o anfitrião da cúpula desse clube de países desenvolvidos em meados do ano que vem. Será a oportunidade de Johnson de cultivar o multilateralismo ao qual tanto ele como Biden se mostram mais propensos, em comparação ao unilateralismo que caracteriza Trump. E a cidade de Glasgow acolherá, em outubro do ano que vem, a COP26, nova conferência sobre a mudança climática. É a grande aposta de Downing Street para demonstrar a perseguida liderança internacional da Global Britain sonhada para a era posterior ao Brexit. E a chance para Biden de reconduzir a política ambiental dos EUA, estraçalhada por seu antecessor. Mas, sobretudo, poderia ser o grande momento para que Johnson finalmente se desfaça da caricatura que lhe perseguiu durante os últimos anos: a de ser o “mini-Trump” do outro lado do Atlântico.
Após desgaste, México espera reequilibrar relação
LUIS PABLO BEAUREGARD
O México é o país que mais repudia Donald Trump. O empresário republicano lançou sua campanha em 2015 chamando os mexicanos de delinquentes e estupradores. Esse foi o início de uma relação que não se recompôs desde então. Apenas 8% dos mexicanos têm uma opinião favorável sobre o presidente que hoje busca a reeleição, de acordo com uma pesquisa do Pew Research Center feita no começo deste ano. As eleições presidenciais desta terça são uma oportunidade de reequilibrar as relações após o desgaste provocado pela Administração Trump, que transformou os temas comercial, migratório e de segurança com seu vizinho do sul.
Trump considera o presidente mexicano como seu aliado. Andrés Manuel López Obrador foi eleito em 2018 com um discurso duro, exigindo respeito perante os ataques racistas do republicano. Mas o tempo confirmou que ambos coincidem no protecionismo, na política energética que prefere o petróleo e o carvão às energias limpas, e em seu desdém pela imprensa crítica. “Recebemos do senhor compreensão e respeito ao meu país”, disse López Obrador numa visita à Casa Branca em julho.
O México é o principal sócio comercial dos EUA. Até agosto passado, esta relação representava 337 bilhões de dólares (quase dois trilhões de reais), 14% do total entre os 15 maiores sócios comerciais. Em julho, entrou em vigor o novo tratado da América do Norte, onde ambos os países, junto com o Canadá, definiram novas regras para impulsionar os setores automotivo, agrícola, energético, de comércio eletrônico e meio ambiente, entre outros. Joe Biden, o candidato democrata, admitiu que este acordo, chamado T-MEC, que representa 1,2 trilhão de dólares anuais e emprega 14 milhões de pessoas nos três países, é melhor que o acordo anterior, o NAFTA, que ele votou em 1993. Entretanto, sua candidata a vice, Kamala Harris, foi uma dos 10 senadores que votaram contra o novo acordo, por considerá-lo insuficiente em sua luta contra a mudança climática. O México espera que o T-MEC continue sendo o motor da economia da região sob uma presidência democrata, embora deva aumentar a pressão, já exercida por alguns legisladores, para que Washington ofereça melhores condições e direitos aos trabalhadores mexicanos sindicalizados.
Trump obteve uma vitória política ao impor a renegociação do T-MEC a López Obrador e ao primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau. Para garantir aos mexicanos um acordo vital para sua economia, o republicano exigiu do México que endurecesse sua política migratória, ou do contrário os EUA ameaçavam impor uma sobretaxa de 5% a todas as importações provenientes do país vizinho. Isto afetou o fluxo migratório proveniente do Triângulo do Norte (El Salvador, Guatemala e Honduras), pois o México aumentou em mais de 60% suas deportações ao longo de 2019. Mais de 124.000 pessoas que procuravam migrar para o norte foram devolvidas a seus países de origem. Isto é o mais próximo ao muro que Trump prometeu levantar na fronteira. Sua Administração construiu 597 quilômetros dos 725 que planejou para este ano.
Já Biden prometeu no segundo debate presidencial uma reforma migratória que daria papéis a 11 milhões de pessoas. A lei seria apresentada em seus primeiros 100 dias de Governo e significaria uma guinada em relação à atual política migratória de Trump, que dificultou a entrada legal e reduziu as concessões de asilo a um mínimo durante a pandemia. A promessa de Biden motivou certo ceticismo no México, pois o Governo de Barack Obama deportou 5,2 milhões de pessoas, sendo o terceiro que mais pessoas expulsou depois dos de Bill Clinton e George W. Bush.
Bolsonaro anseia pela permanência de Trump
NAIARA GALARRAGA GORTÁZAR
Deixando de lado o mínimo decoro diplomático, o presidente do Brasil expressou abertamente há alguns dias seus desejos a respeito das eleições norte-americanas. “Espero, se for vontade de Deus, assistir à posse do presidente reeleito nos Estados Unidos”, afirmou Jair Bolsonaro em um discurso após assinar um princípio de acordo comercial com um enviado da Administração de Donald Trump. Compreende-se que prefira o magnata republicano: é o espelho no qual se olha diariamente, o político contemporâneo que mais o inspira e com quem forjou uma aliança nacional-populista. Os presidentes das duas maiores economias do continente são feitos do mesmo molde. Compartilham a hostilidade contra seus adversários políticos e o desprezo pela gravidade da pandemia. A última vez que o Brasil teve uma relação tão estreita com um Governo dos EUA foi nos tempos da ditadura (1964-1985).
Por enquanto, Bolsonaro tirou menos proveito do que gostaria do seu novo melhor amigo. Mas para o ultradireitista é crucial que Trump consiga um segundo mandato porque, se for derrotado, perderá seu principal aliado. Se isso ocorrer, seus únicos amigos internacionais seriam o israelense Benjamin Netanyahu, o húngaro Viktor Orbán, o indiano Narendra Modi e poucos mais. Um pesadelo para um país com uma diplomacia sofisticada e tão pragmática que, em plena Guerra Fria, foi eleito pelos dois blocos para proferir o discurso que abre anualmente a Assembleia Geral.
Bolsonaro não gosta de Joe Biden por ser o adversário de Trump, democrata e, aos seus olhos, suspeito de ser socialista. Mas, além disso, ficou indignado por ter vindo de Biden a única menção ao Brasil nos debates presidenciais, ao falar de um dos assuntos em que as críticas do exterior mais o irritam, a Amazônia. O norte-americano conclamou ao mundo a proteger a maior floresta tropical do planeta, como forma de frear a crise climática, e se comprometeu a procurar verbas para isso. Uma vitória de Biden significaria portanto a adesão dos EUA à pressão ambiental já exercida pela União Europeia.
É provável que o resultado eleitoral tenha pouca influência sobre a delicada relação do Brasil com a China, seu maior sócio comercial, destino das exportações de soja e minério de ferro que amortecem o impacto da pandemia e origem de investimentos bilionários. Embora seu instinto peça aos gritos a Bolsonaro que se alinhe com Trump contra a segunda maior economia do mundo, como demonstrou há alguns dias ao rejeitar a compra da vacina do laboratório Sinovac contra o coronavírus, seu Governo está bastante ciente de que precisa tratar o Governo chinês com muito tato. O mandatário brasileiro se deixará cortejar por quem ganhar nos EUA, para tirar o maior proveito possível da decisão de permitir ou não que a China participe da licitação das redes 5G no Brasil.
Algumas promessas cruciais para emular Trump, como abandonar o Acordo Climático de Paris e transferir a Embaixada em Israel de Tel Aviv para Jerusalém, foram rapidamente esquecidas no fundo de alguma gaveta e lá continuam, porque cumpri-las teria resultados economicamente catastróficos.
Israel: Uma relação privilegiada, submetida às urnas
JUAN CARLOS SANZ
No último dia 23, durante um telefonema em que Donald Trump anunciou na Casa Branca a normalização de relações entre o Sudão e Israel, ocorreu um diálogo entre o presidente norte-americano e Benjamin Netanyahu que ilustra a reviravolta que as eleições desta terça podem provocar num vínculo tão privilegiado.
“Você acha que o Joe Sonífero poderia ter conseguido este mesmo acordo, Bibi?”, perguntou Trump ao primeiro-ministro israelense, chamando-o por seu apelido e se referindo à suposta falta de capacidade negociadora do seu rival democrata.
“Senhor presidente... ehem... bem... Apreciamos a ajuda de qualquer um nos EUA para obtermos a paz”, respondeu Netanyahu, numa forçada tentativa de sair incólume da situação.
Nenhum líder internacional se beneficiou tanto como Netanyahu da presidência de Trump, com cujo nome chegou a batizar um assentamento judaico nas colinas do Golã, em agradecimento por ter reconhecido a soberania israelense sobre essa meseta síria ocupada pelo Exército hebraico desde 1967. Antes, recebeu de suas mãos o presente de ver Jerusalém ser declarada capital exclusiva do Estado judaico, sem margem alguma para os palestinos, e a posterior transferência da Embaixada norte-americana de Tel Aviv para a cidade disputada, um passo simbólico que só foi seguido pela Guatemala.
O mandatário republicano se retirou também do acordo nuclear com o Irã, selado pelo democrata Barack Obama e por outras grandes potências, e que sempre foi demonizado por Netanyahu. Os presentes de Trump coincidiram, além disso, com as três campanhas eleitorais que Israel viveu nos últimos dois anos e contribuíram para consolidar sucessivas vitórias do primeiro-ministro conservador.
A nova ordem de Trump para o Oriente Médio, plasmada no plano de paz da Casa Branca, só serviu até agora de pretexto para oficializar a aliança entre Israel e as monarquias do Golfo Pérsico contra o Irã. Os direitos dos palestinos ficaram relegados em benefício de Israel e dos interesses estratégicos e econômicos dos EUA. Em contrapartida, o Estado judaico teve que aceitar mais adversários, como os Emirados Árabes Unidos, na corrida pelo rearmamento com tecnologia norte-americana ponta. É o caso dos cobiçados caças furtivos F-35, invisíveis aos radares.
Trump culminou em grande parte o processo de retirada do Oriente Médio iniciado por Obama. Mas manteve a influência sobre o Egito e a Jordânia e tentou afastar o Líbano da órbita do Irã. Os EUA estão ausentes na Síria, onde conservam uma presença militar apenas simbólica em apoio aos curdos, enquanto Moscou começa a ocupar o vácuo deixado por Washington.
Contra a tradicional estratégia bipartidária de Israel em relação ao seu grande aliado e protetor, o atual chefe do Governo parece ter posto quase todos os ovos na cesta republicana. Em 2010, o democrata Biden, reconhecido partidário de Israel, visitou Jerusalém pela primeira vez na qualidade de vice-presidente dos EUA. Netanyahu o recebeu com uma desfeita diplomática: o anúncio da construção de centenas de moradias em assentamentos da Cisjordânia e Jerusalém Oriental. Era a principal linha vermelha que a Administração Obama tinha estabelecido.
Embora não pareça ter intenção de devolver a Embaixada a Tel Aviv, Biden, se voltar à Casa Branca, talvez recorde essa afronta e decida, por exemplo, reativar de alguma forma o acordo atômico com o Irã. Como observa de forma pertinente o analista diplomático israelense Barak Ravid na revista Foreign Policy, Netanyahu se dopou com o apoio incondicional de Trump durante os últimos quatro anos, e terá que se desintoxicar se quiser conviver com uma nova presidência em Washington.
Monarquias do Golfo torcem por Trump, enquanto Irã prefere Biden
ÁNGELES ESPINOSA
As eleições nos EUA inquietam os governantes dos países do golfo Pérsico. Os regimes sunitas da Arábia Saudita e Emirados Árabes, que estabeleceram uma relação pessoal com Donald Trump, temem que a música mude se Joe Biden chegar à Casa Branca. Os iranianos, pelo contrário, torcem por essa reviravolta. Apanhados no fogo cruzado entre Washington e Teerã, os iraquianos estão divididos. Enquanto isso, no Afeganistão, o empenho de Trump em retirar as tropas norte-americanas lhe rendeu o embaraçoso respaldo dos talibãs, combatidos pelos EUA desde 2001.
As monarquias da península Arábica intuem que com Biden na presidência sofrerão maior escrutínio nos direitos humanos e em suas intervenções militares na região, além de uma menor simpatia por sua linha-dura contra o Irã. A Arábia Saudita e os Emirados aplaudiram o “não estamos aqui para dar lições” pronunciado por Trump em Riad durante sua primeira viagem ao exterior, em maio de 2017. Como outros aliados dos EUA na região, Riad e Abu Dhabi haviam se irritado com o acordo nuclear assinado pela Administração Obama com Teerã dois anos antes, tornando-se os mais entusiastas aliados árabes da política do novo presidente contra o regime iraniano (embora tenham se frustrado por não ter sido levada até o final).
Enquanto a reeleição de Trump consolidaria o status quo, Arábia Saudita e Emirados Árabes temem uma revisão das relações, que já foi anunciada por Biden. Seu triunfo não acabaria com uma aliança de décadas, mas o candidato democrata expressou o desejo de recuperar o pacto nuclear e ameaçou que a Arábia Saudita “terá que pagar” pelo assassinato do jornalista Jamal Khashoggi, além de pôr fim ao apoio dos EUA à sua intervenção no Iêmen.
Tudo isso é música celestial para os dirigentes iranianos, que apostam na vitória de Biden. Essa reviravolta é tanto um sinal de pragmatismo como de desespero. Há quatro anos, o líder supremo da República Islâmica, aiatolá Ali Khamenei, talvez confiante na invulnerabilidade do acordo nuclear, apoiou Trump, qualificando-o como “mais sincero” que sua adversária Hillary Clinton. Sem dúvida, ele previa uma Administração menos sensível aos direitos humanos ―até que os EUA abandonaram o pacto. No outro extremo, os opositores que defendem a mudança de regime apoiam Trump e sua política de máxima pressão contra Teerã. Nem uns nem outros consideram possível reativar o acordo nuclear.
Com Trump, os iraquianos viram acelerar-se o crescente desinteresse dos EUA por seu país. Ao assassinar ao general iraniano Qasem Soleimani, em janeiro passado em Bagdá, Washington pôs o Iraque no centro de seu conflito com Teerã, o que desatou uma grande animosidade contra a atual Administração. Mas esse rechaço não se traduz em um apoio automático a Biden. Embora numerosos políticos tenham mantido contato com ele no seu tempo de vice-presidente, Biden ficou mais associado a um nunca concretizado plano de dividir o Iraque em três Estados. A principal inquietação é se os EUA mudarão sua política para o Irã, e que o conflito entre ambos não seja travado no seu território. A retirada total de tropas desejada por Trump divide as comunidades: curdos e árabes sunitas em geral se opõem, e a maioria dos árabes xiitas está a favor.
No Afeganistão, a promessa de retirar seus soldados granjeou a Trump o incômodo apoio do Talibã, imediatamente rejeitado pelo porta-voz da sua campanha. Mas a repentina decisão e as declarações a respeito do presidente estão pondo contra as cordas o Governo de Cabul, apoiado por Washington. Muitos afegãos se sentem traídos, especialmente as mulheres, os jovens urbanos e a sociedade civil. Daí que os dirigentes afegãos estejam tentando atrasar as negociações com o Talibã para depois de 3 de novembro, com a esperança de que Biden vença e Washington endureça sua política com relação a esse grupo.
*Com informações de Ali Falahi.