Nostalgia das reprises aguça memória afetiva de torcedores em abstinência futebolística
Canais esportivos exploram saudosismo do futebol em período de jogos suspensos por pandemia. Globo leva última Copa vencida pelo Brasil à programação de domingo
Diante da paralisação dos campeonatos nacionais e internacionais por causa da pandemia de coronavírus, os fãs de futebol e torcedores mais fanáticos têm encontrado nas reprises de partidas históricas um refúgio não apenas para suprir a abstinência de bola rolando, mas também para preencher a rotina no tempo livre da quarentena. Por outro lado, a estratégia de resgatar antigos duelos foi a saída encontrada pelas emissoras de TV para preencher a grade de programação prejudicada pela falta de jogos ao vivo. Neste domingo, a Globo volta a transmitir futebol no horário tradicional da tarde, às 16h, apostando no saudosismo dos tempos áureos da seleção brasileira para alavancar a audiência.
Com uma campanha de divulgação que remete aos comerciais que precedem grandes decisões, o jogo escolhido pela Globo recapitula a última conquista de Copa do Mundo, quando o Brasil venceu a Alemanha por 2 a 0, em 30 de junho de 2002. Conhecida como “família Scolari”, a equipe comandada por Felipão levantou o penta no primeiro Mundial sediado no continente asiático, dividido entre Coreia do Sul e Japão. A diferença de 12 horas no fuso obrigou torcedores brasileiros a mudar hábitos para assistir aos jogos. A final contra os alemães, por exemplo, aconteceu às 8h (horário de Brasília).
Ronaldo, que havia acabado de se recuperar de uma grave lesão no joelho, foi a grande estrela da Copa. Sagrou-se artilheiro do torneio, com oito gols, dois deles marcados na decisão, em embate pessoal com Oliver Kahn. O goleiro alemão acabou eleito o melhor jogador do Mundial, mas falhou no primeiro gol ao bater roupa após chute de Rivaldo e soltar a bola nos pés do Fenômeno. Com a aposentadoria do zagueiro Lúcio, aos 41 anos, em janeiro, todos os 23 integrantes do elenco pentacampeão já penduraram as chuteiras. Entre eles, Ronaldinho Gaúcho, autor de um golaço contra a Inglaterra nas quartas de final que, atualmente, está em prisão domiciliar no Paraguai por suspeita de adulteração de passaporte, e o capitão Cafu, recordista de jogos pela seleção.
“Não existe lembrança melhor que levantar a taça de uma Copa do Mundo. Se todo jogador pudesse sentir esse gosto, entenderia que o sacrifício para ser campeão vale a pena”, diz o ex-lateral, que, antes de 2002, participou da campanha do tetra, em 1994. Na ocasião, o Brasil amargava um hiato de 24 anos sem ganhar um Mundial. Na próxima Copa, prevista para 2022, a seleção completará duas décadas de jejum. “Eu ainda sou muito lembrado por ter sido o último capitão a erguer o troféu”, afirma Cafu. “As pessoas sempre vão ter uma boa recordação daquele grupo, porque nos unimos e assumimos o compromisso de trazer o título para o povo brasileiro.”
Após 12 anos do penta, Brasil e Alemanha voltariam a se encontrar em um Mundial, dessa vez no Mineirão. Apesar do retorno de Felipão ao comando, o final não foi feliz como no Japão. A goleada por 7 a 1, em casa, entrou para a história como uma das maiores decepções do futebol brasileiro. Outra frustração, porém assimilada de forma menos traumática pelo imaginário popular, é a eliminação na Copa de 1982 para a Itália. Justamente por ter ficado eternizada pela capacidade de encantar, a seleção dirigida por Telê Santana é a aposta do Sportv, canal fechado de esportes da Globo, para mexer com os saudosistas de plantão. Ao longo da semana, sempre às 19h, a emissora exibiu todos os jogos do Brasil no Mundial que marcou época.
“Não conquistamos a taça, mas fomos reverenciados no mundo inteiro. Pelo futebol que a gente jogava, até os espanhóis passaram a apoiar o Brasil naquela Copa”, conta Zico, camisa 10 da seleção de 82, sobre o torneio disputado na Espanha. “Como afirmou o Guardiola, nosso time serviu como uma inspiração para as futuras gerações espanholas. Se aquela seleção disputasse um campeonato de pontos corridos, todos contra todos, dificilmente ia perder. É raro uma equipe tão boa errar tantas vezes como nós erramos.” Os três gols de Paolo Rossi sentenciaram a eliminação brasileira no estádio Sarrià, mas a derrota não impediu que a equipe orquestrada por Falcão, Cerezo, Sócrates e Zico ocupasse um lugar cativo no coração dos torcedores que a viram jogar.
Em março, o Sportv já havia liderado a audiência entre emissoras esportivas ao mostrar novamente a final do penta. Ainda sem previsão de retomada dos campeonatos nacionais, a Globo trata a reprise do jogo na televisão aberta como um teste para avaliar se vale a pena passar jogos de outras Copas. Além da seleção, o canal fechado do grupo tem apresentado desde o início da quarentena reexibições de partidas marcantes de clubes brasileiros. Já o Fox Sports investe em reprises da Copa Libertadores da América. Há duas semanas liderou a audiência com a final da última edição do torneio, em que o Flamengo bateu o River Plate, de virada. A ESPN, por sua vez, deposita fichas nos grandes acontecimentos do futebol internacional. Nesta semana, reexibiu sete jogos emblemáticos do português Cristiano Ronaldo com a camisa do Manchester United.
Para o historiador Ricardo Pinto dos Santos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, as reprises podem ajudar a aliviar a tensão vivida no país pelo avanço da epidemia de coronavírus. “O esporte tem o poder de ser um catalisador de bons sentimentos. A história romântica do futebol exerce forte papel em nossa memória afetiva. Reviver ápices como a conquista de um título serve de conforto aos torcedores neste momento de crise e angústia.” Fora as transmissões, a onda de nostalgia tem invadido os debates de futebol em programas esportivos e nas redes sociais. Enquetes como “quem foi melhor, Ronaldo ou Romário?” entram repentinamente para o rol dos assuntos mais comentados do dia. Os clubes também aproveitam o saudosismo para movimentar seus canais de comunicação. Alguns utilizam perfis oficiais até mesmo para fazer comentários em tempo real das reprises de jogos.
Pinto dos Santos avalia de forma positiva a evidência de passagens históricas do esporte, mas pondera que revisitar o passado não deveria se restringir ao período de isolamento social. “A história é um ponto muito importante para as instituições esportivas”, diz o historiador. “É possível entender o racismo na sociedade brasileira por meio do futebol e seus desdobramentos na economia, na cultura do país. Resgatar a memória tem de ser uma política constante e mais aprofundada, não somente em ocasiões pontuais, como temos observado durante a pandemia.”
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