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Luz, câmera, mulher

Livro conta a história de mulheres pioneiras na indústria audiovisual, como Cleo de Verberena, e salienta as brechas de gênero no setor

Helena Solberg, única cineasta mulher do Cinema Novo
Helena Solberg, única cineasta mulher do Cinema NovoHelena Solberg/Arquivo pessoal

Em 1930, a paulista Cleo de Verberena vendeu joias e propriedades para realizar o sonho de fazer seu primeiro filme, O mistério do dominó preto, que ela mesma escreveu, produziu, dirigiu e estrelou. Mas o primeiro longa-metragem realizado por uma mulher no Brasil não existe para que a geração atual possa ver. A obra se perdeu no tempo. Os poucos registros sobre ela são recortes de matérias nos jornais da época. “Essa falta de preservação e de visibilidade do cinema nacional feito por mulheres foi o que me chamou a atenção. Considero o livro um ponto de partida para que outras publicações possam surgir”, diz Camila Vieira da Silva, curadora e crítica de cinema, organizadora, junto com Luiza Lusvarghi, da recém-lançada coletânea Mulheres atrás das câmeras: as cineastas brasileiras de 1930 a 2018.

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Organizado como um “pequeno dicionário das cineastas brasileiras”, o livro contempla aproximadamente 250 diretoras que realizaram pelo menos um longa-metragem de circulação nos cinemas e conta com 27 ensaios assinados por mulheres que pensam cinema no Brasil. “Não queria dar visibilidade apenas às diretoras, mas também às críticas e pesquisadoras. Ainda é difícil ver nas mesas dos festivais, por exemplo, mulheres debatendo o audiovisual”, aponta Camila. Além do pioneirismo de Cleo de Verberena, a obra destaca nomes como o de Helena Solberg, única cineasta mulher do Cinema Novo, e realizadoras contemporâneas, como Anna Muylaert.

Uma das dificuldades encontradas pela autora do livro foi achar os dados biográficos das primeiras realizadoras no cinema nacional. Encontrar cópias de suas obras, então, é quase impossível. “Há uma impossibilidade de acesso a esses filmes. Acaba sendo um esforço muito do espectador de ir atrás, investigar, e pode ser que outros filmes apareçam que a gente nem sabia que existiam", lamenta Camila.

Ainda hoje, elas são minoria na indústria. De acordo com a Agência Nacional do Cinema (Ancine), mais de 70% da produção audiovisual brasileira em 2018 foi dirigida por homens. E isso apesar do fato de que as mulheres foram as principais impulsoras da indústria cinematográfica em sua gênese. “Logo que a cinematografia surgiu, as pessoas achavam que aquilo não teria valor de mercado, então as mulheres assumiram as produções nesse início. Havia muitas roteiristas, diretoras, montadoras, o cinema era predominantemente feito por mulheres nos anos 1910 e 1920, inclusive na gênese de Hollywood”, conta Camila. Nomes como o da estadounidense Lois Weber e da francesa Alice Guy-Blaché são exemplos desse pioneirismo. Até 1925, metade dos filmes produzidos em Hollywood era dirigido por mulheres, como mostra o documentário E a mulher criou Hollywood (2016).

“Muitas eram secretárias dos estúdios e, nas folgas, aproveitavam para usar aqueles meios de produção e fazer seus filmes. Quando o cinema virou indústria, com o objetivo gerar lucro, elas foram expulsas desses espaços e ocuparam só a frente das câmeras, como atrizes”, continua Camila. A partir de 1950, a porta de acesso para os meios de produção passou a ser a atuação. “Gilda de Abreu fez esse caminho no Brasil. Foi atriz e depois diretora. Nos Estados Unidos, foi o mesmo caso da Ida Lupino, primeira mulher a dirigir um film noir”, exemplifica Camila.

A crítica e pesquisadora explica a transição do cinema de película para o digital no Brasil favoreceu o acesso de mulheres aos meios de produção cinematográfica. “Apesar da crise institucional que estamos vivendo, com o corte de políticas públicas para o incentivo do audiovisual, acredito que ainda vai permanecer muito forte a produção de curtas-metragens, principalmente feito por mulheres negras. Também temos muitas mulheres fazendo documentários, que, muitas vezes, são produções mais viáveis financeiramente”, comenta.

A veterana Sandra Kogut, de 55 anos, também comemora as pequenas vitórias. “Minha geração começou a fazer cinema quando o cinema, no Brasil, tinha acabado”, diz, referindo-se ao Governo de Fernando Collor, que fechou a Embrafilme. “Além disso, quando comecei, além de mulher, era muito nova e tinha que mandar em equipes nas quais todos eram homens e, geralmente, mais velhos do que eu. Hoje em dia, as equipes são mais mistas”, afirma.

De fato, há maior paridade em alguns setores, como a produção executiva em que mulheres e homens correspondem a 41% e 42%, respectivamente (7% das produções são mistas), de acordo com a Ancine. No entanto, a brecha permanece em áreas tradicionalmente dominadas por eles, como a direção de fotografia: nas produções nacionais de 2018, 83% dos responsáveis pela função eram homens.

Cinema de gênero

Na história do cinema, as mulheres sempre escreveram, produziram e dirigiram filmes de todos os gêneros, de faroestes a comédias. No Brasil, um dos destaques no cinema de terror é Gabriela Amaral Almeida, de 40 anos, que começou a fazer curtas em 2009 e já dirigiu os longas O animal cordial (2017) e A sombra do pai (2018). “Têm-se esse conceito da feminilidade cinematográfica. Dentro da lógica da indústria audiovisual, os filmes de terror, são feitos por homens porque demandam mais orçamento, maior conhecimento técnico et cetera. Mesmo nos festivais de gênero, não raro sou a única diretora participante”, conta ela.

Gabriela diz que notou a discriminação quando deixou os curtas para dirigir o primeiro longa-metragem. “Curta não tem valor comercial, e, há dez anos, havia muitas políticas públicas de incentivo, então era mais fácil fazer. Quando se começa a fazer longas, a coisa muda, porque passa por financiamento privado, e aí há, sim, discriminação de gênero. “A demora da mulher para chegar ao cinema é a grana, não é o gênero em si. Homens com mesmo tempo de experiência e até com menos talento têm mais acesso a orçamentos maiores”, reclama.

É da condição de mulher e suas dificuldades —tanto na indústria cinematográfica quanto em outros âmbitos— que ela tira inspiração para seus filmes de terror. “Como mulher, a gente vive com medo, cresce com medo. Não temos sequer direito ao livre acesso às ruas, com segurança. Então, acho que fazer e assistir obras que refletem esse medo de outras formas acaba sendo satisfatório", explica.

A solidão das diretoras negras

Se fazer cinema no Brasil, sendo mulher, é mais complicado, fazer cinema como mulher negra é quase impossível. Adélia Sampaio, filha de uma emprega doméstica, foi a primeira a conseguir. Em 1984, ela lançou o primeiro longa dirigido por uma mulher negra: Amor maldito, que contava o caso real dos embates de uma lésbica com a Justiça.

Passaram-se mais de 30 anos até que Viviane Ferreira estreasse Um dia com Jerusa (2019), baseado no curta O dia de Jerusa, apresentado no Festival de Cannes de 2014. Viviane lamenta o fato de ser apenas a segunda negra na história dos longas-metragens de ficção brasileiros. “Para mim, não é motivo de orgulho, é mais um reflexo do racismo estrutural no país. Precisamos que mulheres negras tenham acesso aos recursos de produção e que passem a narrar em primeira pessoa. É triste ver mulheres pretas como Sabrina Fidalgo, Lilian Solá Santiago, Renata Martins, Dandara Ferreira, que antecedem a minha geração e ainda não conseguiram produzir seus primeiros longas”, diz.

A diretora baiana, de 34 anos, viu o “audiovisual como potência pela primeira vez” ainda na adolescência, quando participou do projeto Cipó - Comunicação Interativa, que forma jovens de classes populares em Salvador. Viviane fez o primeiro curta-documentário em 2008 e, desde então, não parou mais. “A maior dificuldade, ainda hoje, talvez seja o vício narrativo no audiovisual brasileiro, essa falta de interesse em contar narrativas negras”, afirma. "O mercado olha para nossas histórias como narrativas tecnicamente equivocadas e não investe nelas”. Para driblar o preconceito —social e comercial— ela, que é uma das fundadoras da APAN - Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro, abriu sua própria produtora, em São Paulo.

Em breve, a curta lista da qual Adélia e Viviane fazem parte vai crescer. A atriz Ana Flavia Cavalcanti (no ar como a inspetora Miriam na novela Amor de mãe) acaba de estrear no Festival de Berlim o curta , dirigido por ela e por Júlia Zakia e baseado em uma memória familiar de sua infância, e pretende rodar um longa depois que sair do horário nobre na televisão. “Será um filme sobre o trabalho doméstico, porque acredito que enquanto essas pessoas não tiverem sua dignidade reconhecida, tudo é conversa jogada fora”, diz, firme.

Filha de empregada doméstica, como Adélia Sampaio, e periférica, como Viviane Ferreira, Ana Flavia não hesita ante as dificuldades que a indústria do cinema impõe a realizadoras com seu perfil. “Gente como eu, que nasceu pobre e chegou a algum lugar, a gente faz o que quiser. Papo reto. Me sinto mais do que pronta. O feedback na Berlinale validou essa experiência. É organizar ideias, encontrar meios de produção e fazer”.



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