Manuela Dias: “A mãe é o elemento mais central e mais desvalorizado da sociedade”
Autora de ‘Amor de Mãe’, que estreia nesta segunda, quer debater o papel das diferentes maternidades. “A dramaturgia tem a função de nos fazer exercitar o elástico moral que nos ajuda a reagir”
Há quem argumente que, desde Eurípedes (poeta grego do século V a.C.), as mulheres têm sido protagonistas absolutas da dramaturgia. No Brasil, com a ampla tradição das telenovelas, essa é uma realidade. “Mas a dramaturgia ficou muito refém das histórias de amor. E o amor, numa piração muito louca, começou a justificar tudo. E todas as outras histórias, os amores filiais, a relação de aprendiz e mestre, tantas outras relações que mobilizam a gente, que te levam para a frente e te definem como ser humano cederam lugar a essa obsessão com o amor romântico”. Quem faz essa reflexão é Manuela Dias, 42 anos, roteirista da TV Globo há 20, responsável por levar o afeto maternal de volta ao horário nobre com Amor de Mãe, novela que estreará nesta segunda-feira, 25 de novembro.
Protagonizada por Regina Casé, Taís Araújo e Adriana Esteves, a trama tratará das diferentes relações familiares de suas personagens e da arte da maternidade possível. Estreia de Manuela como autora de novela —assinou a série Justiça, pela qual foi indicada ao Emmy em 2016—, o novo projeto recebe sua dedicação há três anos, mesma idade de sua filha. “Engravidei quando estava fazendo a série, aí Helena nasceu e foi aquela avalanche louca e esse superpoder que é ser mãe. É um negócio doido, porque mãe dá o que não tem. É uma espécie de mágica. E a gente vive num país em que as pessoas não têm pai, né?”. A autora lembra que 6 dos 11 titulares do Brasil na Copa de futebol masculino cresceram distantes do pai biológico. “E isso é uma média. Eu já dei aula na Cidade de Deus durante dois anos e não é uma questão de classe. Eu mesma tenho pai, ele esteve ali, um pai hiperamoroso, querido, mas que não fazia parte da estrutura da criação”, conta ela na sala do seu escritório no Rio de Janeiro. O lugar, com toda uma parede tomada por livros e cantos decorados com quadros, objetos de valor afetivo e lembranças de viagens, tem jeito de casa. Era ali que ela morava até a filha chegar em sua vida.
O primeiro lampejo de ideia foi o nome da novela. “Essa coisa do Brasil como mátria, esse país que é levado por essas mulheres fodas, que criam três, quatro, cinco filhos, sempre me comoveu. Quando eu mesma virei mãe, isso ganhou um relevo muito forte”, diz Manuela. Como boa “baiana, ariana, intensa”, como ela mesma se descreve, pontua cada frase com amplos gestos dos braços e mãos. Os adjetivos são abundantes em seu vocabulário.
A seguinte reflexão da autora foi sobre como a maternidade é um corte vertical em uma sociedade extremamete estratificada. Não à toa, outra questão central de Amor de Mãe é a desigualdade social. Tanto na ficção quanto na vida, cada mulher resolve seus problemas dentro de suas possibilidades. “Uma mãe rica, se o filho pega uma virose, leva ele para o Copa D’Or [hospital particular de Copacabana]. Em cinco minutos, ele está atendido e fica bom em três dias, porque ele também faz acupuntura, toma homeopatia...”, exemplifica, sem se excluir da problematização: "É muito louco, minha manicure engravidou junto comigo, a filha dela nasceu 20 dias depois da minha, e ela não sabia quem ia fazer o parto dela. Porque, no SUS, você não sabe. Eu não conseguia imaginar a possibilidade de, num momento tão decisivo da minha vida, ter que lidar com uma pessoa que eu nunca tinha visto. Então, os desafios são muito diferentes e essa diferença é muito injusta. Gostaria de mobilizar as pessoas para que nós, privilegiados, tenhamos consciência dos nossos privilégios. Eu crio minha filha falando pra ela: ‘Filha, você é uma pessoa privilegiada. Claro que isso vai te jogar mais longe, vai te abrir mais portas, mas isso não pode fazer você esquecer que o custo desse privilégio é um monte de gente que não tem o mesmo que você’”.
Apesar desse posicionamento, a autora diz que não pretende “atingir ninguém pela cabeça”, e sim pelo coração. Ela conta que, durante o processo de escrita, deparou-se com uma página no Facebook, Eu, empregada doméstica. “Aí eu vi que estamos na Idade Média. Eu li a história de uma mulher que aprendeu a fazer cocô num pote de sorvete, porque a casa só tinha um banheiro e ela não podia usá-lo. São relatos comoventes e não são únicos. Tem pessoas trabalhando só para comer, é escravidão. E não estou falando dos recantos do Brasil, estou falando de São Paulo. Talher separado, copo, comida separada é praxe no Brasil. Tem que lavar o prato da empregada no tanque… Coisas que não fazem sentido nenhum. Essa pessoa mete a mão na sua comida! Por que ela não pode lavar o prato na pia? Ela não pode dividir a bucha?! É uma coisa muito louca”, questiona, agitada.
Manuela conta que adoraria que um personagem seu conseguisse mobilizar algo como a criação de uma lei que obrigue que funcionários possam usar os banheiros das casas em que trabalham —no Brasil, empresas têm obrigação de fornecer isso, espaços domésticos, não. “Essa é uma das minhas pretensões. Como a novela toca nessa questão de classe, eu só estou querendo que a gente se olhe. Isso, para mim, é bem importante: a dramaturgia tem uma função, a de fazer a gente exercitar nosso elástico moral, essa malha imaginária que nos ajuda a reagir”.
Ela também fala das relações raciais. Em Amor de Mãe, a personagem mais rica é interpretada por Taís Araújo. "E existe uma tentação de explicar porque a minha única protagonista negra é a mais rica. Mas eu não vou explicar. Porque o nosso vício pede uma explicação, e eu quero quebrar esse vício. A Érica Januza [outra atriz negra] é uma tenista, e até meus colaboradores sugeriram explicar que ela participou de um projeto de uma ONG, porque tênis é um esporte de rico. Não, gente, vamos naturalizar!", argumenta.
Culpa e finais felizes
Manuela acredita que, com a mãe, nasce a culpa. "É foda. Eu tenho um suavizante por ser baiana, né? A prateleira da culpa é pouquinho menor na nossa loja e não dá para colocar muita coisa [risos]. Mas a mãe é o elemento mais central e mais desvalorizado, no sentido de que é tão garantido, sabe? Se ela não dorme por dez noites, é porque ‘mãe é mãe’. Aí o pai troca uma fralda e as pessoas se jogam pelo chão: ‘Ai, gente, ele troca fralda!’, imita com voz aguda e animada. Sim, ele troca fralda, é normal. Você, mãe, resolve tudo, não tem uma palma, ninguém levanta uma sobrancelha por isso. Eu tenho muita vontade de fazer uma ode a essa mãe, quero bater palma e falar ‘vocês são demais!’ [diz, enquanto bate palmas]. E eu me incluo nisso, porque eu boto minha filha para dormir todo dia, escrevendo uma novela das nove. Levo pra escola, dou jantar… E esse esforço significa não dormir. Ser mãe é muito isso, seja fazendo novela das nove ou sendo funcionária na casa de alguém”, desabafa.
Em Justiça, o roteiro de Manuela pregou 20 milhões de pessoas diante da televisão em cada capítulo, uma audiência comparável à de Game of Thrones. Ante a pressão de reproduzir esse sucesso de audiência na novela das nove, ela confessa sentir medo, mas tenta manter-se no presente. “Eu quero aproveitar essa possibilidade para fazer as pessoas ligarem no final do capítulo para suas mães, para fazer as pessoas pensarem nas suas questõezinhas, no seu talher, no prato da empregada... Precisa lavar no tanque? Será que essa pessoa tá podre? Mas se ela está podre, como ela faz sua comida?” E não acho que a gente vai se repensar com a cabeça, mas, sim, com o coração. A gente vai se valorizar repensando nossa mãe. A mãe é um princípio civilizatório”, conclui.
Ela diz que não quer escrever uma novela de 6.000 páginas para que as pessoas fiquem ricas e casem no final. “Eu acho que o final feliz é a coisa mais subversiva que existe, mas na tragédia grega, no film noir, as pessoas já foram felizes com coisas muito mais profundas do que a alegria. Ou a riqueza ou o casamento. Quero que, no fim, pessoas fiquem felizes na novela com outras coisas, com outras formas de amor, que é outra das coisas mais subversivas que existem atualmente”.
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