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Sob ataque de Bolsonaro, Cultura defende seu impacto na economia com receita de 170 bilhões de reais

Setor emprega cerca de 5 milhões de pessoas, entre formais e informais, ou quase 6% de toda a mão de obra brasileira. Lei Rouanet dá suporte a 73% das produções culturais do país

Sala do cinema Belas Artes, em São Paulo.
Sala do cinema Belas Artes, em São Paulo.Divulgação

“Este filme gerou 800 empregos diretos e indiretos”. Com essa frase nos créditos finais, Bacurau, um dos filmes nacionais mais celebrados do ano, vencedor do Prêmio do Júri em Cannes, deixava uma clara mensagem ao Governo de Jair Bolsonaro, que, no primeiro ano do seu mandato, cancelou editais devido ao conteúdo dos filmes produzidos, ameaçou extinguir a Agência Nacional do Cinema (Ancine), esvaziou Lei Federal de Incentivo à Cultura (Lei Rouanet) e fez nomeações ideológicas para cargos estratégicos no incentivo às artes. Bacurau levou mais de 730.000 pessoas aos cinemas e gerou uma renda de mais de 11,2 milhões de reais, de acordo com a distribuidora Vitrine Filmes. Os números são impressionantes, sobretudo para uma produção nacional em um ano em que o Governo suspendeu (ainda que temporariamente) a política de cota de tela para o cinema nacional, o que fez com que Vingadores: Ultimato ocupasse mais de 80% das salas em sua estreia no país, no final de abril.

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No dia 24 deste mês, finalmente foi publicado um decreto, assinado pelo presidente da República, com as normas para exibição de filmes nacionais, o que traz segurança jurídica para produtores e cinemas.

Bacurau é apenas um pequeno exemplo do impacto da cultura na economia brasileira. O setor cultural corresponde a entre 1% e 4% do PIB nacional. A Secretaria da Economia Criativa do extinto Ministério da Cultura e a Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan) estimam que a cultura equivale a 2,5% do PIB, equivalente a 170 bilhões de reais. Nichollas Alem, presidente do Instituto de Direito, Economia Criativa e Artes e especialista em Direito Econômico da Cultura, explica que as variações ocorrem porque o estudo da economia criativa é recente —surgiram globalmente em 1990— e há debate sobre quais indicadores e atividades devem entrar na conta. “Desenvolver esses indicadores é o o primeiro passo para criar uma política pública com visão de que cultura gera resultados, sejam eles educacionais, econômicos ou sociais. Por muito tempo, existiu a percepção de que cultura era apenas um gasto público, no sentindo de que era obrigação do Estado fomentá-la, mas a cultura tem também uma dimensão estratégica, é um setor de ótimo impacto tributário e gera emprego”, explica Alem.

O setor cultural ocupava, em 2018, mais de cinco milhões de pessoas, entre formais e informais, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), representando 5,7% do total de ocupados no Brasil. As pesquisas estruturais econômicas, que são feitas com base em uma amostra de empresas dentro de um universo menor que o do Cadastro Central de Empresas, mas que consideram o volume da economia criativa (englobando desde o artesanato até o mercado publicitário, por exemplo) estimaram que havia, em 2017, 223.400 empresas associadas, direta ou indiretamente, ao setor cultural, que ocuparam 1,7 milhão de pessoas formais e geraram uma receita líquida de aproximadamente 539 bilhões de reais.

Já em 2010, os dados do Ministério da Cultura indicavam que os setores criativos representavam cerca de 2,84% do PIB, o equivalente a 104,37 bilhões de reais naquele ano, superando a participação da indústria extrativa (78,77 bilhões) e a produção e distribuição de eletricidade, gás, água, esgoto e limpeza urbana (103,24 bilhões). O crescimento anual do setor, entre 2005 e 2010, foi de 6,13% ao ano, maior que o crescimento médio anual do PIB —que ficou em 4,13% nesse mesmo período—. “Isso mostra que o investimento no setor cultural pode ser, sim, uma solução para a saída da crise econômica no Brasil. Trata-se de um setor que consegue se reinventar em tempos de crise. A cultura é revigorante, é estratégica”, afirma Nichollas Alem.

O especialista cita como exemplo a Comic Con Experience, uma feira de cultura pop voltada para videogames, histórias em quadrinhos, filmes e séries, que nasceu como um evento de nicho (para nerds e geeks) e hoje movimenta milhões: na última edição, no início de dezembro, mais 280.000 pessoas movimentaram 265 milhões de reais só na cidade de São Paulo.

Alem destaca que a economia tem “alto valor agregado e baixíssimo impacto ambiental”, além de gerar impactos positivos que não necessariamente estavam previstos no investimento inicial. “A instalação de um equipamento cultural em uma área considerada perigosa, por exemplo, tem um reflexo na segurança pública que nem sequer estava medido inicialmente. As pessoas passam a frequentar mais aquela região, o que pode fomentar o comércio local e, assim a ocupação das ruas”, comenta. “Outra possibilidade é o fomento de cadeias de turismo, como o turismo de visitação de locações de cinema. É algo tão comum em outros países que há incentivo fiscal para produções que gerarão ativo turístico em médio e longo prazo”, acrescenta.

O poder do audiovisual

No Brasil, o audiovisual é todo um capítulo à parte na economia da cultura. Só esse setor corresponde a entre 0,5% e 1,5% do PIB brasileiro —quer dizer, quase metade do PIB cultural—, de acordo com os dados da Firjan e da Secretaria da Economia Criativa. Em 2018, o cinema nacional lançou o número recorde de 185 títulos (o maior da série histórica 2009-2018), que venderam mais de 24 milhões de ingressos, o que representou uma participação de público de quase 15% do total, de acordo com o Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual.

“Precisamos nos libertar da concepção de que, em países liberais, o Estado não investe em cultura. A história de formação de Hollywood sempre teve o Estado muito atrelado à abertura de mercados internacionais. O Brasil tem esse grande potencial de transformar o audiovisual em ativo de comércio exterior. Há talento, recursos humanos e uma criatividade que é reconhecida fora”, diz Alem. De fato, em 2019, o cinema brasileiro foi destaque em premiações mundo afora: Divino Amor em Sundance e no Festival de Berlim em fevereiro, onde também foi destaque o pernambucano Estou me guardando para quando o carnaval chegar. No coração do mundo, em Roterdã, além de Bacurau e A Vida Invisível em Cannes.

Alem comenta que a Ancine, principalmente a partir da criação do Fundo Setorial do Audiovisual e da Lei Rouanet (pela qual patrocinadores podem abater o valor aportado em projetos culturais de seu imposto devido), sempre foi um instrumento importante para esse desenvolvimento. O balanço histórico mostra que, desde 2001, o patrocínio por meio de incentivo fiscal supera o investimento público em cultura. Em 2016, incentivo do mecenato da Rouanet representou 73% dos gastos tributários com cultura, de acordo com os dados da Receita Federal. “Trata-se de uma política importante, porque é o mercado que escolhe quais projetos devem ser financiados, sem viés ideológico”, diz Alem.

A Lei Rouanet vem sendo criticada desde as eleições de 2018 por setores da política conservadora precisamente por acusações sobre seu uso para projetos de “doutrinação cultural”. O orçamento destinado em 2018 para a Lei Rouanet era de 60 milhões de reais, montante que foi reduzido pelo atual Governo para um milhão de reais, o que inviabilizaria até as menores produções. Em reunião com produtores de teatro em São Paulo na semana passada, o secretário de Cultura, Roberto Alvim, informou que reajustará o teto de captação para 10 milhões de reais, mas apenas para musicais. “A Constituição, no Artigo 215, diz que é dever do Estado garantir a todos os direitos culturais e o acesso à cultura nacional. Não é uma questão ideológica”, diz Alem.


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