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Cinema ‘made in Nordeste’ dribla crise do audiovisual e ganha espaço em festivais internacionais

Do cearense 'A Vida Invisível' ao pernambucano 'Bacurau', produções de cineastas da região quebram monopólio do Sudeste, rodam o mundo ao longo de 2019 e são aclamados pela crítica e pelo público

Fortaleza / São Paulo -
Cena do curta 'Marie', dirigido pelo pernambucano Leo Tabosa e premiado em Gramado.
Cena do curta 'Marie', dirigido pelo pernambucano Leo Tabosa e premiado em Gramado.Juarez Ventura

Divino Amor em Sundance e no Festival de Berlim em fevereiro deste ano — onde também foi destaque o pernambucano Estou me guardando para quando o carnaval chegar —. No coração do mundo, em Roterdã. Bacurau e A Vida Invisível em Cannes. A lista demonstra que 2019 tem sido o ano do reconhecimento internacional do cinema brasileiro por excelência, com filmes que têm pelo menos um elemento em comum: todos os premiados são obras produzidas no Nordeste ou por realizadores nordestinos. Em território nacional, não é diferente. Pacarrete, do cearense Allan Deberton, levou oito kikitos (inclusive o de melhor filme) no Festival de Gramado, em agosto, onde também foi vencedor o curta-metragem Marie, do pernambucano Leo Tabosa.

"Se formos olhar, nos últimos 15 anos, o cinema brasileiro de vanguarda, o cinema que vem ganhando prêmios e reconhecimento nacional e internacional é o cinema nordestino", afirma, sem titubear, Wolney Oliveira, cineasta e responsável pelo Festival Iberoamericano de Cinema Cine-Ceará. Para Karim Aïnouz, cearense diretor de A Vida Invisível—que representará o país na tentativa de uma vaga para o Oscar de melhor filme em língua estrangeira—,  esse sucesso do cinema made in Nordeste é uma “coincidência irônica”, já que o governo de Jair Bolsonaro tem diminuído orçamentos para projetos culturais, e o presidente já ventilou a possibilidade de extinguir a Agência Nacional do Cinema (Ancine).

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Para o também cearense Armando Praça, diretor de Greta, filme estrelado por Marco Nanini, que vive um enfermeiro homossexual na terceira idade, este é um "momento simbólico para mostrar ao público" o quanto o cinema nordestino produz. "E o quanto produzimos com qualidade", arremata. Seu primeiro longa-metragem, que conta com nus masculinos frontais e cenas de amor entre homens estreou no dia 10 de outubro, em um momento em que o governo federal cancela editais da Ancine para obras com temática LGBT (decisão suspensa pela Justiça) e pouco depois de que um romance gráfico em que dois heróis se beijam fosse censurado na Bienal do Livro do Rio de Janeiro.

"Nosso cinema sempre foi muito de resistência, porque sempre estava um pouco atrás do que se fazia no Rio e São Paulo, em relação a recursos e possibilidades de produção. A gente está acostumado, de certa maneira, a produzir sob pressão, por isso, agora, quando é requisitado dos artistas um posicionamento mais combativo, é natural que saiamos à frente. Sempre estivemos à margem, as histórias nordestinas nunca foram as mais contadas", diz Praça.

Não existe uma pesquisa ou outro tipo de relatório científico que explique o afã criativo do audiovisual nordestino, do litoral ao sertão. O que é sabido é que o cinema chegou por aquelas banas poucos meses após as primeiras projeções dos irmãos Lumière em Paris. Em 13 de setembro de 1896, Francisco Pereira de Lyra, produtor de espetáculos populares, usou um aparelho chamado kinetographo, uma cópia do Cinématographe, no saguão da Estação Ferroviária de Caruaru (PE). Um século depois, o baile começou.

Em 1985, foi criado no Centro de Artes e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) o grupo Vanretrô, reunindo os então estudantes Paulo Caldas, Lírio Ferreira, Cláudio Assis, Adelina Pontual, entre outros. Em 1996, todos eles se juntam para viabilizar o longa em 35 milímetros Baile Perfumado, dirigido por Lírio Ferreira e Paulo Caldas, que tornou-se um marco do cinema brasileiro. Mas se há décadas o cinema pernambucano é exaltado como um fenômeno único, também fazem-se filmes em outras regiões do Nordeste. Os principais destaque são o Ceará, como um dos grandes centros do cinema experimental brasileiro, e a Paraíba, um dos estados que mais produz filmes de terror. 

Todos os cineastas ouvidos pelo EL PAÍS mencionam o barateamento dos equipamentos, a partir dos anos 2000, e a revolução digital —com a substituição dos parques analógicos— como medidas que permitiram descentralizar os recursos do eixo Rio-São Paulo e democratizar a produção audiovisual. "Como isso, podia-se, por exemplo, editar filmes em casa. O que, para mim, é inaplicável é como a gente consegue ter uma gama tão heterogênea e eclética de realizadores extremamente autorais. São filmes muito diferentes entre si, mas que chamam cada vez mais a atenção do público e da crítica", comenta Juliano Dornelles, codiretor do aclamado Bacurau. Seu colega de direção, Kléber Mendonça Filho, concorda: "Temos de filme sobre lobisomem a dramas sociais, comédias, filmes de aventura, de distopia, de todos os tipos".

Um exemplo disso é O Clube dos Canibais, a mais recente produção da safra nordestina, dirigido pelo cearense Guto Parente, que chegou aos cinemas no dia 4 de outubro e que mistura sexo e canibalismo em uma produção de terror que reflete os muitos dilemas do Brasil contemporâneo.  

Políticas de incentivo

"O cinema brasileiro nunca viu um momento tão diverso e tão feliz, algo que pode ser observado de maneira orgânica, pelos próprios espectadores, mas também pelos mecanismos oficiais de observação, como os festivais internacionais", continua Mendonça Filho, destacando, sem citar governos específicos, que "isso é resultado de 15 anos de políticas públicas de âmbito federal" de fomento ao cinema e descentralização de recursos. "Quando eu me formei em 1992, o cinema em Pernambuco era totalmente inexistente, tanto por questões técnicas quanto por falta de apoio público. Todos os laboratórios, câmeras e equipamentos de som estavam no Rio de Janeiro ou São Paulo, não existia realmente uma ideia firme de cinema pernambucano, apenas um desejo desse cinema", lembra o diretor de obras como Aquarius e O som ao redor.

Pernambuco foi o primeiro estado a ter uma lei do audiovisual (a Lei 15.307, de 2014), que fez com que o setor passasse a ter uma política imune às trocas de gestão. Antes disso, outras iniciativas ajudaram a consolidar o chamado novo cinema pernambucano, como Sistema de Incentivo à Cultura (SIC), criado pela Prefeitura de Recife em 2012, e o projeto estadual Funcultura Audiovisual, de 2007.

No Ceará, além da Casa Amarela (fundada há 50 anos pelo cineasta Eusélio de Oliveira e vinculada à Universidade Federal do Ceará), que oferece formação em fotografia, cinema e animação, somaram-se o Centro de Narrativas Audiovisuais da Escola Porto Iracema das Artes (CENA 15), um laboratório de roteiro e dramaturgia com tutoria de Karim Aïnouz, e o programa Ceará Filmes (parceria do governo estadual com a Ancine), criado há dois anos, que oferece editais de apoio nas áreas de produção, distribuição, exibição, preservação, formação, rede Institucional e legislação para jovens cineastas.

"Vivemos um momento muito feliz que precisa ser continuado e estimulado com completa liberdade de criação e iniciativa", defende Kleber Mendonça Filho. "A tendência, quando se fortalece a indústria, é que aumente a qualidade do produto. O investimento está diretamente relacionada à qualidade e à democratização, principalmente em um país de 200 milhões de habitantes e com um dos maiores potenciais criativos do mundo", apoia Juliano Dornelles.

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