Viagem pela BR-319: estrada rumo à destruição da Amazônia
Percorrer os quase 900 quilômetros da via que cruza uma das áreas de floresta mais bem preservadas do Brasil permite observar a olho nu como o desmatamento avança. Bolsonaro pretende asfaltá-la totalmente
Viagem pela BR-319: estrada rumo à destruição da Amazônia
O sol já está alto. São sete horas da manhã quando um homem desce eufórico de um caminhão no posto de gasolina. Ele se aproxima da primeira mulher à vista, se apresenta com pompa como Carlinhos Raimundo da Auxiliadora e dispara: “Tem marido?”. Cheira a álcool e balança uma nota de 200 reais, dessas raramente utilizadas no Brasil. Exultante, procura companhia para comemorar que acabam de pagá-lo regiamente por um trabalho, e algo ainda mais importante. “Estou tão feliz, finalmente comprei uma terra!”. A quem o avisa para tomar cuidado com o dinheiro, responde entre risadas, como se fosse um cowboy de filme: “Eu tomo, com um 38 na cintura”. A camiseta para fora da calça impede de saber se realmente está armado.
Isso é Realidade, terra prometida a aventureiros e pobres. E este, o primeiro posto de gasolina após se dirigir por 500 quilômetros ao norte pela BR-319, a estrada mais controversa da Amazônia. Completar o trecho asfaltado é a grande promessa do presidente Jair Bolsonaro para a região, que ele considera estratégica ao desenvolvimento econômico local. Percorrê-la de ponta a ponta, de Manaus a Porto Velho, incluindo os 400 quilômetros de terra, permite à equipe do EL PAÍS observar a olho nu o impacto produzido pelos colonos que desembarcam atraídos por promessas e terras a bom preço. O desmatamento avança velozmente.
No mapa, a estrada é um traço minúsculo. Pelo olhar de um drone, uma linha reta alaranjada em um cerrado manto verde que parece brócolis. Provavelmente poucos dos que participam da cúpula COP26 de Glasgow sabem de sua existência, mas os que observam a maior floresta tropical do mundo não tiram dela seus olhos. O desenlace desta obra dirá se a parte mais virgem da selva amazônica continuará protegendo a biodiversidade e capturando dióxido de carbono ou não. E isso influirá no restante do planeta porque as florestas como essa são cruciais para regular a temperatura global.
O povoado de Realidade é uma sucessão de bares, motéis, oficinas, igrejas evangélicas e casinhas de madeira em ruas de terra que frequentemente se transformam em um lamaçal.
Nos últimos anos cresceu até merecer escola e posto de saúde, um boom que se assenta em negócios lucrativos criados nas margens da estrada que dizimam a selva: o corte ilegal de madeira, a criação de gado e plantações de soja que atraem pessoas de outros Estados.
A lei é um conceito distante e maleável. É um território tenso onde prevalecem os fatos consumados e o receio ao forasteiro que investiga. Ninguém chega para fazer turismo e por engano, vem com um objetivo. Todos estão em alerta constante. E em centenas de quilômetros não há um policial. Os locais esperam ansiosos o asfalto há décadas, convencidos de que trará prosperidade. Mas para cientistas e ecologistas é um cenário de pesadelo. Eles temem que o monstro que viram crescer em Realidade nesses anos suba estrada acima.
Os 887 quilômetros da BR-319 cruzam uma das áreas mais bem preservadas da floresta que cobre a metade do Brasil, uma superfície do tamanho da União Europeia repleta de rios, correntes e lagoas. Durante meio ano, a estrada é um atoleiro. Os viajantes deixam para trás fazendas batizadas como Grande Esperança, Terra Rica e Deus Me Deu.
Entre os mais envolvidos na batalha a favor do asfalto está Dona Mocinha. Ela tem uma pousada no quilômetro 260, óculos enormes, e disposição suficiente para ir à escola noturna aos 64 anos. Ela se instalou na Unidade de Conservação Igapó Açu há décadas, uma reserva de desenvolvimento sustentável de palafitas de madeira para evitar as enchentes. “Houve uma época em que de novembro a maio por aqui ninguém passava. Ninguééém”.
Agora, com a estrada mais ou menos transitável todo o ano, vê de sua varanda mais tráfego de caminhões e veículos de tração nas quatro rodas. “Dizem que a estrada (asfaltada) terá impacto, mas qual impacto? Olhe, eu não sou bióloga, mas o maior impacto foi gerado quando a construíram”, nos anos setenta, durante a ditadura. Deve ter sido uma obra titânica porque o terreno é pantanoso e, por isso, “é uma área muito produtiva, rica em biodiversidade. “Sulcada por rios muito ricos em peixes, jacarés e mosquitos”, diz Rômulo Batista, do Greenpeace.
Mesmo a simpática Dona Mocinha, da Associação de Amigos e Defensores da BR-319, sabe que as melhorias que a pavimentação traria à sua vida não viriam sozinhas. “Quando chega o desenvolvimento chega o desmatamento, invasões, prostituição, drogas... mas mais preocupante é não ter a BR-319 para ir e vir”, reflete em sua cadeira de balanço. Eles se sentem presos nesse belíssimo mas isolado rincão porque é a única conexão terrestre de Manaus, a capital do Estado do Amazonas, com o coração do Brasil.
As pressões chegaram à casa da senhora antes do o asfalto trazidas por compatriotas vindos de longe com suculentas ofertas, atraídos pelas fabulosas oportunidades que vislumbram. “Muitos vêm de Rondônia e Mato Grosso. Procuram terreno, terreno, terreno. Já digo a eles que não, que não tenho terras para vender, que isso é uma reserva natural! Olhe, cheguei aqui há 44 anos e jamais vendi um lote de terra. E fui até ameaçada de morte”, afirma. Vender parcelas de uma reserva é crime. Mas descomunais extensões de terras públicas margeiam a rodovia. Qualquer um se apropria facilmente delas com documentos falsos e cumplicidade política. É a chamada grilagem.
O panorama é um aperitivo do catastrófico cenário antecipado por cientistas como a agrônoma tropical Jolemia Chagas, que monitorou o trecho entre os quilômetros 250 e 280. “O asfalto vai intensificar as invasões dos últimos cinco anos”, alerta. Isso traz especulação imobiliária, conflitos violentos com os locais e agrava problemas ambientais de consequências tangíveis. Ela destaca que “a retirada da cobertura florestal interfere diretamente na produção dos rios voadores (correntes de vapor de água) que abastecem parte da América do Sul, influenciando diretamente na produção agrícola”.
A região é povoada por famílias que vivem, principalmente nos extremos da rodovia, da agricultura de subsistênciae do comércio. E indígenas, 18 povos dispersos e afastados da estrada principal. Uma das vias de terra secundárias que começaram a ser construídas praticamente toca oterritório onde vive um grupo de nativos isolados, umas 30 pessoas, provavelmente descendentes dos juma que sobreviveram a uma matança em 1964, diz o indigenista Pedro da Silva, do Conselho Missioneiro Indígena.
Com o aumento do tráfego, surgiram restaurantes, fazendas e igrejas. Pela via, circulam caminhões, carros que carregam toda a vida de alguém que persegue um futuro melhor, ou o negócio de sua vida, lícito ou não, motoqueiros cinquentões viajando... Percorrê-la significa sair de Manaus por uma estrada asfaltada com a pista cuidadosamente pintada de amarelo e o acostamento, de branco. Pouco depois, o rio Amazonas, que se cruza de balsa. O transporte fluvial, caro e lento, é o mais comum.
Km 198. Fim do asfalto. Bem-vindos ao chamado trecho do meio, que perdeu a pavimentação no final dos anos oitenta pelo abandono. Graças a isso e às reservas ambientais e indígenas criadas a partir de então, o impacto dos humanos é muito menor do que em outras regiões amazônicas.
Mesmo o olho menos treinado distingue de dentro do veículo quando se circula dentro de uma reserva ecológica. As árvores e a vegetação formam um manto verde tão denso que impede ver mais à frente. Mas os melhores olhos sobre a região são os satélites, que fotografam parcelas de três metros para medir onde e a qual velocidade a floresta tropical é destruída. O desmatamento já estava em crescimento, mas com Bolsonaro disparou. O último ano foi o pior dos últimos 12 com o desaparecimento de 11.000 quilômetros quadrados de árvores. Como se a cada minuto do último ano a Amazônia perdesse o equivalente a três campos de futebol, diz o Greenpeace.
O fazendeiro Joeliton Silva, 53 anos, não nega o desmatamento. Ele mesmo contribui há anos abrindo caminhos entre a vegetação para outros que depois cortam as árvores mais valiosas em um negócio bilionário. Desafia os jornalistas a contar o que chama de “a verdade”, uma tese baseada no seguinte argumento: a magnitude da floresta é tamanha que o dano é mínimo. Contra o consenso científico e citando um cientista concreto, o afável Silva afirma que “o efeito da ação humana sobre a temperatura é insignificante”. E para finalizar, mostra suas contas: “Nessa velocidade, demoraremos 140 anos para desmatar 10% do Brasil”. É um discurso que divulga pelo YouTube de sua casa, nos arredores de Realidade, a cidade dos aventureiros.
Está convencido de que o alarme internacional pelo desaparecimento da riquíssima flora e fauna amazônica é exagerado, nada além de uma desculpa para camuflar a cobiça dos estrangeiros que pretendem roubar do Brasil suas riquezas naturais. Dono de duas fazendas que somam 6.400 hectares, tem uma à venda porque sua incursão na piscicultura não deu certo. Apesar da abundância de rios, peixes também são criados.
Contribuir para atividades ilícitas não tira o sono de Silva porque, afirma ele, desmatar legalmente é impossível. Ele tentou, é árduo e não compensa. É melhor negócio, diz, fazê-lo na marra, e se for pego recorrer das multas —que diante da burocracia, acabam sendo poucas vezes cobradas de fato. Fã de Bolsonaro, mostra orgulhoso um vídeo em que abraça o ministro da Infraestrutura enquanto este afirma que “a BR-319 já está se materializando”.
O discurso de Bolsonaro de que a proteção ambiental impede o desenvolvimento tem muita força e dá asas à exploração predatória, ao lucro fácil e à impunidade. Triunfa “a ideia perversa de que, se os outros países desmataram para se desenvolver, esse é o preço a ser pago”, afirma Fernanda Meirelles, em Manaus, na sede do Observatório da BR-319, uma aliança de ONGs que supervisiona a estrada. “Não somos contra a rodovia, mas queremos que antes (de asfaltar) sejam resolvidos os problemas de titularidade da terra, de fiscalização, como gerir as unidades de conservação...”, diz. Após detalhadas explicações dos inumeráveis desafios, finaliza sorridente: “Meu sonho seria uma passarela elevada”.
Os ativistas ambientais desconfiam do mantra do Governo e dos defensores do asfalto, que afirmam que a obra será sustentável. “Mais de 90% do desmatamento acontece em um raio de até 100 quilômetros das grandes estradas”, diz Batista, do Greenpeace, e acrescenta que mesmo as rodovias projetadas com critérios de sustentabilidade, como a BR-163, que corre paralela rumo ao leste, causaram graves danos socioambientais. Mas também sabem que a região é pobre e são necessários negócios que tragam prosperidade. Sua receita é exploração sustentável.
Dona Mocinha participou das recentes audiências públicas, a melhor amostra de que o processo burocrático avança. O Governo Bolsonaro deu mais impulso ao projeto do que qualquer predecessor. Falta o Ibama, órgão governamental que gere a política ambiental, autorizar ou não a pavimentação. Nenhum dos consultados acredita que irá negar, mas as ONGs lembram que os indígenas já deveriam ter sido consultados. Depois viria o desafio do financiamento.
Frequentemente, um caminhão preso no atoleiro corta totalmente a circulação mesmo nesses dias do final da temporada seca. Um rebocador vai resgatá-lo. É impressionante ver como o imenso veículo patina. O caminhoneiro Aulcides Costa, de 49 anos, chegou a ficar oito dias preso. “A comida e a água mineral acabaram no quinto dia”, lembra.
Estas áreas eram incomunicáveis até que a internet abriu a elas uma janela ao mundo, as transformou em comunidade e as entretém durante a longa estação chuvosa. É muito útil. Qualquer um pode saber em tempo quase real como está o caminho graças aos 46 grupos de WhatsApp da Associação de Amigos da BR-319, que tem quase 10.000 membros.
Com o avanço rumo ao sul, surgem espaços abertos nas margens. Cada vez mais frequentes e maiores. De repente, vacas e mais vacas pastando placidamente. A bucólica cena disfarça seu efeito nefasto sobre a Amazônia. As próprias reses e o corte de árvores para abrir pastos são os principais responsáveis pelas emissões brasileiras de gases de efeito estufa, que aumentaram mesmo no ano da pandemia, enquanto mundialmente desabaram pela inédita paralisação. Após o corte, os pastos servem para se apossar da terra e depois chegam as plantações de soja. No caos aparente existe um método.
O empresário Antônio Graças, de 71 anos, está convencido de que é agora ou nunca. Em sua loja em Carreiro de Castanho, no quilômetro cercado de camas, eletrodomésticos e ventiladores, opina que não há ninguém mais propício do que um presidente formado nos quartéis e nostálgico da ditadura, com um ministro da Infraestrutura que serviu como militar na Amazônia, para dar continuidade ao projeto impulsionado pelos generais há meio século. Desbravaram a selva para construir estradas. Doaram terras. Em plena Guerra Fria, a obsessão era povoar aquela imensidão, habitada durante milênios por indígenas, para se assegurar de que ninguém a roubaria. “Integrar para não entregar” era o lema da época.
Graças deseja fervorosamente que Bolsonaro não deixe a ocasião passar. “Se não der um empurrão inicial para que uma empresa faça cem quilômetros, outra, mais cem... não vai sair. Então, somente Deus dirá”.
O empresário descarta qualquer risco de que os crimes ambientais aumentem porque para isso o Estado está aí; e enumera uma longa lista de instituições com poder fiscalizador. Existem no papel. Na prática, é outra história. Rumo ao final da BR-319, onde cruza com a mítica rodovia Transamazônica, se chega a Humaitá. Uma turba incendiou em 2017 a sede do Ibama na cidade. O vice-presidente brasileiro, o general Hamilton Mourão, afirma que, com o asfalto, o risco de desmatamento pode aumentar e será preciso reforçar a vigilância, mas afirma que também facilitará a chegada da Polícia Federal.
Créditos
Apoie nosso jornalismo. Assine o EL PAÍS clicando aqui
Inscreva-se aqui para receber a newsletter diária do EL PAÍS Brasil: reportagens, análises, entrevistas exclusivas e as principais informações do dia no seu e-mail, de segunda a sexta. Inscreva-se também para receber nossa newsletter semanal aos sábados, com os destaques da cobertura na semana.
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.