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Bolsonaro neutraliza o papel do Ibama na aplicação de multas ambientais

Novo decreto do presidente cria audiência de conciliação, que terá a palavra final sobre sanções aplicadas por fiscais

Bolsonaro, durante a cerimônia que marcou os 100 dias de seu governo.
Bolsonaro, durante a cerimônia que marcou os 100 dias de seu governo.ADRIANO MACHADO (REUTERS)

Durante a campanha eleitoral de 2018, o então candidato ultradireitista Jair Bolsonaro (PSL) prometeu que iria acabar com as multas ambientais do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama) que, para ele, tanto atrapalham empresários e produtores brasileiros. O presidente, ele mesmo multado em 10.000 reais por estar pescando em uma estação ecológica em Angra dos Reis em 2012, já fez diversos ataques verbais ao órgão fiscalizador e ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), ambos vinculados ao Ministério do Meio Ambiente. Mas foi em 11 de abril que Bolsonaro finalmente deu um passo concreto para sufocar a atuação dos fiscais do Ibama, ao assinar um decreto que burocratiza ainda mais as multas ambientais.

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O decreto 9.760 institui o Núcleo de Conciliação Ambiental, uma espécie de tribunal que terá a palavra final sobre sanções aplicadas por fiscais, desautorizando a atuação independente desses funcionários. O documento, previsto para entrar em vigor em 180 dias após sua assinatura, também muda regras de conversão de multa em projetos tocados por Organizações Não-Governamentais.

Segundo o Palácio do Planalto, a nova regra tem o objetivo de aperfeiçoar "o processo sancionador ambiental e o programa de conversão de multa simples em serviço de preservação, melhoria e recuperação da qualidade do meio ambiente, de modo a tornar a cobrança mais ágil". Ambientalistas enxergam, porém, que a medida inviabiliza a atuação dos organismos federais e dificulta ainda mais a aplicação de multas e a execução de projetos ambientais, na linha do que tanto Bolsonaro como o ministro Ricardo Salles (NOVO) vêm declarando. Na última segunda-feira, o presidente afirmou em evento com ruralistas que havia negociado com Salles uma "limpa" nos dois órgãos federais de meio ambiente. O próprio ministro fez coro contra a chamada "indústria da multa" em entrevista a Folha de S. Paulo, ao dizer que existe uma "proliferação das multas", muitas delas aplicadas "por caráter ideológico".

O Núcleo de Conciliação criado por Bolsonaro ficará responsável por analisar, mudar o valor ou anular uma multa aplicada por um fiscal. Especialistas ouvidos pelo EL PAÍS, mas que preferem não se identificar, chamaram a atenção para dois problemas. O Ibama aplica cerca de 14.000 multas por ano nas 27 superintendências do país, e não há estrutura para agendar 14.000 audiências de conciliação em todo o território nacional. O decreto fala que essas audiências também poderão ser realizadas por meio eletrônico. No mínimo dois servidores de instituições como o Ibama e o ICMBio poderão fazer parte do núcleo, mas os trabalhos da nova burocracia deverão ser presididos por pessoas de fora, segundo determina o decreto. Além disso, os membros do núcleo deverão ser designados pelo Governo Federal.

Salles, que é investigado por fraude ambiental, já havia indicado que fiscais que aplicassem multas inconsistentes poderiam ser punidos, conforme informou a Folha. O decreto do Governo não indica que haverá punição aos funcionários. Contudo, ao se sentirem ameaçados na hora em que forem aplicar uma multa, a tendência é a de que passem a não mais aplicá-las, avaliam especialistas. "Essa é a forma elegante de neutralizar o Ibama", disse um deles.

O risco é que os processos sancionadores fiquem ainda mais emperrados. Hoje, as cerca de 14.000 multas ambientais aplicadas por ano somam cerca três bilhões de reais, segundo o Ibama. Mais da metade das sanções se devem à desmatamento. Pouco mais de 20% dessas sanções chegam a ser pagas, mas o valor médio ressarcido é de 11.000 reais. Portanto, apenas as multas mais baixas são pagas. Isso significa que, dos três bilhões anuais, apenas 5% voltam para o Estado. A soma dos processos emperrados na Justiça somam cerca de 30 bilhões de reais em multas ambientais. Há casos emblemáticos, como os desastres de Mariana e Brumadinho. As mineradoras envolvidas, Samarco e Vale, receberam cinco multas ambientais, cada uma com o valor máximo permitido de 50 milhões de reais. Assim, cada uma deverá pagar 250 milhões apenas em indenizações ambientais. 

O outro ponto alterado por Bolsonaro diz respeito à conversão das multas. Um decreto de 2008 passou a prever essa modalidade, em que o dinheiro da sanção pode ser convertido em serviços ou projetos ambientais. Diante das dificuldades, essa modalidade foi suspensa em 2012 e retomada em 2017 pelo Governo Temer. O então ministro do Meio Ambiente, Sarney Filho, e a presidenta do Ibama, Suely Araújo, regulamentaram a conversão das multas na modalidade indireta, em que o autuado ganha um desconto de 60% na sanção e passa esse dinheiro diretamente para projetos estruturantes do setor público nos quais atuam também ONGs, escolhidas a partir de um chamamento público feito pelo Ibama. A outra modalidade é a direta, em que a empresa autuada ganha um desconto de 35% na multa e fica responsável por realizar os serviços e projetos.

A modalidade direta é a menos usada, enquanto a indireta conseguiu mais de um bilhão de reais em grandes projetos de recuperação ambiental, principalmente nas bacias dos rios São Francisco e Parnaíba. A cifra corresponde aproximadamente a três anos de Orçamento discricionário do Ibama, que no ano passado foi de cerca de 360 milhões de reais —com os cortes deste ano, não chega a 300 milhões—, utilizados para as atividades de fiscalização ambiental. Contudo, Bolsonaro passou a criticar essa modalidade por considerar que financia ONGs ambientalistas. Ele chegou a escrever duas semanas depois de eleito o seguinte: "Estão chegando informações que aproximadamente 40% das multas aplicadas aos produtores rurais vão para ONGs. E isso é um decreto presidencial. Não sei se é verdade. Mas, se for, vocês já sabem o que eu vou fazer".

Assim, o decreto de Bolsonaro, apesar de não extinguir a modalidade indireta, conforme se esperava no setor ambiental, retirou a exigência de que as entidades privadas que toquem os projetos sejam "sem fins lucrativos". Para Suely Araújo, que presidia o Ibama até o início deste ano, "o problema é que o decreto eliminou as regras sobre a conversão indireta e não definiu como essa modalidade passará a ser operacionalizada. Isso será detalhado por normativos futuros".

Araújo também explica que, diante desta indefinição, "a conversão parou na prática, já que os autuados têm priorizado a modalidade indireta". Isso significa também um quadro de indefinição para os chamamentos públicos do Ibama que já estão em curso para serem realizados nesta modalidade. "Envolvem importantes projetos nas bacias do São Francisco e Parnaíba, e na região de Araucárias em Santa Catarina. A equipe do Ibama estava trabalhando, ainda, em um chamamento para o Taquari, no Pantanal. O programa de conversão é muito relevante, não pode ser paralisado", acrescenta Araújo. A ex-presidenta do Ibama também chama atenção para outro problema: "É preocupante também a eliminação da Câmara Consultiva Nacional, que subsidiava tecnicamente a definição dos temas e regiões a serem priorizados na conversão".

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