Direita recalcula sua rota em busca de espaço entre Bolsonaro e Lula
Fora da órbita bolsonarista, centro-direita sofre com a falta de projeto comum para 2022, enquanto busca unidade em torno do impeachment do mandatário. Polarização é vista por petistas e aliados do presidente como mais vantajosa para ambos na disputa pelo Planalto em 2022
Em 17 de junho, o presidente Jair Bolsonaro se postou mais uma vez diante da câmera pela qual conversa com seus seguidores, na live de toda quinta-feira. Acossado por denúncias contra seu Governo em meio ao processo de negociação para a compra da vacina Covaxin, o que tem feito derreter sua popularidade a ponto de empurrar o debate a favor do impeachment para além do campo político ―pela primeira vez o Datafolha mostrou que a maioria dos eleitores quer o fim precoce do Governo―, Bolsonaro dedicou parte de seus vocábulos religiosos naquele dia para neutralizar figuras que avalizaram a sua eleição em 2018, mas que agora trabalham indisfarçavelmente para tirar do presidente o sonho da reeleição em 2022. “Tem uma passagem bíblica que diz: ‘seja frio, ou seja, quente, não seja morno’. Essa via do centro, no meu entender, não decola”, disse o presidente, enquanto subiam pela tela emojis de palmas, bandeirinhas do Brasil e elogios ao “mito”, além de um rosário de xingamentos contra qualquer um que não esteja alinhado a pautas conservadoras da extrema-direita.
Três meses antes, também no mundo virtual, Bolsonaro já havia se levantado, com apetite eleitoral, a fim de engolir seus adversários quando reagiu à decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin de anular todas as condenações contra o ex-presidente Lula na 13ª Vara Federal de Curitiba, no âmbito da Lava Jato. Flagrantemente incomodado com a força eleitoral do petista após retomar seus direitos políticos, o presidente, também protegido pelo debate esvaziado de réplica, já dava os primeiros sinais do quanto, para ele, se faz necessário minimizar os efeitos de uma terceira via na eleição de 2022, ainda que se configure prematura qualquer aposta nesse sentido dado o cenário de instabilidade política nacional. “Não estou dizendo que vou ser candidato nem que sou o melhor do mundo, mas vamos ter uma eleição. Lula vai ser candidato. Tira eu de combate, quem seria o outro que iria disputar com Lula no segundo turno?”, disse, também numa live, já numa estratégia de arregimentar apoio popular contra um eventual processo de impedimento que passou a ser apoiado pelos antigos aliados.
Observando de camarote o derretimento da popularidade do presidente, hoje com 24% de aprovação contra 51% de eleitores que consideram a gestão ruim ou péssima, partidos de centro-direita (ou polo democrático para alguns, centro-liberal para outros), embora ainda alinhados com o Governo em pautas do Congresso, saem agora da órbita bolsonarista em busca de um palanque eleitoral para o qual Bolsonaro não é convidado. Numa lógica comum em governos de coalizão, nem sempre quem dá sustentação à administração segue fiel no plano eleitoral. Partidos com forte adesão a projetos do Governo enviados ao Legislativo, atraídos pelo repasse de recursos da União para suas bases eleitorais, têm em suas fileiras nomes que hoje trabalham arduamente para descolar sua imagem da do mandatário visando as eleições.
O esforço do centro-direita para alterar o caminho iniciado em 2018, quando embarcou no projeto bolsonarista, tem sido respaldado pela crescente insatisfação da maioria dos brasileiros em relação ao Governo. Neste domingo, pesquisa Datafolha divulgou o maior rasgo na principal bandeira do presidente: 70% dos eleitores acreditam que há corrupção na gestão Bolsonaro. Mais: 64% acham que há malfeitos no Ministério da Saúde, e para 64% o presidente sabia o que estava acontecendo na pasta. A tendência, segundos analistas, é a de que haja uma reavaliação dos partidos de centro-direita sobre como se posicionar no Congresso já a partir desta semana.
Individualmente, no entanto, o vento já vinha empurrando antigos aliados do presidente para o outro lado da arquibancada. Com um portfólio de rigor fiscal na administração pública, somado a uma emergente pauta identitária desde que assumiu sua orientação sexual, dias atrás, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), é um dos que procura afastar o cálice bolsonarista. “O ideal é que ele possa ser tirado pelas urnas. Não podemos banalizar o instrumento do impeachment, mas também não se pode banalizar um governo. E Bolsonaro não está à altura da democracia”, disparou Leite ao EL PAÍS. O governador declarou voto em Bolsonaro na disputa contra o petista Fernando Haddad, em 2018, e hoje se coloca com status de presidenciável do PSDB, partido que justamente na última eleição afiançou uma dobradinha entre o tucano João Doria e Bolsonaro.
No primeiro ano do governo bolsonarista, os tucanos aderiram a 83% dos projetos do presidente que chegaram ao Congresso. De lá para cá, mesmo rompida a dobradinha BolsoDória, o partido se manteve na base de sustentação. Não há hoje qualquer resquício da alegria desmedida que havia entre o governador paulista e o presidente, ambos agora numa relação bélica que tomou caminhos incontornáveis principalmente no mundo virtual. Doria já chamou Bolsonaro de “louco” e “genocida”, que revidou classificando o tucano de “vagabundo” e “hipócrita”. Assim como Eduardo Leite, o governador paulista também marca posição no campo anti-Bolsonaro. “Eu errei, assumo o erro, mas não erro duas vezes. Em Bolsonaro, nunca mais”, diz João Doria.
O governador de São Paulo articula para chegar às prévias do partido, em novembro, como um nome de consenso para a eleição presidencial, tal qual seu colega gaúcho. A despeito do inimigo em comum, ambos travam disputa interna, acirrada na última sexta-feira quando o Datafolha apontou Leite com 3% das intenções de voto num cenário sem Doria, este com 5%, em quarto lugar, atrás de Lula, Bolsonaro e Ciro Gomes. Segundo um tucano de vasta plumagem, paralelo ao perfil administrativo, mais que nunca o poder conciliatório vai pesar na escolha do partido.
Não só o PSDB tenta arrumar a casa ao mesmo tempo em que Bolsonaro vira alvo de presidenciáveis que deram um cavalo de pau na sua relação pessoal com o presidente. No PSD, comandado pelo ex-ministro Gilberto Kassab, as articulações demandam uma costura em linha fina depois de o partido ter declarado neutralidade na eleição em segundo turno de 2018, ao mesmo tempo em que o próprio Kassab admitiu na época que a maioria dos diretórios apoiariam Bolsonaro. Hoje, o líder do PSD é mais categórico em suas previsões sobre o futuro do representante da extrema-direita. “O Bolsonaro não estará no segundo turno”, disse ele ao EL PAÍS. Conhecido por suas habilidades de bastidor, Kassab articula a filiação de um nome que tem ganhado proeminência no debate eleitoral. “Fizemos um convite para o Rodrigo Pacheco (presidente do Senado, do DEM) se filiar ao nosso partido e ser nosso candidato em 2022 e há uma grande chance”, disse ao EL PAÍS o ex-ministro, reforçando a tese de que se torna cada vez mais difícil a construção de uma candidatura paralela à de Lula e Bolsonaro. Só para constar, o presidente do DEM, ACM Neto, tem uma conversa nesta semana com Eduardo Leite: “A conversa com ele vem no interesse pela construção de uma convergência”, diz o tucano.
Numa corrida para tentar configurar um projeto de cacife eleitoral, ACM Neto se encontrou semana passada com Luiz Henrique Mandetta (sem partido), ex-ministro da Saúde de expressiva popularidade no início da pandemia, ainda quando era afagado pelo presidente. Ao deixar o encontro, Mandetta atacou Lula e seu ex-chefe. Com a devida cautela, o ex-prefeito de Salvador tem evitado um diagnóstico definitivo sobre a construção de uma nova força política. Mandetta, assim como o ex-juiz Sergio Moro, outro nome que ronda o imaginário do eleitor, ingressaram com pompas no Governo Bolsonaro e foram defenestrados na primeira colisão.
Dado o caminho aberto por Fachin para o PT voltar à arena político-eleitoral com mais musculatura, e o espaço não ocupado por outras lideranças escondidas nesta sombra da polarização Bolsonaro-Lula, o presidente trabalha arduamente para minar o campo de centro-direita diante do efervescente debate sobre abertura ou não de um processo de impeachment, focado na conduta equivocada de seu Governo no combate a covid-19. O caldo entornou nos últimos 89 dias com a criação da CPI da Pandemia, a qual acabou por colocar no ar uma espécie de reality show em que se acompanha ao vivo denúncias de corrupção no Ministério da Saúde. Por conta do cenário, agravado também pela informação de que havia rachadinha (crime tipificado como peculato) no gabinete do então deputado federal Jair Bolsonaro, um comando foi dado no Planalto. Segundo uma figura com trânsito nos corredores palacianos, o presidente tem se preocupado em abastecer o arsenal contra os antigos aliados que agora atuam para desgastar sua imagem. “Ele já nos disse que não pode dar espaço para uma outra força que não seja Lula, para o qual ele já tem sua munição.”
Aliado de primeira hora do Governo Bolsonaro, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), ajuda a insuflar o discurso de esvaziamento pela terceira via sob argumento de que nunca foi possível um arranjo como este nas últimas três décadas. “Não acredito em terceira via, já que não houve desde 1989”, disse ele, reforçando o que um colega de partido tratou como ironia: “Você consegue enxergar o Ciro e o Doria numa mesma mesa?”
Se para Bolsonaro o melhor caminho a ser trilhado para chegar a um novo mandato é disputar com Lula o segundo turno, para o PT o raciocínio não é diferente. A ideia de reeditar o debate dos polos opostos é, para ambos os lados, a melhor alternativa. Tanto num lado quanto no outro é corrente a ideia de que é preciso reduzir a pó qualquer outro nome que possa surgir no horizonte com tendência menos progressista. Analistas políticos defendem com segurança a tese de que nenhum dos dois ganha fôlego com o surgimento de uma terceira via minimamente competitiva. No cálculo político dos petistas, é hora de a esquerda se unir para enfraquecer qualquer outro movimento que venha a surgir no vácuo da impopularidade de Bolsonaro. “Se a esquerda quiser ganhar a eleição (em 2022), vai precisar de uma aliança ampliada. Ninguém ganha eleição com 30% dos votos”, diz Gleisi Hoffmann, presidente nacional do PT, num raciocínio que reforça a tese de que tanto Lula quanto Bolsonaro precisarão reduzir suas fragilidades por conta de uma artilharia que os colocam num mesmo paredão: o debate sobre a corrupção.
Hoje sem partido, o ex-governador do Espírito Santo Paulo Hartung elabora uma curiosa metáfora diante da situação atual. “Esse quadro que está aí desenhado [Bolsonaro e Lula] é uma das hipóteses do segundo turno. Ela tem relevância, mas não tem dominância. Tem outras possibilidades em cursos. Se eu fosse desenhar o quadro político hoje no Brasil eu colocaria dois homens pernetas, que, para ficar no equilíbrio pleno, precisa um colocar a mão em cima do ombro do outro. Qual a questão agora? É saber se esses ombros vão se manter eretos, ou se vão começar a fraquejar. A preço de hoje, já tem um ombro fraquejando, não definitivamente, não que não tenha capacidade de recuperação. Mas se um ombro desse perde altitude, o outro não fica confortável. Queira ou não, os dois pernetas arranjaram uma posição de conforto em termos de enfrentamento. Por isso, a probabilidade de instabilidade nesse quadro tido como definitivo é muito grande”, disse ele, em conversa com o EL PAÍS.
A instabilidade ganhou força nas últimas semanas. Numa miscelânea ideológica, partidos de oposição, entidades civis e ex-aliados protocolaram um superpedido de impeachment que unifica argumentos de outras 123 ações para Bolsonaro deixar a Presidência. Legendas historicamente oposicionistas subiram ao palanque em discurso contra o Governo, enquanto partidos do centro-direita procuram não assumir posição oficial no mesmo sentido, segundo alguns, sob análise de que, lá na frente, estas siglas vão depender também do eleitor conservador para viabilizar projetos não só na esfera federal, mas nas eleições estaduais. E qualquer manifestação mais peremptória neste momento acirra os ânimos do ecossistema bolsonarista nas redes sociais, tido como escudo do presidente e também uma arma de alto calibre contra os adversários.
“Os protestos, conjugados com a CPI, são duas camadas que provocam muita discussão na internet, e pressiona grupos bolsonaristas a se movimentar, seja para defender o Governo ou atacar quem é contra o presidente. O que a gente percebe é que aumentou o movimento defensivo de grupos bolsonaristas nas redes, justamente porque o movimento atual faz com que o Governo não tenha uma agenda”, analisa Fábio Malini, um dos principais especialistas em monitoramento de redes sociais no país. Paralelo às sessões da CPI uma série de protestos contra o Governo pressionam pela saída de Bolsonaro. Pela primeira vez, movimentos de direita vão se engajar nesse movimento. O Movimento Brasil Livre (MBL) e o Vem Pra Rua (VPR), ambos protagonistas de atos que culminaram com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff e ajudaram a pavimentar a eleição de Bolsonaro, estão convocando um protesto para 12 de setembro.
O deputado Kim Kataguiri, que emergiu com força política entre os eleitores conservadores após comandar os atos de 2016, avalia que só uma força aglutinada de partidos de centro-direita teria mais chances de derrotar Lula no ano que vem: “O processo de impeachment não tem como objetivo antecipar eleição, mas sem dúvida um de seus produtos é a consolidação de uma nova força política. O grande desafio de uma terceira via é demonstrar viabilidade de tirar Bolsonaro do segundo turno. O impeachment sem dúvida acende uma nova força, assim com impeachment da Dilma fez crescer uma nova direita brasileira. O impeachment de Bolsonaro geraria mobilização e tecido social para construção de uma terceira via que fosse para o segundo turno com Lula e, com menos rejeição, venceria as eleições”, afirma.
Nessa toada, líderes do Movimento Vem Pra Rua criaram o mapa “Adeus Bolsonaro”, a fim de pressionar os parlamentares a votar favoravelmente pela destituição do presidente. Como forma de pressão, o grupo alimenta diariamente o sistema na internet mapa com o número de deputados e senadores a favor, contra ou ainda indefinidos em relação ao impeachment do mandatário. Até domingo, o placar era: 112 deputados a favor do impeachment, 45 contra e outros 355 ainda tomaram uma posição. Entre os partidos indecisos estão justamente o que articulam mais para ter nome próprio no ano que vem do que pela criação de uma terceira via, como o PSDB, o DEM, o PSD e até mesmo o PSL, partido pelo qual Bolsonaro disputou a eleição e depois pulou fora por conta de atritos com o comando da sigla.
Na pauta do próximo protesto, o impeachment ganha corpo numa velocidade tão grande quanto o empenho de Bolsonaro em colocar as instituições em xeque ―no domingo, o jornal O Estado de S.Paulo defendeu pela primeira vez, em editorial, a destituição do mandatário, como já havia feito a Folha de S.Paulo. Com o discurso, sem provas, de que haverá fraude na eleição do ano que vem se não for implementado o sistema de voto impresso, o presidente dá combustível para o discurso antidemocrático de seus seguidores. Ganha, com isso, mais pontos no programa de fidelização junto ao seu eleitorado, mesmo criando um ambiente mais propício a críticas dos neo-antagonistas que, um dia, fizeram parte do mesmo núcleo de Bolsonaro para tirar a esquerda do poder.
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