Tribuna
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Um raro final feliz na Justiça para jovens da periferia

Se mora longe das áreas nobres de São Paulo e, principalmente, se é negro, você pode ser preso dormindo, trabalhando, dando parabéns para um amigo ou indo pegar um ferro de passar no vizinho

Kelvin, de boné azul, Alex, de boné vermelho, e Eryk, de camiseta cor de vinho, celebram com os pais no dia em que foram libertados em São Paulo.
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Presos ilegalmente por 62 dias após uma ação espetaculosa da Polícia Militar, quatro jovens da periferia de São Paulo foram finalmente absolvidos pela Justiça na semana passada. É um final feliz a ser celebrado quando se vive em um Estado no qual a Secretaria da Segurança Pública comemora, em uma nota oficial, o recorde histórico de presos.

Alexssandro, Eryk, Kelvin e Rafael, moradores do Jardim Amália, no Capão Redondo, zona sul de São Paulo, foram presos em 18 de novembro passado num matagal perto da única área de lazer do bairro, um parque linear no entorno de duas escolas públicas. A operação policial envolveu até um helicóptero da PM. Os quatro amigos haviam ido até o matagal fumar maconha escondidos ―o que jovens moradores de áreas nobres da capital fazem à luz do dia, enquanto passeiam com seus cachorros. Mas, na periferia, os amigos que saíram de manhã para dividir uns baseados saíram do rolê presos em flagrante por roubo de carga. Isso tudo apesar de não terem sido reconhecidos pela vítima do roubo, cometido em outro ponto do bairro.

A “prova” que embasou a prisão em flagrante dos jovens foi o testemunho dos policiais militares que os prenderam e os acusaram de descarregar a carga roubada. Mesmo com elementos tão frágeis, os quatro jovens foram denunciados pelo Ministério Público estadual, sem terem sido ouvidos no inquérito policial, e tiveram a prisão preventiva decretada pela Justiça de São Paulo.

Por mais absurda que possa parecer a formulação “saiu para fumar maconha e foi preso por roubo”, os casos de prisões forjadas que venho investigando desde novembro de 2020 me mostraram nestes seis meses que, na periferia, se você for negro, você pode ser preso dormindo, trabalhando, indo buscar um ferro de passar no vizinho, dando parabéns para um amigo ou por testemunhar um crime.

Para ser solto, contudo, é preciso mobilização. O caso dos meninos do Capão Redondo chamou a atenção da imprensa porque uma coalizão contra a injustiça se formou em torno do caso. Estimulados pela Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio ―um grupo multidisciplinar de articuladores locais que atua contra a violência policial na periferia da Capital― os pais de Alex, Eryk, Kelvin e Rafael realizaram uma série de protestos para chamar a atenção para o caso.

A mobilização é fundamental porque a voz dos presos, pelo menos nos casos que apurei, não foi ouvida na fase policial. No caso específico, os quatro jovens não tiveram a chance de dar sua versão na delegacia. Na audiência de custódia ―que existe para avaliar a legalidade da prisão― Rafael foi o único “beneficiado” com prisão domiciliar após provar deficiência psíquica e motora. Contudo, qualquer olhar mais cuidadoso do caso, mostra que ele, Alex, Eryk e Kelvin deveriam ter sido libertados, o flagrante anulado e os quatro absolvidos sumariamente.

Além de mostrar indignação, os pais passaram a ter a assistência de advogados e iniciaram um trabalho de investigação por meio do qual localizaram câmeras de segurança no bairro. As imagens mostraram que enquanto o roubo acontecia, Alex, Eryk, Kelvin e Rafael estavam no parque e que os ladrões que roubaram e descarregaram a carga em outra rua do bairro eram pessoas completamente diferentes de seus filhos. Como ressaltou Elizeu Soares Lopes, o ouvidor das polícias de São Paulo, em fevereiro, numa roda de conversa com os jovens e suas famílias, os pais deles “fizeram o que a polícia não fez”.

Além dos 4 jovens, em 18 de novembro foi preso outro morador do bairro, este sim reconhecido pela vítima do roubo. Ao fugir com o furgão roubado, ele se deparou com a PM, deu meia volta com o carro, abandonou o veículo e fugiu a pé, sendo preso pelos policiais enquanto dois parceiros dele desovavam a carga na casa da avó do preso. Foi o que as imagens obtidas pelos pais mostram.

Depois da prisão, as câmeras também mostraram, policiais militares, armados, invadem a escola pública por onde existe o acesso para o parque linear e atiram na direção da escada onde estavam os quatro amigos depois do baseado. Com medo, eles saem correndo de volta para o matagal, onde são presos pelos PMs, que os acusam de participar do roubo.

Depois dos protestos, os pais dos rapazes estiveram na Ouvidoria da Polícia e denunciaram o caso. Dois dias depois, os jovens foram colocados em liberdade provisória.

A liberdade provisória é o que o nome diz: uma situação precária. Você é proibido de sair de casa à noite e, para trabalhar, deve informar à Justiça. Alex, por conta da situação, perdeu uma oportunidade de emprego. Kelvin teve que pedir demissão de um emprego em uma lanchonete nos Jardins, pois tomou três enquadros da PM em 12 dias.

A defesa e os pais seguiram em busca da absolvição, o que aconteceu somente neste 19 de maio, seis meses após a prisão. Na decisão da juíza Maria Fernanda Belli nenhum pedido de desculpas, mas houve um importante reconhecimento: “Permitir o prosseguimento da ação penal sem indícios satisfatórios de autoria é chancelar o constrangimento ilegal”.

A luta dos pais dos jovens agora continua. Simone e Alexandre, pais de Alexssandro, o mais jovem dos quatro presos injustamente, já decidiram processar o Estado pela prisão ilegal e indevida de seu filho. Os outros pais ainda avaliam o que fazer.

A absolvição de Alex, Eryk, Kelvin e Rafael é realmente algo a comemorar, mas só haverá Justiça se os agentes que causaram a violação de direitos humanos sofrida por eles sejam identificados, processados e punidos. Para isso, no entanto, falta transparência: a Secretaria de Segurança Pública não confirma se foi aberto procedimento pela corregedoria da PM sobre o caso. A Polícia Civil mudou o comando do 47º DP e apura o papel de seus agentes na prisão ilegal dos jovens.

Marcelo Oliveira é jornalista e dividiu a carreira entre reportagem e assessoria de imprensa. Foi assessor Comissão Nacional da Verdade (2012-2014). Está escrevendo o livro ‘Liberdades negras importam’, sobre prisões ilegais em São Paulo.

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