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‘Capitã cloroquina’ admite documento que pressionou Manaus a usar o remédio ineficaz e contradiz Pazuello três vezes

Secretária do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro insiste na defesa de medicamento e diz que não houve ataque hacker ao aplicativo TrateCov, que recomendava “tratamento precoce” para doença, como havia mencionado ex-ministro

Mayra Pinheiro durante depoimento à CPI da Pandemia no Senado.
Mayra Pinheiro durante depoimento à CPI da Pandemia no Senado.EVARISTO SA (AFP)
Beatriz Jucá

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FILE PHOTO: Brazilian Senator Renan Calheiros gestures during a meeting of the Parliamentary Inquiry Committee (CPI) to investigate government actions and management during the coronavirus disease (COVID-19) pandemic, at the Federal Senate in Brasilia, Brazil May 19, 2021. REUTERS/Adriano Machado/File Photo
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Uma das mais longevas secretárias do Ministério da Saúde no Governo Bolsonaro, a médica Mayra Pinheiro, depôs à CPI da Pandemia abraçando uma defesa ferrenha da cloroquina e uma blindagem de Jair Bolsonaro com potencial de agradar ao Planalto. Não fosse ter negado o depoimento do ex-ministro e general Eduardo Pazuello ao menos três vezes. A secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde confirmou o documento no qual considera “inadmissível” o não uso do chamado “kit covid”, com medicamentos sem eficácia para a doença, em meio ao colapso de Manaus ―o militar havia afirmado que a pasta não havia indicado o remédio. Também disse que o Ministério da Saúde teve conhecimento sobre o desabastecimento de oxigênio dois dias antes da data informada por Pazuello aos senadores. E admitiu que não houve ataque hacker nem alteração do aplicativo da pasta TrateCov, que indicava medicamentos como cloroquina e ivermectina até para bebês e animais, sem efeitos positivos para a doença, em meio ao colapso de Manaus.

Conhecida como “capitã cloroquina” pela defesa do medicamento na pandemia, Mayra Pinheiro demonstrou incômodo apenas pelo uso de uma patente do Exército no apelido. “Apenas não acho o termo adequado, porque não sou uma oficial de carreira militar. Sou uma médica conceituada no meu Estado”, afirmou a cearense. Diversas vezes, ela defendeu a hidroxicloroquina para casos leves de covid-19, outro uso já descartado pela comunidade científica internacional. Seu depoimento levou a Sociedade Brasileira de Infectologia a emitir uma nota desmentindo a médica. “Tais medicamentos têm sua ineficácia comprovada para o tratamento da covid-19”, afirma a entidade. Mayra Pinheiro chegou a ouvir de senadores que insistir na defesa ao medicamento era “desonestidade intelectual” e “desvio de personalidade”. A médica não se intimidou e continuou defendendo o uso do remédio, embora contradizendo as próprias declarações várias vezes.

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Em um jogo retórico, argumentou que o Ministério da Saúde não recomendou o chamado “tratamento precoce”, mas “orientou” o uso de medicamentos como a cloroquina com uma nota técnica que buscava evitar “doses tóxicas” prescritas por médicos a partir de dados de 22 mortes em um estudo feito em Manaus com pacientes graves. Omitiu, porém, a propaganda do remédio feita pelo presidente e a própria ampliação do protocolo da pasta para gestantes e crianças, em junho do ano passado. “Exercemos nosso papel de não prevaricar e decidimos fazer uma nota segura”, alegou. Segundo a agência de checagem Aos Fatos, a pesquisa citada pela secretária não menciona falecimentos por sobredose do remédio. A médica também seguiu o discurso de Pazuello ao negar ter conhecimento de ordens diretas para adotar um protocolo da cloroquina e, assim, blindar o presidente. Com um plus: Mayra Pinheiro disse nunca ter visto Bolsonaro defender o isolamento social e que ele só participou de uma reunião da pasta ―entre aquelas em que ela estava presente― durante a pandemia.

O depoimento de Mayra Pinheiro foi como uma viagem à linha de pensamento de uma bolsonarista convicta, em termos de manejo da pandemia. Ela sustentou não apenas a defesa ferrenha à cloroquina ―a despeito de estudos apontando sua ineficácia para a covid-19― como também o conteúdo de um áudio vazado no qual critica a Fiocruz e afirma que a instituição “tem um pênis na porta” e “todos os tapetes das portas são a figura de Che Guevara. As salas são figurinhas do Lula Livre, da Marielle vive”. O presidente da comissão, senador Omar Aziz, chegou a dizer que havia ouvido “tênis” no áudio exibido pelo senador Randolfe Rodrigues. “Não, senhor”, corrigiu a própria Mayra Pinheiro. “Existia um objeto inflável em comemoração a uma campanha na porta da entidade. Isso é uma constatação.” Suas horas de exposição, com vastas idas e vindas de declarações, trouxe de novo o debate sobre os instrumentos de confrontação dos quais a CPI pode lançar mão em tempo real.

Crise em Manaus

“O Ministério da Saúde nunca indicou tratamentos para a covid-19″, insistiu Mayra Pinheiro, à revelia de um documento oficial assinado por ela mesma, no qual considera “inadmissível” não utilizar o chamado “kit covid” durante a crise de Manaus. No documento, a médica pedia autorização para visitar postos de saúde da capital amazonense para estimular o uso do chamado “tratamento precoce”. A médica confirma o documento, mas diz que as visitas não foram realizadas. Mayra Pinheiro empurrou a responsabilidade sobre o colapso do Amazonas às gestões locais e disse que viu “caos” e “desassistência” na visita que fez à cidade, com postos de saúde fechados e falta de medicamentos. Nesta quarta (26), senadores votarão requerimentos, inclusive os de convocação de governadores e prefeitos para depor na CPI.

A médica ainda apresentou uma data diferente da relatada pelo ex-ministro Pazuello na semana passada sobre o momento em que o Ministério da Saúde tomou ciência da crise de oxigênio em Manaus. Ela diz que, quando esteve na cidade, não foi informada sobre problemas no abastecimento do insumo e que era “impossível” calcular quanto seria necessário para evitar o desabastecimento. Contou que tomou ciência da escassez de oxigênio no dia 8 de janeiro (dois dias antes da data relatada por Pazuello e seis dias antes do insumo acabar em hospitais de Manaus), quando o então ministro teria lhe perguntado porque ela não relatou o problema ao retornar do Amazonas.

“Porque não me foi informado. Eu confirmei a informação com o secretário estadual da Saúde, perguntando: ‘Secretário, por que, durante o período da minha prospecção, não me foi informado?’. Ele disse: ‘Porque nem nós sabíamos’. Inclusive ofereci voluntariamente meu telefone à Polícia Federal, foi feita a degravação da conversa com o secretário, o que prova essa informação”, afirmou a senadores. O relator Renan Calheiros (MDB-AL) divulgou uma tabela na qual aponta ao menos 11 contradições de Mayra Pinheiro durante seu depoimento. Segundo o senador, a médica afirmou ao Ministério Público Federal que seria “possível realizar esse cálculo [da necessidade de oxigênio] a partir do prognóstico de hospitalizações, pois se estima a quantidade de insumo a partir do número de internados.”

A médica respondeu a todas as perguntas, mesmo municiada de um habeas corpus concedido pelo Supremo Tribunal Federal para que pudesse silenciar sobre a crise do Amazonas. “A questão do habeas corpus foi para pedir respeito”, disparou a senadores. “Depoentes foram tratados como réus. Achei indigno o tratamento que eles receberam aqui.” Diante das afirmações contrárias ao que disse o ex-ministro Pazuello, o militar deverá ser reconvocado a depor.

Mayra Pinheiro foi confrontada várias vezes com áudios e vídeos de suas declarações, apresentados por senadores ao vivo. O senador Renan Calheiros mostrou um vídeo no qual ela defenderia a tese da imunidade de rebanho sem vacinas. “Nós atrapalhamos a evolução natural da doença naquelas pessoas, como as crianças, em que teríamos um efeito de imunização de rebanho”, afirma no vídeo. Segundo a médica, a fala tinha como contexto a defesa da não interrupção das aulas presenciais de crianças, que segundo ela teriam 37% menos chances de desenvolver a forma grave da doença. Primeiro, ela afirmou que a tese da imunidade de rebanho sem vacinas não poderia ser aplicada “indistintamente”. Depois, disse que nunca defendeu esta tese para nenhum grupo e que não ouviu esta defesa dentro do ministério. Senadores investigam se o Governo Bolsonaro admitiu o contágio em busca de uma imunidade de rebanho sem vacinas, mesmo com o risco de elevado número de mortos.

Críticas à OMS

Sobraram críticas de Mayra Pinheiro até para a Organização Mundial da Saúde (OMS). A médica defendeu que nenhum país é obrigado a seguir as orientações do órgão internacional e apontou que ele já falhou várias vezes. Citou uma antiga recomendação para a amamentação por mães portadoras de HIV. E, na pandemia, considerou como falhas a demora para declarar emergência de saúde global e para recomendar o uso de máscaras como medida de prevenção ao coronavírus. Mas não manteve o tom crítico quando o senador Randolfe Rodrigues (REDE-AP) perguntou sobre o fato de o presidente Jair Bolsonaro não usar máscaras ou manifestar-se contrário a elas. “É opinião, senador, eu vim para relatar fatos e falar da minha conduta técnica”, afirmou.

Mayra Pinheiro também defendeu que o Ministério da Saúde não é obrigado a seguir posições de entidades médicas que desaconselham o uso da cloroquina para a covid-19. Pode ter frustrado um pouco a tropa de choque do Governo quando minimizou a orientação do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta para a população ficar em casa e só procurar atendimento médico quando tivesse sintomas respiratórios, algo frequentemente questionado por governistas. “Houve um momento em que conhecíamos muito pouco da doença”, apontou a médica, nomeada ao cargo por Mandetta.

As contradições acompanharam também as declarações da médica sobre o controverso aplicativo TrateCov. Após Pazuello dizer que a plataforma foi uma iniciativa dela, a médica agora afirma que partiu de uma técnica de sua equipe. A ferramenta estava aberta e permitia a qualquer pessoa consultá-la, sempre indicando medicamentos sem eficácia em caso de aceite em adotar o chamado “tratamento precoce”. Pinheiro disse que a plataforma foi retirada do ar após um ataque hacker e chegou a nominar um jornalista como responsável. Depois, recuou e disse que não houve hackeamento, mas uma “extração indevida de dados”. Admitiu que o TrateCov não foi alterado e, embora tenha defendido que a plataforma poderia ter ajudado a acelerar diagnósticos e salvar vidas, não soube explicar porque então a proposta não foi retomada. Na semana passada, Pazuello havia dito que a ferramenta foi “roubada, alterada e distribuída” por uma pessoa já identificada pela polícia. O jornalista citado pela médica, porém, não fez alterações. Apenas salvou uma cópia do código em uma plataforma de hospedagem de arquivos de programação.

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