Teich expõe obsessão de Bolsonaro por cloroquina e critica endosso do Conselho Federal de Medicina ao remédio
Em CPI no Senado, o ex-ministro admitiu não ter autonomia na Saúde e disse ter deixado a pasta pela insistência do presidente em recomendar o uso indevido de substância para a covid-19. Acuado, presidente voltou a atacar China e ameaçar impedir medidas de isolamento social
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Sem apresentar grandes surpresas e adotando um discurso técnico, o ex-ministro e médico Nelson Teich admite na CPI da Pandemia no Senado que não tinha autonomia à frente do Ministério da Saúde e revela a insistência do presidente Jair Bolsonaro no uso da cloroquina, um medicamento sem eficácia para a covid-19, durante a pandemia. De forma bastante objetiva, Teich afirma que este foi o principal ponto de divergência que o levou a pedir demissão antes mesmo de completar um mês no cargo. Narra que os alertas que dava sobre a necessidade de comprovação científica não eram ouvidos por Bolsonaro e que, apesar de não ter sido diretamente pressionado para adotar um protocolo da cloroquina, tinha sua posição publicamente desautorizada pelo presidente, que defendia o medicamento e anunciava que o liberaria até para casos leves. “A cloroquina foi o fator determinante, mas o problema maior foi a falta de autonomia”, afirma. Teich direcionou críticas sobre o uso indevido da cloroquina também ao Conselho Federal de Medicina ao considerar “inadequada” a postura da entidade em apoiar o uso do medicamento conforme a decisão individual de médicos. “Autonomia médica não é ilimitada”, defende. O estímulo ao medicamento também partiu de hospitais privados e motivou até o aumento de produção pelo Exército.
O depoimento de Teich pode dar mais consistência à tese aventada pelo seu antecessor Luiz Henrique Mandetta de que o presidente tinha uma “assessoria paralela” e não seguia as orientações da equipe técnica da Saúde. O médico sinaliza que Bolsonaro teria atropelado o Ministério da Saúde com a determinação para a produção da cloroquina pelo Exército, que em abril do ano passado produzia 80 vezes mais o medicamento do que antes da pandemia. O ex-ministro diz não ter sido consultado e que soube da iniciativa pela imprensa. Também nega ter autorizado a indicação de medicamentos sem eficácia em comunidades indígenas. “Eu tinha uma posição muito clara não só sobre a cloroquina como sobre qualquer medicamento”, alega, defendendo a necessidade de comprovação científica. “Quando você fala em dinheiro público, acho que você não pode usar em coisas que não funcionam.”
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Clique aquiSe esquivando de avaliar se era uma estratégia do Governo deixar as pessoas se exporem ao vírus para alcançar uma imunidade de rebanho, Teich disse que a teoria é “um erro”. Enquanto o ex-ministro era ouvido pelos senadores na CPI, o presidente Jair Bolsonaro ameaçava assinar um decreto para proibir as medidas de isolamento social nos Estados. “Não ousem me questionar”, afirmou, em um recado ao Supremo Tribunal Federal, que deu autonomia para Estados e municípios tomarem suas decisões sobre a questão. Também indicou que a China teria feito uma “guerra química” com a covid-19. Sem citar diretamente o país asiático, mencionou “o país que mais cresceu seu PIB” durante a pandemia em meio a declarações nas quais questionava a origem do novo coronavírus. As declarações caíram mal no colegiado que investiga se houve dolo em suas ações durante a pandemia. Senadores externaram a preocupação de que o embate com o país asiático dificulte a importação da matéria-prima das vacinas da China neste momento em que há escassez de doses no país. “Não é o momento da gente cutucar ninguém”, bradou o presidente Omar Aziz, que avalia que a postura pode trazer outros problemas por conta da importância da China como parceira econômica do país. O ex-chanceler Ernesto Araújo será convocado para depor na próxima semana e deverá ser questionado justamente sobre os conflitos com a China em meio à crise. “Um parceiro comercial como a China não é possível desprezar”, argumento Aziz.
“Com foco na vacina, teríamos um acesso maior e mais precoce à vacinação”
Os senadores governistas seguiram novamente a estratégia de tentar tirar o foco do Governo Bolsonaro, mas desta vez subiram o tom especialmente com uma defesa à cloroquina. Este foi o ponto mais tocado durante a sessão na CPI, ao qual Teich sempre alegou guiar-se por instituições renomadas internacionalmente que indicam que o medicamento não é eficaz para a covid-19. “A gente começava a ter dados naquele momento de que o medicamento não era eficaz”, afirma. Governistas também tentaram direcionar perguntas sobre supostas irregularidades no uso de recursos federais por governantes locais, mas a estratégia pouco prosperou diante das poucas informações que Teich dispunha no seu mandato relâmpago. A sessão ainda foi interrompida após senadores que apoiam o presidente questionarem a fala de mulheres que não são titulares da CPI ―uma questão que já havia sido acordada na terça. Já a oposição esperava um depoimento relativamente frio pelo perfil discreto que o Teich sempre adotou, mas a avaliação é de que foi cumprido o papel de deixar claro que a cloroquina foi o estopim para a saída do ministro.
Havia uma expectativa também de que Teich pudesse esclarecer sobre negociações com laboratórios de vacinas ainda durante sua gestão. O ex-ministro explica que, naquele momento, houve tratativas apenas para trazer pesquisas ao país, mas não para a aquisição de doses. Ele diz ter conversado com a Moderna e a Janssen e ter sido o responsável por fechar o acordo para o teste da vacina de Oxford no Brasil. Segundo ele, o país poderia ter antecipado a vacinação se tivesse optado por “compras de risco”, com a possibilidade de perder o que for adquirido a depender dos resultados dos estudos. “Com foco na vacina, teríamos um acesso maior e mais precoce à vacinação.”
Em muitos momentos, Teich evitou dar sua opinião sobre os possíveis impactos de ações, declarações e omissões de Bolsonaro nas mortes por covid-19 ―o país já supera 414.000 falecimentos pela doença. Argumentou que precisaria de dados e documentos para dar uma opinião técnica e chegou a irritar senadores ao dizer não lembrar de algumas questões levantadas ―como por exemplo a pessoa com quem o ministro disse ter tratado sobre uma campanha informativa de combate à covid-19, que segundo ele não houve tempo de ser implementada em sua gestão. “Fui ministro na encarnação passada e me lembro de tudo”, alfinetou o relator Renan Calheiros.
Durante cerca de seis horas de depoimento, Teich disse não lembrar da participação de filhos de Bolsonaro em reuniões sobre a pandemia, como contou seu antecessor Mandetta. Afirmou que o general Pazuello foi indicado por Bolsonaro para ser seu número dois na pasta, mas que coube a ele a decisão final. “Se ele [Pazuello] tivesse sido imposto, eu teria saído com uma semana e não com um mês”, afirmou, avaliando que o general precisaria ter mais conhecimento em gestão de saúde para assumir o cargo de ministro. Teich negou a interferência direta de militares nas coletivas de imprensa. Afirmou que sua estratégia era combinar um programa de testagem ao rastreio de casos e medidas de isolamento para frear a transmissão do vírus, mas que o debate em torno do lockdown estava politizado. Saiu antes de apresentar as diretrizes com as medidas de reabertura econômica que havia discutido com secretários de saúde. “Isolamento social é necessário para frear casos e mortes”, declarou.
Nesta quinta (6), será a vez do atual ministro da Saúde Marcelo Queiroga ser ouvido pelos senadores. A expectativa é de que seja sabatinado especialmente sobre as condições em que recebeu o Ministério da Saúde do general Pazuello, a falta de regularidade no cronograma brasileiro de vacinas contra a covid-19 e a assinatura de contratos de compra de imunizantes. Em seguida, o presidente da Anvisa, Antônio Barra Torres, deverá explicar o processo de análise da segurança das vacinas e os recentes conflitos com a Sputnik V. O ex-secretário de Comunicação Fabio Wajngarten também será convocado na semana que vem. Ele tem associado a demora do Governo para negociar doses da Pfizer à “incompetência” do Ministério da Saúde durante a gestão de Pazuello.
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