Pazuello lança mão de ginástica retórica para negar ações controversas do Ministério da Saúde na pandemia
Sob a mira da PF e ameaça de CPI, ministro testa defesa no Senado e nega atraso nas ações da pandemia, promete vacinação geral ainda em 2021 e nega que pasta indicou cloroquina
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Já pressionado por uma investigação da Polícia Federal que busca averiguar se houve omissão do Ministério da Saúde diante do grave colapso do sistema de saúde de Manaus e na iminência de enfrentar uma CPI no Senado sobre as ações de combate à pandemia, o ministro Eduardo Pazuello escolheu como teste de defesa uma ginástica retórica que distorce as próprias medidas tomadas pela pasta que comanda. Na nova versão empunhada pelo general, nunca houve indicação da cloroquina por parte do ministério e a pasta se antecipou na corrida global pelas vacinas ― afirmações facilmente contrastáveis com os fatos dos últimos meses. Pazuello ainda prometeu imunização geral da população brasileira ainda neste ano, apesar de admitir dificuldades para comprar grandes quantitativos de doses neste momento.
O temor de Pazuello não é infundado. A PF o investiga com base em um pedido do procurador-geral da República, Augusto Aras, para investigar o colapso de Manaus. Na petição Aras cita, com datas, ações do ministério que considera passíveis de apuração, como a suposta demora para atender à emergência na capital do Amazonas. O ministro é também visto como um escudo para a responsabilização do próprio presidente Jair Bolsonaro na pandemia. Grupo de juristas e cientistas pressiona para que Aras investigue as ações do mandatário na crise sanitária. Em janeiro, uma pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da USP e da Conectas Direitos Humanos, revelada pelo EL PAÍS, analisou mais de 3.000 normas do Governo para concluir que o Governo Bolsonaro promoveu uma “estratégia institucional de propagação do vírus, sob a liderança da Presidência da República”, alimentando também a pressão pela responsabilização do Planalto.
Cloroquina produzida pelo Exército
Apesar de o Governo Bolsonaro ter turbinado a produção de cloroquina pelo Exército e lançado um aplicativo que indicava o uso do chamado kit covid-19, o ministro afirmou diante de senadores, nesta quinta-feira, que sua pasta não recomenda o uso de medicamentos sem eficácia. De acordo com Pazuello, o documento que citava a cloroquina lançado no início da sua gestão não seria um protocolo de uso, mas teria o objetivo de evitar sobredoses caso médicos optassem por prescrevê-los. O ministro também negou a demora para a aquisição das vacinas. Afirmou que, desde o início, o ministério está disposto a comprar várias vacinas contra a covid-19. Incluiu aí a da Sinovac/Butantan, mesmo que Bolsonaro o tenha desautorizado a assinar a intenção de compra do imunizante de tecnologia chinesa em outubro e que o próprio ministro tenha dito depois que cabia a ele obedecer.
Pazuello foi ao Senado para tentar reverter a tendência de instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre as ações de sua pasta e do Governo no enfrentamento da pandemia. Durante cinco horas, foi duramente questionado por senadores e chegou a pedir que eles não abrissem uma nova frente de combate à pandemia ―a política― e se ativessem a uma guerra técnica conjunta para enfrentar o vírus. Argumentou que um embate político neste momento poderia desarticular a estratégia do Governo. Pazuello disse esperava um retorno à normalidade diante do arrefecimento da crise sanitária no segundo semestre do ano passado, mas teria sido surpreendido por “números inacreditáveis” da pandemia.
No entanto, pesquisadores já vinham alertando uma tendência de agravamento desde novembro, e o próprio Pazuello admitiu uma subida de casos no fim de novembro, que chamou de “repique”. A afirmação do ministro na sessão acabou gerando críticas de vários parlamentares, como as dos senadores do MDB, Simone Tebet e Eduardo Braga. Eleito pelo Amazonas, Braga, um senador governista, disse ter alertado diretamente o ministro em dezembro que se desenhava uma nova onda no Amazonas “muito grave”.
“Não está tudo bem, não está tudo certo, e não foi feito tudo o que se poderia ter feito”, acusou o senador. O ministro alegou que a curva no Amazonas foi muito mais íngreme do que se esperava e, sem apresentar resultados concretamente, afirmou que as análises da pasta mostram que a nova variante do coronavírus, de origem brasileira, é três vezes mais transmissível. Negou ainda que tenha tomado ciência prévia sobre os problemas de abastecimento de oxigênio no Amazonas e destacou que enviou o alto escalão do ministério a Manaus para entender a situação e auxiliar no enfrentamento à crise. Foi em uma dessas viagens, em janeiro, que a secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Mayra Pinheiro, enviou ofício à Secretaria da Saúde de Manaus pedindo autorização para visitar postos de saúde e estimular o tratamento precoce.
Protocolo da cloroquina seria para evitar sobredoses de medicamentos
Apenas depois de muita insistência dos senadores que cobravam respostas do ministro sobre a orientação do uso de medicamentos sem eficácia contra a covid-19 pelo ministério, Pazuello respondeu que a pasta não faz protocolo para uso de medicamentos e que, mesmo quando se falava em tratamento precoce, a orientação era pelo atendimento precoce. E que cabe apenas aos médicos prescrever medicamentos. “O ministério não define qual remédio é usado, qual o protocolo de remédio. Define o atendimento imediato.” O general Pazuello ficou à frente da pasta depois de dois médicos deixarem o cargo por discordância pela adoção do protocolo da cloroquina defendido por Bolsonaro. Ainda como interino, lançou um protocolo que indicava o uso de antivirais sem eficácia comprovada até para casos leves de covid-19, com um termo de consentimento do paciente. Agora, Pazuello diz que este documento não tinha o objetivo de orientar o uso do chamado kit covid-19, mas evitar sobredoses caso médicos decidissem prescrevê-los. “Caso o médico prescreva, atenção para as doses ideais, para não ter excesso naquele remédio”, justificou a senadores. Também disse que nenhum medicamento ou insumo é enviado a Estados e municípios sem que isso seja pactuado com os gestores locais.
Durante meses, o presidente Bolsonaro fez propaganda de remédios, inclusive na presença do ministro. O Governo turbinou a produção de cloroquina pelo Exército no ano passado, mas o ministro não respondeu perguntas sobre o valor gasto em medicamentos sem eficácia para a covid-19. Nesta semana, o Jornal Nacional mostrou que pacientes transplantados estão em perigo com a interrupção da produção de remédio pelo laboratório do Exército. A Folha de S. Paulo também revelou que documentos enviados pelo Ministério da Saúde ao Ministério Público Federal indicam que o Governo usou cloroquina da Fiocruz destinada à malária para tratar pacientes com covid-19.
Embora vários estudos realizados no último ano seguissem sem conseguir comprovar os benefícios destes medicamentos para o tratamento da doença, a defesa deles continuou forte no Governo. Nas coletivas de imprensa, secretários do ministério chegaram a apresentar um gráfico creditando o arrefecimento da pandemia no segundo semestre ao “tratamento precoce”. O secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos, Hélio Angotti Neto, sugeriu várias vezes que a imprensa não lia corretamente os artigos científicos e defendeu que havia embasamento para o “tratamento precoce”.
Ainda que o Governo agora ensaie abandonar a narrativa da cloroquina e da ivermectina, até mesmo ações recentes da pasta mostram que o tratamento precoce indicado não se limitava a sugerir apenas a procura ao atendimento da saúde aos primeiros sintomas da covid-19, como sugere Pazuello. “Aproveitamos a oportunidade para ressaltar a comprovação científica sobre o papel das medicações antivirais orientadas pelo Ministério da Saúde, tornando, dessa forma, inadmissível, diante da gravidade da situação de saúde em Manaus a não adoção da referida orientação”, diz o ofício enviado à secretaria da saúde de Manaus e assinado por Mayra Pinheiro. O Tribunal de Contas da União espera resposta da gestão manauara se foi pressionada a usar os medicamentos.
Ministro diz ter afastado servidor por TrateCov
Também em janeiro, o ministério lançou uma plataforma chamava TrateCov para auxiliar médicos de Manaus no diagnóstico e no combate à pandemia. O aplicativo, porém, estava aberto a qualquer pessoa e indicava remédios como cloroquina, ivermectina e azitromicina até para bebês, bastava marcar o aceite em aderir ao tratamento precoce. O ministro afirmou no Senado que o objetivo da plataforma era apenas auxiliar o diagnóstico do medico. “O que observamos? A plataforma era aberta e, quando fomos verificar, ela estava induzindo a prescrição de medicamentos”, afirmou. Pazuello disse que a partir daí a ferramenta foi retirada do ar imediatamente e um servidor foi afastado. “O médico é quem define e marcamos atenção para as dosagens de risco para o medicamento”, disse aos senadores.
Outro ponto alvo de questionamentos foi a demora do Governo para negociar doses das vacinas e o ritmo lento da vacinação. Pazuello negou contaminação política nas decisões do ministério sobre a compra da vacina Coronavac, do Instituto Butantan, ligado ao Governo de São Paulo. Embora o presidente Jair Bolsonaro tenha verbalizado que não compraria a “vacina chinesa do Doria”, em referência ao governador de São Paulo e seu desafeto político, e desautorizado publicamente seu ministro a assumir a intenção de compra de 46 milhões de doses do imunizante, Pazuello disse que desde outubro está posto que o Governo compraria a vacina. Justificou que o presidente havia entendido que seriam importadas doses da China sem o aval da Anvisa porque o memorando de entendimentos incluía tudo e por isso teria sido contra.
Pazuello ainda se recuperava de covid-19, quando participou de uma transmissão nas redes sociais do presidente sobre o assunto e declarou: “É simples assim: um manda e o outro obedece”. O contrato com o Butantan foi assinado meses depois, sob forte pressão de governadores, e incluiu tanto as doses envasadas no país quanto as importadas. Questionado várias vezes se continuaria obedecendo o presidente no Senado, Pazuello disse que a live era um “momento de relaxamento” e não sobre cumprir ou não determinações. “Mas é claro que vamos fazer o que tiver que ser feito, da maneira correta”, prometeu.
“Nós vamos vacinar o país em 2021″
O ministro fez então um inventário das negociações com vários laboratórios e voltou a dizer que as doses oferecidas são em um quantitativo baixo diante do tamanho da população brasileira. Disse que ficou claro para o ministério que a estratégia principal deve ser a produção nacional, mas que estava disposto a comprar todas as vacinas oferecidas pelos laboratórios, desde que tivessem o aval da Anvisa. Mencionou o avanço das negociações para comprar a russa Sputnik e a indiana Covaxin e disse que mantinha ainda negociações com laboratórios como Johnson & Johnson, Pfizer e Moderna. Prometeu imunizar toda a população brasileira vacinável (acima de 18 anos) ainda neste ano. “Nós vamos vacinar o país em 2021, 50% até junho e 50% até dezembro. Este é o nosso desafio e o que estamos buscando e vamos fazer”, afirmou o ministro.
Este cenário, porém, ainda parece distante se considerarmos a atual realidade do país. A senadora Leila Barros (PSB-DF) chegou a perguntar porque deveria acreditar em Pazuello agora se não se concretizaram as promessas feitas pelo ministro na última vez que foi ouvido do Senado, em dezembro. Na ocasião, Pazuello perguntou “pra quê esta ansiedade, esta angústia” sobre a vacinação e indicou que Brasil teria à sua disposição, a partir de janeiro, 500 mil doses da Pfizer, 9 milhões de doses do Butantan e 15 milhões da Astrazeneca, caso a Anvisa autorizasse o uso destes imunizantes no país ―o que até o momento só ocorreu para as vacinas do Butantan e da Astrazeneca. “Não chegamos nem perto do que o senhor tinha falado, que eram as 24 milhões que seriam asseguradas por vossa excelência”, afirmou a senadora.
O país distribuiu até agora cerca de 11 milhões de doses de vacinas contra a covid-19 e tem uma campanha repleta de problemas pela falta de diretrizes nacionais claras e de vacinas. O país enfrentou dificuldades para conseguir importar a matéria prima da China, necessária para o envase nacional dos imunizantes, mas a situação foi contornada. Pazuello agora fala em um atraso de apenas 15 dias na produção da Fiocruz, e estima que o país deve chegar a 30 milhões de doses a partir de março, sem detalhar exatamente como. Disse ainda que todas as doses recebidas pela pasta já foram distribuídas e que não há reservas nos galpões de seu ministério, mas espera receber mais 4,8 milhões de doses nos próximos dias. Algumas cidades já começam a paralisar a campanha por falta de doses, como por exemplo Niterói, no Rio de Janeiro. Salvador, capital da Bahia, também anunciou que suspenderá a vacinação neste fim de semana. Já a cidade do Rio de Janeiro disse que seus estoques devem durar até a próxima terça-feira (16). Por enquanto, a realidade da imunização do país ainda é de indefinição.
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