Rede privada de saúde no Ceará distribui kits com cloroquina para tratar coronavírus em casa
Especialista alerta para riscos da medicação, cujos estudos ainda estão em andamento e podem causar efeitos colaterais graves. Estado já é o segundo em número de casos da doença
Mesmo sem estudos conclusivos sobre os efeitos e reações adversas do uso da cloroquina no tratamento de doentes com coronavírus, a Unimed Fortaleza está distribuindo gratuitamente o medicamento a seus conveniados. Desde terça-feira 19, a rede passou a disponibilizar 30.000 kits contendo cloroquina e ivermectina, essa última utilizada no tratamento de infestações por parasitas, como piolhos e sarna, para seus cerca de 340.000 conveniados da região metropolitana de Fortaleza.
De acordo com a rede, a iniciativa “tentar evitar o agravamento da doença e, consequentemente, a necessidade de internação, uma vez que tanto as unidades de saúde do sistema público quanto do sistema privado estão já bem próximas do limite da sua capacidade de atendimento”. Nesta terça-feira, o Ceará passou o Rio de Janeiro em número de casos confirmados da doença e é o segundo Estado com mais infectados no país, onde mais de 30.000 casos e quase 2.000 mortes foram registradas. Com isso, quase 90% dos leitos de UTI estão ocupados neste momento no Estado. Oficialmente, 1.900 pessoas cearenses já morreram por causa da doença.
Nesta quarta-feira, o Ministério da Saúde, que já havia liberado o uso da cloroquina para casos mais graves da doença, divulgou um novo protocolo, indicando seu uso desde o início dos primeiros sintomas do coronavírus. A Organização Mundial da Saúde (OMS) reagiu, afirmando que nem a cloroquina e nem a hidroxicloroquina “têm sido efetivas no tratamento da covid-19 ou nas profilaxias contra a infecção pela doença”, segundo afirmou Michel Ryan, diretor de emergência da OMS. Nos EUA, as autoridades de saúde lançaram um alerta afirmando que a substância só deve ser aplicada no contexto de experimentos clínicos ou em pacientes que estejam sob detalhado monitoramento para detectar problemas cardíacos, um perigoso efeito colateral.
Ainda assim, antes mesmo das novas orientações da pasta, a Unimed Fortaleza já havia elaborado um protocolo para prescrição dessas medicações em estágios iniciais da doença. Por meio de sua assessoria de imprensa, a rede informou que “evidências” baseadas em “estudos iniciais nortearam a Unimed Fortaleza para a elaboração do protocolo para a prescrição das medicações em estágios iniciais da doença, bem como na tomada de decisão sobre a distribuição dos medicamentos”. Mas não mencionou nenhum estudo ou a chancela de nenhuma organização científica como base para tais evidências. Informou, porém, que a decisão está alinhada aos critérios estabelecidos pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), que defende que, diante da excepcionalidade da situação e durante o período declarado da pandemia de covid-19, é possível a prescrição da cloroquina e hidroxicloroquina em algumas situações específicas. Procurado, o Conselho Regional de Medicina do Ceará não respondeu à reportagem.
O protocolo da Unimed Fortaleza estabelece que, para ter acesso aos medicamentos, é preciso apresentar um pedido médico e assinar um termo de consentimento. Nele, o paciente – que não precisa ter feito exame para confirmar a doença – atesta estar ciente sobre os efeitos e reações adversas das drogas. Mas para Ana Paula Herrmann, professora de farmacologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o paciente não tem condições de saber sobre os reais riscos que corre. “Isso que na medicina chamamos de decisão compartilhada, que é quando o paciente também tem o direito de opinar, é quase uma utopia”, diz. “Porque, muitas vezes, o paciente não tem conhecimento suficiente para opinar. Se nem os médicos têm condição de decidir sobre um assunto tão importante, a gente não pode esperar que uma pessoa que não é da área possa avaliar”, afirma. Para ela, esse tipo de ação da Unimed Fortaleza —também realizada pela Unimed Belém e estudada pela Unimed Ceará— serve mais para tratar da ansiedade do que da própria doença. “O efeito é muito mais psicológico do que viral”.
A fragilidade desse efeito psicológico está, contudo, nos possíveis efeitos adversos do medicamento. Ainda não há estudos conclusivos que atestem o efeito da cloroquina, e nem da ivermectina, sobre a covid-19. A Fiocruz encabeça uma pesquisa que, até hoje, só produziu resultados iniciais sobre a cloroquina e aponta que pacientes graves com covid-19 não devem usar doses altas do medicamento.
Mensagem no WhatsApp
Diante deste cenário, o professor de jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE Rodrigo Cunha conta ter levado um susto quando recebeu, no grupo que a família mantém no WhatsApp, a informação da Unimed Fortaleza sobre a distribuição dos medicamentos. “Meu pai, que tem quase 80 anos e é cliente da Unimed, recebeu uma mensagem falando que quem quisesse a cloroquina podia procurar pelas unidades da Unimed”, afirma. “Achei bem absurdo e fui checar”. A ideia de utilizar a medicação acabou sendo bem recebida no grupo da família de Cunha, mas ele afirma que o pai, o único da família que vive em Fortaleza, garantiu que não pretende usar a substância. “Eu fiquei bem preocupado com esse tipo de informação e até liguei para ele para esclarecer”, afirma Cunha. “O que mais me chocou foi essa descredibilização do conhecimento científico”.
À reportagem, a Unimed Fortaleza “reforça que não há certezas no que se refere ao tratamento da doença e que não há nada milagroso”. Mas afirma que a ação “tem por objetivo dar aos seus clientes acesso aos medicamentos”, já que a substância, segundo a própria empresa, está em falta nas farmácias. Procurada, a Secretaria da Saúde do Ceará, que já faz uso da cloroquina e hidroxicloroquina em casos mais avançados de pacientes internados com coronavírus, não respondeu se a ação da Unimed pode acarretar na falta do medicamento para a rede pública.
A professora Ana Paula Herrmann alerta que, além dos riscos do uso desses medicamentos antes da conclusão dos estudos, há um outro peso colocado na balança e que desfavorece sua prescrição agora. “Se todo mundo tiver acesso a um tratamento que ainda não temos certeza se funciona, isso atrapalha até mesmo o andamento dos estudos sobre eles”, diz. “Afinal, por que o paciente que já tem acesso ao fármaco de qualquer jeito vai topar participar de um estudo e correr o risco de receber um placebo? A pessoa pode acabar negando a participação porque ela corre o risco de não receber o fármaco que ela sabe que poderia acessar em qualquer lugar”, explica. Ela diz que algo parecido ocorreu durante a epidemia do ebola, quando muitos ensaios clínicos não foram concluídos. “Estamos perdendo tempo e oportunidade sem conseguir concluir os ensaios clínicos necessários”.
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