Estudo sugere que pessoas em “tratamento precoce” tiveram taxas mais altas de infecção por covid-19 em Manaus
Análise da Fiocruz Amazônia e da Universidade Federal do Amazonas mostra que os que tomaram ivermectina ou outros remédios foram mais acometidos pela doença
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Um estudo desenvolvido pela Fiocruz Amazônia e pela Universidade Federal do Amazonas observou que pessoas que afirmaram ter tomado ivermectina ou outros remédios como “tratamento preventivo” para evitar a covid-19 tiveram maiores taxas de infecção que aquelas que não tomaram nada. O resultado faz parte de um trabalho que avaliou os fatores de risco da pandemia em Manaus e que foi enviado recentemente para sua publicação em uma revista científica internacional. No momento, o estudo ainda está sendo avaliado por especialistas da área, pelo que os resultados não são definitivos.
Apesar de que o uso desses remédios tem se demonstrado ineficaz para combater o coronavírus, eles têm sido endossados em múltiplas ocasiões pelo presidente da República e são recomendados pelo Ministério da Saúde como “tratamento medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico de covid-19”.
“Se eu acredito que essa droga previne, o que é que acontece? Eu baixo a minha guarda. Porque eu tomei a medicação que eu acredito que me protege”, explica Jaila Dias Borges, professora da Universidade Federal do Amazonas e uma das autoras do artigo. “Não vou me preocupar tanto com as intervenções não farmacológicas porque eu já estou tomando algo que eu acredito mais do que a máscara”.
Um total de 3.046 moradores da cidade participaram do estudo. Os pesquisadores analisaram amostras de sangue dos voluntários para detectar a presença de anticorpos frente ao coronavírus, sinal de uma infecção prévia. Além disso, os voluntários tiveram que preencher um formulário com informações pessoais. Isso permitiu conhecer o perfil socioeconômico das pessoas que já foram infectadas pelo vírus.
O estudo aponta que 25,99% dos voluntários que afirmaram não ter tomado nenhum medicamento para prevenir a covid-19 apresentaram anticorpos frente ao vírus. Essa porcentagem subiu até 38,64% no grupo dos que afirmaram ter consumido algum tipo de remédio para evitar a doença. Os remédios mais usados foram, além do paracetamol, a ivermectina e a azitromicina, nenhum dos quais têm eficácia comprovada contra o coronavírus.
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Clique aquiAlém da associação entre o uso do”tratamento preventivo” e altas taxas de infecção, os resultados também mostraram que a pandemia atingiu principalmente pessoas de baixa renda e que dividem moradia com várias outras pessoas. “Nós observamos uma relação muito grande com a pobreza. Ser pobre é um fator de risco”, diz Pritesh Lalwani, pesquisador do Instituto Leônidas e Maria Deane da Fiocruz e um dos autores do estudo. “Outro é a agregação dentro de casa. Quando você tem muita gente dentro de casa, mais de quatro adultos ou mais de três crianças, isso aumenta muito o risco [de contrair a doença].”
Mais de 35% dos voluntários com renda de até três salários mínimos apresentaram anticorpos frente ao vírus, dez pontos percentuais a mais do que os voluntários com renda de seis salários mínimos ou superior. Dentre os adultos que moram sem crianças ou sozinhos, um em cada quatro apresentaram anticorpos. Esse valor aumentou progressivamente com o número de pessoas morando na mesma casa, chegando a 34,5% nos voluntários que convivem com quatro adultos ou mais, e a 43% quando a convivência é com três ou mais crianças. “Você não consegue explicar a explosão da pandemia aqui só por um fator”, afirma Lalwani.
O doutor Paulo Lotufo, epidemiologista da Universidade de São Paulo que não esteve envolvido no estudo, concorda com a hipótese dos pesquisadores de que o uso dessas substâncias como a ivermectina possa ter contribuído para um relaxamento de outras medidas, mas aponta outra possibilidade compatível com a anterior: que essas pessoas tenham decidido se automedicar com esses remédios por já estar em contato com pessoas infectadas. Lotufo qualifica e o artigo como “de qualidade”, mas comenta que os pesquisadores poderiam ter aproveitado para ter obtido também informação sobre os hábitos de mobilidade e deslocamentos dos participantes. “Desde Wuhan, e depois em São Paulo, sabemos que a mobilidade é determinante [para a transmissão] comparada às condições de habitação”, afirmou.
Os autores do trabalho falam em “sindemia”, destacando o papel que os fatores socioeconômicos têm no desenvolvimento da pandemia. O termo surgiu nos anos 90 durante a epidemia de HIV, e é uma combinação dos termos “sinergia” e “pandemia”. A ideia é que a transmissão e o impacto da doença estão sendo afetados por múltiplos elementos, como a falta de saneamento básico, as desigualdades sociais e a fragilidade do sistema de saúde.
Dos 3.046 voluntários do estudo, 29% apresentou anticorpos frente ao vírus. Porém, os pesquisadores frisam que o objetivo da pesquisa não era determinar a prevalência de anticorpos contra o vírus na população de Manaus, mas entender os fatores socioeconômicos associados à infecção. E como os voluntários não foram selecionados de forma aleatória, mas recrutados por meio de anúncios no site da universidade e em redes sociais, a amostra pode não ser representativa da população da cidade. A razão pela qual se optou por esse tipo de recrutamento é porque a pesquisa está acompanhando esse grupo de voluntários ao longo do tempo. Nos próximos meses e com novas análises, eles esperam obter mais informação sobre a duração dos anticorpos no sangue e sobre a possibilidade de reinfecção.
Imunidade de rebanho e novas variantes
A severidade da nova onda de casos de covid-19 em Manaus pegou de surpresa quase todo mundo. Em setembro, após semanas de diminuição de casos, um grupo de cientistas liderado pela pesquisadora Ester Sabino, da Universidade de São Paulo, publicou uma primeira versão de um estudo com o título Covid-19 herd immunity in the Brazilian Amazon [Imunidade de rebanho para a covid-19 na Amazônia brasileira]. O estudo foi amplamente divulgado na mídia contribuindo para criar uma sensação de que a cidade teria superado o vírus. Mas apenas alguns dias depois, os casos voltaram a explodir na cidade. O ressurgimento da doença e as críticas recebidas levaram os pesquisadores a mudar o título do estudo na versão final e a reduzir a ênfase no conceito de “imunidade de rebanho”.
A conclusão de que a cidade teria atingido, ou estaria prestes a atingir, a imunidade de rebanho surgiu da análise da presença de anticorpos frente a coronavírus em bancos de sangue da cidade. Os dados, após uma série de correções matemáticas, sugeriram que 66% da população em agosto e 76% em outubro, teriam já sido infectados pelo vírus e teriam, portanto, desenvolvido anticorpos frente a ele. As principais críticas a esses números se baseiam no fato de que a população de doadores de sangue não é representativa da população geral, e à suspeita de que as correções matemáticas possam ter levado a uma superestimação do número de infectados.
A doutora Márcia Castro, professora do departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard e uma das autoras do artigo, defende os dados apresentados no trabalho e acredita que devem existir novos elementos por trás do ressurgimento de casos em Manaus. “Ainda que o número estivesse superestimado, isso não justifica o que a gente viu agora. Quando você pega as mortes em janeiro elas são quase o total do que morreu no outro pico no ano passado, em abril e maio.”
Recentemente, Castro e outros dos autores do polêmico artigo publicaram um comentário na revista médica The Lancet discutindo a situação de Manaus e especulando sobre as possíveis causas da nova onda. Além de admitir que o estudo poderia ter superestimado a prevalência do vírus, os pesquisadores discutem outras possibilidades, como o que a imunidade adquirida pela infecção seja menos duradoura do que o que se imaginava, ou que as novas linhagens identificadas tenham uma capacidade de infecção maior. “A gente não entende muito bem por quanto tempo a imunidade dura em quem teve infecção”, afirma Castro. “Tem muitos estudos que seguiram as pessoas, mas muitos deles pararam em seis meses. Então o que é que acontece com sete, com oito, com nove, com um ano? A gente na verdade não sabe.”
A professora também se mostra preocupada com a nova variante P1, descoberta em Manaus e agora identificada em vários outros lugares do Brasil. Estudos preliminares apontam que ela poderia ser mais transmissível ou ter maior facilidade para reinfectar pessoas que já tenham se infectado pela doença. “Eu espero estar totalmente errada, muito sinceramente, mas se essa P1 realmente for o que é, com a festança que anda rolando aí no Brasil no Carnaval, a galera sem máscara… Enfim, daqui a duas semanas você me pergunta, que eu te falo.”
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