Radiografia para eliminar as lacunas nos dados sobre feminicídios
Relatório ‘A dor e a luta: números do feminicídio’ analisa crimes contra mulheres em cinco Estados. “As mulheres negras são as principais vítimas e são também as que menos conseguem denunciar estes casos”, diz pesquisadora
São cinco registros de crimes contra mulheres por dia. Se fossem empilhados, recortes de jornal noticiando casos de feminicídio, violência sexual, agressão, tortura e tentativa de homicídio contra elas alcançariam o teto. Foi sobre este triste e vasto material, composto por centenas de horas de vídeos de reportagens televisivas e milhares de páginas impressas que um grupo de pesquisadores da Rede de Observatórios da Segurança se debruçou para produzir o relatório A dor e a luta: números do feminicídio. O projeto, uma iniciativa do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec) da Universidade Cândido Mendes, analisou dados sobre violência de gênero em cinco Estados (Bahia, Ceará, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo) em 2020, tendo como base o monitoramento do que circula nos meios de comunicação e nas redes sociais. Foram localizados 1.823 casos, dentre eles 449 feminicídios.
Em três dos Estados monitorados houve discrepância entre os números fornecidos pelas Secretarias de Segurança Pública e os encontrados na mídia. Em São Paulo, Ceará e Pernambuco “os dados gerados pelas nossas pesquisadoras foram maiores que os números oficiais”, diz o relatório. No Ceará foram localizados 74% mais feminicídios que o Governo informou. São justamente estas diferenças que justificam a elaboração de um documento como o relatório da rede, que realiza um levantamento minucioso, cruzando informações de diferentes veículos de mídia confiáveis para chegar a uma confirmação.
“Esse método de produção de dados é importante porque é feito de forma cidadã. É fundamental que a sociedade civil monitore indicadores de segurança pública para que a gente não fique atado apenas às estatísticas oficiais”, afirma Ana Letícia Lins, pesquisadora do projeto. Isso se torna relevante “principalmente em Estados onde não há transparência com relação à divulgação destes dados”. As discrepâncias entre os números oficiais e os do relatório geralmente ocorrem devido ao registro incorreto —um feminicídio pode ser catalogado como homicídio pelas autoridades—, explica Lins.
Outro ponto importante deste tipo de levantamento é conseguir ter um “conhecimento qualitativo sobre os casos”. Ao contrário da estatística fria divulgada pelos Governos, onde as mulheres são apenas um número, ao se debruçar sobre milhares de histórias ao longo de um ano o projeto conseguiu “entender quais as circunstâncias daqueles crimes, e identificar fatores em comum”, diz a pesquisadora. Os números obtidos reforçam a tese de que o lugar mais perigoso para uma mulher é seu próprio lar: em 262 dos casos de feminicídios analisados (58% do total), o assassino era cônjuge, namorado ou ex da vítima. “Eu acho que esse boletim vem em um momento muito específico. Estamos falando de violência contra a mulher em um contexto de crise sanitária, e a casa e o contexto familiar são os lugares mais perigosos para as mulheres”, diz Lins.
Mas mesmo buscando em centenas de notícias, muitas das informações necessárias para compreender o crime de feminicídio estão ausentes. “Quando buscamos as razões que levaram o homem a cometer o crime, em 42% dos casos ele está ausente ou não é informado”, diz Lins. O relatório também evidencia um apagão de dados quando o assunto é a cor das vítimas. “Em 306 casos de violência contra a mulher monitorados, cor/raça somente foi informada em 26 deles”, diz o documento. “Dos casos em que conseguimos essas informações, as mulheres negras são as principais vítimas, e são também as que menos conseguem denunciar estes casos, muitas vezes por estarem envolvidas em várias dinâmicas de vulnerabilidade socioeconômica”, diz ela. Segundo o relatório, quanto maior o poder aquisitivo da vítima, mais informações teremos nos jornais. “É preciso garantir o acesso das mulheres a grupos de apoio, denúncia e acolhimento. É preciso que essa rede seja fortalecida para que 2021 não seja pior do que 2020. Não existe perspectiva de melhora, e precisamos proteger essas mulheres”.
São Paulo é o Estado com os piores índices segundo o levantamento. Foram 200 casos de feminicídio (quase a metade do total encontrado pelo projeto), 384 tentativas e 118 estupros. Ou seja, 40% dos crimes contra mulheres identificados pela iniciativa em 2020 aconteceram em território paulista. Também chama a atenção a pulverização de casos pelo interior do Estado (154), superando os números da capital (46). Pernambuco ocupa a segunda posição, com 84 mulheres mortas, seguido por Bahia (70), Rio de Janeiro (50) e Ceará (47). Como a iniciativa teve início na metade de 2019, não é possível ainda comparar a evolução dos dados.
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