“Defesa da honra” em 2020? O STF não pode virar as costas para as mulheres
Manter a absolvição de um homem que tentou matar a ex-mulher a facadas por ciúmes é abrir um perigoso caminho para o retorno da nefasta e anacrônica tese
Em um caso de tentativa de feminicídio em Minas Gerais, a íntima convicção de jurados, baseada em misoginia, foi aceita como argumento jurídico válido para manter a absolvição do acusado pelo júri popular. E o que é pior: a Primeira Turma do STF (Supremo Tribunal Federal), por três votos a dois, concedeu um habeas corpus para rejeitar o recurso do Ministério Público, que demandava pela realização de um novo julgamento, acatando a defesa do réu por considerar que a decisão do júri é soberana e que os jurados podem decidir pela absolvição a partir de suas convicções íntimas.
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Por isso, manifestamos nossa perplexidade diante da decisão da Primeira Turma do Supremo que, em 29 de setembro, manteve a absolvição de um homem que tentou matar a ex-mulher a facadas por ciúmes. Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso votaram a favor de um novo julgamento. Ambos questionaram, cada um à sua forma, a legitimidade da argumentação baseada na honra ferida em pleno século XXI. O caso voltará a ser votado no STF.
No caso em questão, a mulher vítima de tentativa de feminicídio, ao sair do culto religioso, foi atacada pelo ex-marido em uma cidade nos arredores de Belo Horizonte. Ficou provado nos autos, inclusive por confissão, que o réu tentou matar a ex-esposa por ciúmes. Por sorte, ela sobreviveu. Ainda assim, o réu foi absolvido por sete cidadãos comuns que decidem pela absolvição ou condenação quando se trata de crimes intencionais contra a vida.
O Ministério Público de Minas Gerais colocou-se contra essa decisão, considerando que não haveria razão jurídica alguma para absolver, pois existia prova cabal nos autos da autoria e materialidade do crime. Para a promotoria, acolher a tese de absolver alguém que tenta matar sua esposa a facadas por ciúme é admitir como legítima a cultura de posse sobre a mulher, dizendo que os “crimes de defesa da honra” podem ser juridicamente protegidos, sob a tese de que as decisões do júri popular seriam “soberanas” e “impassíveis de reforma”. Os promotores mineiros afirmaram que “a íntima convicção do jurado”, baseada em preceitos morais e não jurídicos, não deve receber amparo legal, sendo possível a realização de um novo júri, que não desrespeitaria sua soberania do instrumento.
Ao rejeitar o recurso dos promotores, a Primeira Turma do STF abriu um perigoso caminho para o retorno da nefasta tese da “legítima defesa da honra”, utilizada para deixar impunes homens que assassinam mulheres, em especial aquelas com as quais mantiveram ou mantêm um relacionamento “amoroso”. Desde o inicio da década de 1980, os movimentos feministas repudiaram com vigor a ilegalidade dessa tese declarando “quem ama não mata!” em resposta aos assassinatos de Eliane de Grammont, em São Paulo, Heloisa Ballesteros, em Minas Gerais, Cristhel Arvid Johnston e Angela Diniz, no Rio de Janeiro, que repercutiram na grande imprensa. A impunidade dos agressores levou os movimentos feministas a denunciarem a existência de uma violência específica contra a mulher e impunidade de seus agressores, acobertada pelo Estado e legitimada culturalmente pela sociedade. Nesses tempos de retrocesso, todas nós mulheres, e também homens, não podemos ficar de braços cruzados. A decisão de 2020 da Primeira Turma do STF mostra que se faz necessário que esse grito das mulheres seja ouvido mais uma vez.
Essa decisão está pendente de julgamento, tendo como relator o ministro Gilmar Mendes, e deve ser levado a julgamento virtual em breve. É um dever moral que todas e todos nós —mulheres e homens— nos manifestemos publicamente contra a possibilidade de retrocessos em conquistas históricas e civilizatórias. Se não corrigir o curso, o STF se colocará contra decisões anteriores do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e fundadas normativas legais internacionais que protegem as mulheres contra discriminações e violência.
É importante que, rejeitando o argumento de sua Primeira Turma, o STF se alinhe com decisões do STJ, dentre elas a decisão de 2019, do ministro Rogerio Schietti Cruz, em caso semelhante, que rejeitou recurso de homem denunciado por matar a esposa, repudiando o argumento da defesa. O ministro foi claro ao destacar que, desde 1991, o STJ rejeita, com veemência, a tese de legítima defesa da honra. “Em um país que registrou, em 2018, a quantidade de 1.206 mulheres vítimas de feminicídio, soa no mínimo anacrônico alguém ainda sustentar a possibilidade de que se mate uma mulher em nome da honra do seu consorte”, disse Schietti Cruz. “Não vivemos mais períodos de triste memória, em que réus eram absolvidos em Plenários do Tribunal do Júri com esse tipo de argumentação. Surpreende ver ainda essa tese sustentada por profissionais do direito em uma Corte Superior...”
O STJ não está só em sua refutação. A Organização dos Estados Americanos (OEA), acompanhando as manifestações feministas de seus Estados-partes, considera o feminicídio como a expressão mais extrema e irreversível de violência e discriminação contra mulheres, que atenta radicalmente a todos os direitos e garantias estabelecidos nas leis internacionais e nacionais sobre direitos humanos. Este crime é um ato de ódio que distorce de forma extrema todo o sentido de humanidade. Consolida no tempo a visão hegemônica masculina sobre as mulheres como propriedade, objeto de transgressão e símbolo de fraqueza, reforçando a configuração da estrutura de poder do sistema patriarcal de dominação. A OEA reitera, ainda, que cabe aos Estados adotar e implementar medidas para punir esse crime na esfera privada e pública e, em particular, recomenda que a atenuante jurídica “emoção violenta” não seja usada para diminuir a responsabilidade dos feminicidas.
Também há o posicionamento do comitê da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) da ONU, que diz que os estereótipos e os preconceitos de gênero no sistema judicial têm amplas consequências negativas, afetam o acesso das mulheres à Justiça, bem como o reconhecimento de seus direitos humanos, na medida em que esses estereótipos têm, com muita frequência, levado juízes a mal interpretarem e mal aplicarem as leis. O CEDAW afirma que todos os sistemas de Justiça devem se ajustar aos padrões internacionais sensíveis a gênero e devem também levar em consideração as crescentes demandas das mulheres por Justiça.
É à luz das decisões do Superior Tribunal de Justiça e das normas internacionais que lembramos que as decisões do STF têm impacto em toda a sociedade e, por isso, a nossa Corte Suprema não pode acatar a absolvição com base na “legítima defesa da honra”, sobrepondo os princípios da soberania dos vereditos do júri popular e da íntima convicção dos jurados ao princípio, também constitucional, da dignidade da pessoa humana, no caso, das mulheres, valor expresso na Constituição Federal de 1988 como um dos fundamentos da democracia.
O Supremo deve e pode, sim, devolver o caso ao júri popular de Minas Gerais, para que volte a decidir, atendo-se exclusivamente às provas dos autos e afastando os argumentos misóginos incompatíveis com os direitos humanos das mulheres.
Esperamos que nesse e em novos julgamentos, o STF não vire as costas para a longa luta das mulheres contra a impunidade. Trata-se de um imperativo: não desconsiderar as milhares de vítimas de feminicídio no Brasil e não abandonar os padrões internacionais reconhecidos há longo tempo pela Constituição Brasileira de 1988.
Silvia Pimentel é professora doutora em Filosofia do Direito na Faculdade de Direito da PUC-SP, onde também ministra a disciplina optativa Direito, Gênero e Igualdade. Integrante do Comitê CEDAW/ONU, de 2005 a 2016 e sua presidente em 2011 e 2012. Integrante do Consórcio pelo Enfrentamento a todas as Formas de Violência de Gênero contra as Mulheres.
Leila de Andrade Linhares Barsted é advogada, integrante e ex-coordenadora do Comitê de Especialistas do MESECVI (Mecanismo de Monitoramento da Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher), Convenção de Belém do Pará da Organização dos Estados Americanos - OEA. Fundadora e Coordenadora Executiva da organização não governamental CEPIA - Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação. Integrante do Consórcio pelo Enfrentamento a todas as Formas de Violência de Gênero contra as Mulheres.
Fabiana Cristina Severi é professora Associada ao Departamento de Direito Público da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Integrante do Consórcio pelo Enfrentamento a todas as Formas de Violência de Gênero contra as Mulheres.
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