“O meu hoje é o Brasil”. A saga dos venezuelanos que se tornaram cidadãos brasileiros

Mais de 262.000 refugiados e migrantes da Venezuela moram em 630 cidades do país, o que aponta para ser a maior comunidade estrangeira aqui. Do nascer e viver em uma cultura diferente, se confrontam até com a ideia de ficar longe do seu país até morrer

A venezuelana Dorianny parte de Roraima com seus filhos e parentes para tentar a vida em Minas Gerais, parte do programa do Governo de interiorização dos venezuelanos.Vídeo: Victor Moriyama | EPV
Carla Jiménez Victor Moriyama (foto e vídeo)
Boa Vista, Pacaraima, São Paulo -
Mais informações
Oásis na era Bolsonaro, Operação Acolhida corre contra o relógio antes da reabertura das fronteiras
Como os venezuelanos ajudaram a controlar a primeira onda da covid-19 em Roraima
Brasileiros mal conhecem a Venezuela que os imigrantes trazem na bagagem

Dorianny Torres acaba de amamentar seu filho caçula Luis Joel e sente vontade de comer algo doce. “Uma bala, uma bolacha”, comenta ela, sentada na rede da casa de PVC em que se encontra. “É a ansiedade”, conclui. Dentro de algumas horas, esta venezuelana de 30 anos embarcará rumo a Minas Gerais, saindo de Boa Vista, na companhia de seus seis filhos. A mais velha é Estrella, de 10 anos, que usa um vestido florido e rodado. Tem os cabelos enfeitados por uma fileira de presilhas coloridas, assim como suas outras irmãs, Kereane, de 5, Luciane, de 7, e Victoria, de 6. Abraham, de 8, era o único varão da história, até a chegada de Joel. É a primeira vez que viajarão de avião rumo a uma cidade desconhecida. Mas não há alternativa. Precisam sobreviver e encontraram no Brasil um caminho.

Todas as crianças nasceram em Ciudad Bolívar, menos Joel, a quem Dorianny deu à luz enquanto vivia num abrigo para refugiados em Boa Vista, capital de Roraima. No dia 8 de setembro, a mãe sentiu as contrações e foi levada para o hospital público da capital, em plena pandemia. Joel, bochechudo e dono de olhos negros despertos, nasceu de parto normal. Sua vida, desde então, não se diferencia somente pelo local de nascimento diferente dos irmãos. Joel é a síntese de um novo ciclo de imigração que o Brasil acolhe, desde que a Venezuela afundou de vez com o Governo de Nicolás Maduro. Se até a primeira metade do século 20 portugueses, italianos, japoneses e alemães chegaram ao Brasil em busca de melhores condições de vidas e fugindo dos horrores das Guerras mundiais, neste século os venezuelanos fogem de um país que se depaupera a cada dia desde que Maduro assumiu o poder e aprofundou a perseguição a opositores. As seguidas crises e prisões injustificadas de quem não concorda com Maduro levou os Estados Unidos a determinarem, em 2015, um bloqueio econômico à Venezuela, extremamente dependente da exportação de petróleo. O impacto foi imediato e a população passou a conviver com escassez, inflação e um mercado de dólar paralelo. A repressão aumentou e o país entrou no que analistas já chamam de cubanização.

A venezuelana Dorianny, com seu filho Joel, que nasceu no Brasil.Victor Moriyama

Desde 2015 o número de venezuelanos que atravessaram a fronteira para chegar ao Brasil tem aumentado. Mas de 2018 para cá a alta foi vertiginosa, tornando-os a maior comunidade estrangeira no país, à frente de bolivianos e haitianos. A cidade de Pacaraima, fronteira com a cidade venezuelana de Santa Elena de Uairén, no norte do país, estava recebendo, em média, 500 pessoas por dia, fluxo interrompido pela pandemia que fechou a fronteira em março deste ano.

Apoie nosso jornalismo. Assine o EL PAÍS clicando aqui

Hoje há 262.475 venezuelanos vivendo no Brasil, mais que o dobro de dois anos atrás. A grande maioria na condição de migrante, ou seja, que pediu para viver aqui para obter livre trânsito e ganhar um visto de pelo menos dois anos. Outros 46.647 aceitaram a condição de refugiados, citando a falta de condições de direitos humanos no seu país de origem. Há, ainda,102,504 venezuelanos com solicitações de refúgio em aberto, na fila para conseguir a documentação que os aceitará como residentes. Assim, configuram o maior número de pedidos de refúgio, por nacionalidade, segundo o Conselho Nacional de Refugiados (Conare). Pelos registros de migração do Ministério da Justiça, os venezuelanos superavam em número os portugueses, haitianos e bolivianos, que até pouco tempo representavam os maiores grupos estrangeiros residentes no Brasil.

A grande massa de venezuelanos que entrou aqui a partir de 2018 veio por Pacaraima e uma boa parte se manteve por lá ou na capital de Roraima, Boa Vista. Com o fluxo concentrado ali no Norte, o resto do Brasil não percebeu a evolução silenciosa da migração dos venezuelanos. Ninguém conhece tão bem esse novo ciclo migratório quanto os roraimenses. Não é uma convivência tão tranquila. Os venezuelanos já ocupam 40% dos leitos de hospitais no Estado, alertou o governador Antonio Denarium em fevereiro deste ano, quando um protesto em Pacaraima tentava impedir o acesso de novos venezuelanos. Também metade das escolas em Pacaraima tem alunos venezuelanos. O Governo brasileiro não se preparou para uma resposta à altura da migração e Roraima não tinha capacidade para abraçar o novo desafio. Tem sido um caminho acidentado para os que chegam pelo Norte do país.

Criança venezuelana no abrigo para refugiados Rondon II em Boa Vista, em Roraima.Victor Moriyama

Um quadro que se repete ao longo da história do Brasil, um país forjado por centenas de nacionalidades que aqui aportam. Os primeiros japoneses a chegarem aqui, no início do século XX, por exemplo, também viveram seus percalços. Em 1914, São Paulo contava com 10.000 imigrantes japoneses que fugiam das dificuldades do Japão feudal. O Brasil somava, então, 25,5 milhões de habitantes. Vinham trabalhar na agricultura quando o Brasil foi obrigado a abrir mão da mão-de-obra escrava depois da abolição da escravatura em 1888. Levou tempo até se fazerem respeitar pelos fazendeiros que os contratavam. Houve episódios de racismo e preconceito na época, tal qual o que os venezuelanos se deparam nas cidades de Roraima.

Adaptação e acolhida

O total de venezuelanos no Brasil é uma pequena fração, se comparado à massa de 5,5 milhões que já saíram para outros países, especialmente para a Colômbia e Peru ―cada um recebeu mais de um milhão de venezuelanos – e o Chile, com quase meio milhão. O território brasileiro já é o quinto receptor de venezuelanos, segundo a Organização dos Estados Americanos (OEA). O idioma distinto tornou o Brasil a última opção para emigrar. Mas, diante da reticência desses países menos populosos, que acolheram muito mais venezuelanos antes, era melhor encarar as diferenças.

O Brasil também tornou mais fácil esta jornada. Reduziu as burocracias para recebê-los ao declarar que a Venezuela era um país onde se cometiam graves e generalizadas violações de direitos humanos. O Comitê Nacional de Refugiados (Conare) adotou o chamado prima facie, que dispensa a entrevista detalhada ―e demorada―, em que se decide se um estrangeiro deve receber ou não um visto de residência temporária ou refugiado. O mecanismo garantiu uma facilidade inédita para acolher os venezuelanos no continente. Hoje, dos pouco mais de 49.000 refugiados no Brasil de distintas nacionalidades, 95% são venezuelanos.

O Governo de Jair Bolsonaro assumiu e ampliou a chamada Operação Acolhida, criada em 2018 durante o Governo Temer, com o trabalho conjunto de 12 ministérios, que facilitaram o acesso dos imigrantes venezuelanos. “Há uma sensação na Venezuela de que o Brasil trata bem os seus”, diz David Smolanski, ex-prefeito de El Hatillo, um dos distritos de Caracas, capital da Venezuela. Smolanski atua hoje na Organização dos Estados Americanos (OEA), em Washington, trabalhando no monitoramento dos venezuelanos que emigraram. Ele mesmo veio fugido da fúria de Maduro, que passou a persegui-lo enquanto opositor. Quando recebeu uma ordem de prisão, viu-se obrigado a ficar na clandestinidade. Trafegou mais de 1.000 quilômetros rumo à fronteira por três ou quatro dias disfarçado de seminarista para não ser reconhecido. De óculos, batina e sem barba, Smolanski conseguiu chegar ao Brasil em 2017, com apoio do então ministro de Relações Exteriores, Aloysio Nunes. Daqui seguiu para os Estados Unidos onde começou a trabalhar por uma coalizão para restabelecer a democracia plena na Venezuela.

CPF, SUS, Bolsa Família e a auxílio emergencial

O Governo brasileiro tem garantido aos que chegaram ao país que vivam como cidadãos brasileiros, com exceção de votar. Têm um CPF próprio, frequentam o Sistema Único de Saúde (SUS), os filhos vão à escola e têm livre trânsito no país. Muitos recebem Bolsa Família. Durante a pandemia, tiveram acesso inclusive ao auxílio emergencial, a renda básica para atravessar a crise sanitária. Ao menos 42.519 receberam o benefício da Caixa Econômica Federal. O presidente do banco, Pedro Guimarães, chegou a dizer em uma entrevista que mais venezuelanos em Pacaraima estavam recebendo o benefício do que brasileiros da cidade. O dinheiro alimenta, mas parte dele segue para a Venezuela, para ajudar os parentes necessitados. “O que é pouco aqui é muito lá”, diz Dorianny, que estava recebendo o Bolsa Família e teve acesso ao auxílio. Parte do que recebe é enviado a seus pais.

O êxodo venezuelano, o maior da América Latina da história recente, correspondia a 15% da sua população de 2017. Guardadas as proporções, seria como se 33 milhões de brasileiros, ou a população dos Estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo, saíssem do país ao longo de três anos, por perseguições políticas, fugindo da fome ou para resgatar a dignidade e garantir condições de vida para seus filhos. Hoje 96% dos venezuelanos que ficaram no seu país são considerados pobres. “Todos na Venezuela hoje têm dois sonhos: comer ou sair do país”, diz Raul Escalona, um diretor de teatro de 74 anos, que chegou ao Brasil em 2018.

Raúl seguiu os passos do filho, Carlos Escalona, um jornalista que veio para o Brasil depois de se ver ameaçado por não querer participar, em 2016, de um esquema de corrupção numa TV estatal em Maracay, capital do Estado de Arágua. Era então gerente de produção de um programa cultural. Carlos teve o salário retido por oito meses como forma de pressão. “Falavam que a solução estava em minhas mãos”, recorda. Seu limite foi testado quando viveu um sequestro relâmpago em que ameaçaram prejudicar seus pais e sua namorada, Marifer, por não querer assinar orçamentos superfaturados na Tele Arágua. “Me batiam enquanto falavam coisas pontuais do trabalho”, lembra ele. Depois atiraram, para o alto para assustá-lo. Carlos não aguentou e decidiu emigrar.

Seu pai viu ali que ficar na Venezuela passava a representar risco de morte. Ele já havia sido vice-presidente da TV Arágua nos tempos de Hugo Chávez, e já sentia naquela época que havia interferência no trabalho jornalístico do canal. Mas o atentado contra o filho foi um choque de realidade. “Aquilo foi um alerta de que algo muito sério estava acontecendo para além do que podíamos lidar”, lembra Raúl. Enquanto o filho escolhia o Brasil como destino, ele e sua esposa decidiram viver um ano no Equador, em 2017. Acordos entre os dois países facilitavam o pagamento da aposentadoria a que tinha direito na Venezuela ali mesmo. Mas a saudade apertou e decidiram voltar um ano depois. Foram para Isla Margarita, onde tinham uma casa que guardava lembranças de tempos felizes. Ficar ali parecia uma boa ideia, longe dos centros mais nervosos politicamente, até que a poeira baixasse. Mas tudo estava diferente. “Em um ano o país havia sido arrasado”, recorda Raúl, ao lado da esposa, Elvira, na cozinha do apartamento do seu filho, Carlos, em São Paulo. A flamante ilha estava às moscas, e encontrar alimentos básicos era uma tarefa cada dia mais difícil. “Um dia acordamos e decidimos ir embora”, diz Raul.

Na mala, somente duas caixas de som e a certeza de que a vida nunca mais seria a mesma. “Com mais de 70 anos me vi tendo de sair da minha zona de conforto”, diz Raúl. Pegaram um barco, um ônibus, carro e seguiram para a fronteira da Venezuela com o Brasil. Dali, seguiram para Boa Vista e então para São Paulo, onde já estava morando Carlos. Agora, pais e o filho vivem próximos, na zona leste de São Paulo. Outro filho, Miguel, emigrou para os Estados Unidos. Raul já se adaptou à capital paulista e não olha para trás. “O meu hoje é o Brasil.”

Brasileiros herdeiros da Venezuela

Encarar a vida em um novo país é também abrir-se à possibilidade de gerar descendentes aqui. No abrigo Janokoida, em Pacaraima, já existe uma leva de brasileirinhos filhos de venezuelanos. Voltado apenas para indígenas da família Warao ―dos primeiros venezuelanos a migrarem para o Brasil —, o abrigo tem cerca 450 integrantes desse povo vivendo ali. Seis nasceram em Pacaraima. “Eles falam espanhol, português e Warao”, orgulha-se Teolinda Moralera Warao, uma das seis lideranças do seu povo. Os líderes dividiram o espaço para garantir a organização. Teolinda é responsável por 23 famílias. Duas das crianças brasileiras são seus netos. Williaimis e Lucas, filhos de seus filhos, Eliaimis e Cruz Antonio.

O espaço é um enorme galpão adaptado à cultura Warao com apoio da Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados) e das Forças Armadas. Dormem em redes estendidas ao longo do espaço, divididos por famílias. Plantam parte dos seus alimentos e têm matéria-prima para desenvolver artesanato e artefatos domésticos, como bandejas e bolsas, da mesma forma que o faziam em sua terra, no município Antonio Díaz. Teolinda fazia seu trabalho e ia vender na cidade o artesanato da sua comunidade, o que ajudava no sustento da família. Também cantava e fazia danças típicas de sua cultura para apresentar a turistas. Vivia numa casa própria com a sua família.

Teolinda Moralera no abrigo Janokoida, onde refugiados venezuelanos indígenas da etnia Warao vivem. Victor Moriyama

Mas os dias foram ficando cada vez mais difíceis, com dinheiro escasso e poucos recursos para sobreviver. Um dia sua casa desabou, quase como um prenúncio do que estaria por vir. O mais trágico dessa realidade se abateu sobre a família de sua filha, Celenia. Um surto de cólera chegou a sua região e matou crianças e idosos. A cólera levou sua neta, Celiaini. A filha ficou gravemente doente, com os pulmões afetados. “Vim desesperada para cá há três anos”, relembra. Saiu de sua cidade de carona junto com o esposo e seus outros dois filhos.

Chegaram a San Félix, e de lá partiram para Santa Elena, fronteira com Pacaraima. Contaram com apoio da paróquia da cidade e da Acnur para salvar Celenia, que felizmente se recuperou. Chegaram com a roupa do corpo e viveram de doações de comida até que se integraram no abrigo. “Eu vim para salvar meus filhos”, diz ela, que não vê a hora de a pandemia acabar para ganhar seu sustento. “Sou uma mulher trabalhadora, quero acabar de contar minhas histórias, cantar minha música”, diz. Teolinda se diz feliz hoje no abrigo Janokoida. Sabe que não é o ideal, mas se ancora na perspectiva de uma vida melhor para os netos. “Vim para que eles tenham futuro. Aqui há saúde e educação.”

Viver no Brasil: coração partido

Nem todos vivem a mudança para o Brasil com tanto desprendimento. A saudade dói, a solidão machuca, e a sensação de deslocamento diante de uma cultura diferente bate forte muitas vezes. O começo em outro país em busca de oportunidades para se sustentar também deixa marcas. Edward, vendedor da loja C&A num shopping em Boa Vista, sabe que já viveu momentos muito mais duros do que os atuais. Chegou há dois anos, sem nenhuma perspectiva, mas com o firme propósito de se estabelecer. Vivia com um primo e fazia pão para vender. Muitas vezes não conseguia. Distribuía então nas praças onde seus conterrâneos, tentando a mesma sorte que ele, dormiam ao relento. Hoje, com carteira assinada, sabe que superou dificuldades. “Mas é difícil, tem dias que é muito difícil”, diz ele, que tem sua família na Venezuela. Ao mesmo tempo em quer ficar para construir sua nova vida, quer voltar ao seu país.

A pandemia e a fronteira fechada desde março acentuam a angústia. Embora Boa Vista esteja perto da fronteira com a Venezuela, a perspectiva de não poder se mover deixa mais evidentes a distância e a saudade, sem a possibilidade de livre trânsito. Para muitas famílias, há um coração dividido desde que atravessam a fronteira. Por um lado, há uma gratidão por superar necessidades básicas e resgatar a dignidade do lado de cá. Por outro, uma renúncia dolorosa. “Nunca na vida eu pensei que sairia da Venezuela, ainda mais nessas condições”, diz Samired Belandria, de 34 anos, que vivia em Caracas até 2018. No dia 24 de outubro daquele ano reuniu forças para vir ao Brasil cuidar da saúde. Samired teve câncer na tireóide e precisava tomar um hormônio diariamente para lidar com o pós-operatório. Mas ele não estava disponível em sua cidade. E quando havia, o preço era proibitivo. “Eu estava muito mal”, lembra Samired, hoje instalada em um apartamento em São Paulo, onde mora com seu filho e o namorado, que chegou este ano.

Com a Venezuela de mal a pior, decidiu seguir o conselho da sua irmã, Saray, que havia vindo para o Brasil um ano antes com o marido e a filha. “Ela me dizia que aqui o remédio era barato e era possível até consegui-lo de graça no serviço público”, lembra ela. Salvar sua saúde seria a razão mais lógica para seguir viagem. Havia também uma expectativa de resgatar um pouco de segurança que ficou no seu passado. “Viver mais ou menos dignamente... às vezes não havia gás, ou não havia luz”, recorda.

Veio sozinha de ônibus com o filho, Samir, então com 10 anos, seguindo a rota trilhada um ano antes pela sua irmã. Chegou a Pacaraima, onde passou os primeiros 15 dias, ficou um tempo num abrigo para refugiados em Boa Vista, até chegar a São Paulo, para se instalar num abrigo religioso da Missão Paz, no centro da cidade. Conheceu inúmeros estrangeiros como ela, e depois de quatro meses conseguiu um trabalho, em que está até hoje. É redatora de uma agência de publicidade estrangeira. Alugou um apartamento, onde vive com Samir e, há poucos meses, com seu namorado.

Com 12 anos, o filho Samir se sente à vontade em seu novo país. “Às vezes ele sente falta da família, mas não é algo que o afete tanto”, diz a mãe. Samired, por outro lado, se frustra por ter se visto desgarrada de seu país. “Hoje não tenho a esperança de voltar. Mas penso voltar um dia”, diz ela.

― Ainda que demore cinco ou dez anos?

― Ainda que demore o tempo que demorar.

Sua família está partida ao meio na geografia do continente. Em Monagas, onde nasceu, estão seu pai e sua mãe, e dois irmãos. Agora, no Brasil, estão Samired, a irmã Saray, e outros três irmãos. Todos trabalham. O sonho de Samired é que toda a família esteja perto novamente. Só não sabe se lá ou aqui.

Crescer no Brasil

Samuel Cazorla também sonha em trazer seus pais, que ficaram em Valencia. Mas, aos 29 anos, se sente feliz por ter realizado seu principal objetivo no Brasil. Há três anos começou do zero a barbearia Samuel Barber Shop, em Boa Vista, que faz entre 30 a 50 atendimentos por dia. Saiu de sua cidade há três anos em busca de espaço e incentivo para montar sua barbearia. Apesar da pouca idade, Samuel tem a obstinação dos empreendedores. Aos 17, já aprendia o ofício em sua cidade natal e aos 22 montou seu pequeno negócio em Valencia, mesmo ano em que se casou. Um dia, um amigo de infância foi cortar o cabelo com ele e contou que estava de mudança para a capital de Roraima. “Ele me convidou para vir, e eu fiquei um mês pensando”, recorda. A crise, conta, não era tão aguda. Mas sabia que o tamanho do sua ambição não cabia ali.

O venezuelano Samuel, que abriu uma barbearia em Boa Vista.Victor Moriyama (Victor Moriyama)

Decidiu arriscar a sorte vindo sozinho. Instalou-se junto com o amigo, que o convidou ao Brasil, num sítio atrás da penitenciária de Boa Vista por duas semanas. Bateu perna, mesmo sem falar português, até conseguir emprego numa barbearia. “Fiquei seis meses só guardando dinheiro”, conta Samuel, que economizava no transporte ―só andava a pé, até mesmo quando esteve no sítio, que ficava a 17 km do seu trabalho― e na alimentação: arroz com calabresa diariamente.

Foi então buscar sua esposa, seu filho, além de dois irmãos. Sua autoconfiança acabou encantando um brasileiro que o convidou para ser sócio numa barbearia própria. Entraram juntos com um pequeno capital, mas ali viveu seu primeiro tropeço. Confiou nos acordos na base do fio do bigode e não assinou nenhum documento. Quando o sócio mudou alguns combinados, ele decidiu que era hora de mudar. “Foi até cruel no começo, ver que a palavra não valia nada aqui se não houver um papel assinado”, lamenta ele, que teve um segundo filho, nascido em Boa Vista. “Mas foi a ferramenta para me tornar o que sou”, diz Samuel que emprega quatro barbeiros. Todos venezuelanos casados com venezuelanas. Prosperou. Primeiro comprou uma bicicleta para se locomover. Depois, uma moto. Em seguida, um carro. E agora já comprou sua casa própria. Também aumentou a família. Há um ano e meio nasceu Said, seu filho brasileiro.

A barbearia tem estilo. Faz cortes modernos e Samuel já sonha em dar cursos profissionalizantes para outros venezuelanos que cheguem ao Brasil. Ou até abrir franquias para outras cidades. “Já tenho registro em território nacional”, comenta feliz, por ter “exatamente o que eu sonhava quando estava na Venezuela”. Mas Samuel não esconde algumas dores. Sentiu preconceito por ser venezuelano, ainda mais em Boa Vista, onde muitos conterrâneos como ele tentam sobreviver. Há muitos venezuelanos pedindo dinheiro nas ruas e por vezes alguns cidadãos locais não escondem seu despeito. Mas são minoria, atesta o próprio Samuel. “Uma vez uma pessoa entrou aqui e quando percebeu que éramos venezuelanos gritou que não queria que o tocássemos. Falei para ele ir embora, e tirou uma arma.” Depois da ameaça, foi embora. Foi tudo um susto. “Mas 90% dos que frequentam o salão são brasileiros”, conta.

Na balança de um imigrante, os prós estão ganhando pelas contas de Samuel. “Este é um momento muito bonito que estou vivendo”, diz o jovem empresário. A Venezuela, por ora, é seu passado. “Meu presente é o Brasil”, conclui.

― E o futuro? Ficaria aqui até morrer?

Nesse momento emudece. Pensa, e encontra respaldo em seu empreendimento.

― Volto quando minha marca se tornar internacional. Hoje tenho duas casas. Aqui e na Venezuela. Quando não estiver mais bom aqui, volto para lá, e quando não estiver bom lá, volto para cá.

Morrer fora da Venezuela?

A ideia de um futuro eterno no Brasil assusta a maioria dos venezuelanos ouvidos nesta reportagem. Mas alguns já assimilaram uma ruptura difícil de ser restaurada. “Toda esta situação política e econômica nos fez perder não só as coisas materiais, mas os afetos”, diz Raúl Escalona. Sua esposa, Elvira, concorda. “Familiares podemos ver por videochamadas”, diz ela.

– Mas não temem morrer no Brasil?

– Não, responde Elvira, sem pestanejar.

— A morte não é uma situação geográfica, completa Raul, sereno. “A esta idade a morte não é um susto, é uma realidade que está aí”, reflete.

SAO PAULO, BRASIL, OUTUBRO 2020: Raul e sua esposa são Refugiados Venezuelanos vivendo em São Paulo, Brasil. (Photograph: Victor Moriyama)Victor Moriyama (Victor Moriyama)

O confronto com a ideia também ronda a vida de imigrantes muito mais jovens que Raul. Stefani, que passou um ano e meio vivendo em abrigos da Operação Acolhida em Boa Vista no Brasil, também não teme viver para sempre aqui. “Lá não há nada”, constata a jovem de 26 anos, casada com Pedro e mãe de cinco filhos, que estava prestes a se mudar para São Paulo no final de outubro.

Dorianny também aposta no Brasil pelos seus filhos. Veio de ônibus com o marido, pai dos cinco filhos nascidos lá. Viveram em Pacaraima e depois em Boa Vista. Mas se separaram. O pai arrumou emprego em Manaus e a deixou com os filhos no abrigo. À espera de novas oportunidades, se relacionou com outro venezuelano refugiado. Assim nasceu Joel. “Sou mãe solteira”, diz Dorianny, usando uma expressão que quebra sua voz e parece pesar tanto quanto o fato de se ver obrigada a deixar seu país e cuidar sozinha das crianças em outro país. Ver-se só, ou solteira, como diz ela, parece uma traição do destino para Dorianny. Mas, apesar da dor, não tem dúvidas sobre seu futuro. O Brasil é onde quer ver seus filhos crescer. “Se meus filhos se acertarem aqui, não acredito que eu volte. Isso não me assusta.”

Esta reportagem é resultado do laboratório de produção de jornalismo “Refugiados e Migrantes” e faz parte da série de publicações realizadas com apoio da Fundação Gabo e Acnur

Inicialmente este texto informava que viviam mais de um milhão de venezuelanos no Chile mas a informação correta é de em torno de meio milhão.

Mais informações

Arquivado Em