Batalhão antirracista promove consciência negra e diversidade religiosa na PM da Bahia
Fundado há 15 anos com intuito de valorizar religiões de matriz africana na Polícia Militar, Nafro oferece suporte emocional a policiais negros e ministra palestras sobre racismo à corporação
Thais Trindade é capitã da Polícia Militar da Bahia, mas lá atrás, ainda adolescente, queria ser comunicadora. Foi desaconselhada pela mãe, que, prevendo dificuldades para a colocação de uma mulher preta e candomblecista no mercado do jornalismo, a convenceu a buscar outra carreira. Aos 18 anos, precisando trabalhar e contribuir com o sustento da família, ela passou no curso da PM e acabou admitida em 2005, ano do surgimento do Núcleo de Religião de Matriz Africana (Nafro), um grupo de promoção à diversidade racial e religiosa dentro da corporação baiana. “Eu nasci com o Nafro na polícia”, conta a oficial. Uma iniciativa cada vez mais importante diante da situação de racismo cotidiano no Brasil, escancarada novamente com o assassinato de um cliente negro em uma loja do Carrefour em Porto Alegre, na véspera do dia da Consciência Negra.
Hoje, aos 33 anos, Thais se tornou coordenadora do núcleo, fruto da inquietude do sargento Tata Eurico Alcântara. Contrariado com a falta de espaço para celebrações fora do espectro cristão, ele reuniu uma tropa de policiais religiosos de matrizes africanas e levou a reivindicação ao Comando Geral pela abertura a crenças diversas. “Minha turma foi a primeira que se formou com a inclusão do candomblé no Baile das Espadas”, lembra Thais, em alusão à cerimônia inter-religiosa de formatura dos novos soldados, em que foi abençoada com a espada de Ogum.
Mais do que um núcleo sobre religião, o Nafro se converteu em um espaço de incentivo à diversidade racial e desenvolvimento de projetos antirracistas na PM. Uma das áreas de atuação é a valorização identitária, por meio de debates internos, para que os agentes negros se sintam identificados com suas origens étnicas. “Tentamos fazer com que o policial se perceba como parte da sociedade, buscando gerar empatia. A partir dessa perspectiva, ele tende a mudar conceitos, inclusive sobre a necessidade de repensar ações violentas”, explica Thais. Atualmente, o grupo elabora um censo de toda a corporação no Estado, a fim de mapear a quantidade de oficiais negros e religiosos de matrizes africanas.
Outra frente de intervenção visa preservar a saúde mental e espiritual dos policiais. Em Salvador, cerca de 30 agentes —entre religiosos e simpatizantes— frequentam as reuniões de acolhimento e livre manifestação da crença. Além dos encontros semanais, o Nafro conseguiu ampliar o alcance das discussões sobre racismo, representatividade negra, cultura africana e intolerância religiosa, levando-as para a disciplina de direitos humanos no curso de formação de policiais e, também, para atividades culturais e palestras nos batalhões. No Carnaval, por exemplo, o núcleo desenvolve o Observatório da Discriminação Racial, orientando oficiais de plantão a respeito de como agir em ocorrências de injúrias e ofensas racistas. Durante a semana da Consciência Negra, promovou a campanha “Brasil pós-abolição” para rememorar os desafios enfrentados pela população negra depois do fim da escravidão - um ponto que segue extremamente atual, como mostram os acontecimentos no supermercado do Rio Grande do Sul.
Apesar do apelo antirracista, Thais explica que o objetivo do Nafro não é punir policiais que eventualmente cometam racismo durante uma abordagem —atribuição da Corregedoria da Polícia Militar—, mas sim realizar um trabalho preventivo e de sensibilização dos colegas para as pautas raciais. Em fevereiro, um soldado foi filmado agredindo um adolescente negro enquanto o revistava no subúrbio da capital baiana. Na ação, ele ainda proferiu insultos homofóbicos e racistas contra a vítima, que usava penteado black power.
O agente foi deslocado para funções administrativas e processado pela Corregedoria. “A gente quer que esse tipo de episódio não ocorra mais. Levamos uma palestra educativa ao batalhão e reforçamos nossas campanhas internas”, diz a coordenadora do Nafro, que também atua em situações em que policiais são vítimas de racismo, como no caso de uma escrivã do Tribunal de Justiça da Bahia que chamou um tenente de “macaco”, em setembro. “Prestamos assistência psicológica e assessoria jurídica ao policial.”
Para Thais, ter chegado à liderança do grupo é motivo de orgulho, assim como ao posto de capitã, mesma patente exercida pela mulher que lhe serviu de referência ao iniciar a carreira na polícia: Major Denice Santiago, que foi candidata a prefeita de Salvador pelo PT na última eleição e ajudou a fundar o Nafro. “Meu processo de descoberta identitária aconteceu na polícia. Foi um divisor de águas para mim entrar na sala da capitã e enxergar outra mulher preta em posição de comando, rodeada de vários orixás”, conta Thais, utilizando uma frase da ativista Angela Davis para resumir seu sentimento de gratidão. “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela. E hoje eu estou aqui, ocupando a posição da mulher que me inspirou.”
O Nafro, por sua vez, virou inspiração para iniciativas semelhantes em outras instituições, tal qual o Núcleo de Estudos das Religiões Afroindígenas (Neafro), instalado em quartéis das Forças Armadas. Após completar 15 anos em outubro, o grupo baiano espera seguir espalhando sementes e atraindo novos integrantes, sob o comando de uma mulher negra que encontrou a realização na causa antirracista. “Ser policial não era o meu sonho. A PM surgiu em minha vida como uma necessidade”, afirma a capitã. “Mas agora posso dizer que sou extremamente realizada na polícia, porque ela se transformou no meu instrumento de comunicação.”
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