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Negritude, o time que arrastou o movimento ‘black power’ para os campos de várzea

Fundado por jogadores negros há quatro décadas, clube da zona leste paulistana chegou a ter nome censurado na época da ditadura militar sob a alegação de suscitar conflitos raciais

Negritude Futebol Clube racismo varzea
Formação do Negritude FC no primeiro Desafio ao Galo, em 1986.Divulgação

Uma empatia instantânea. É assim que José Roberto Andrade define o primeiro encontro de seis jovens negros que, em 10 de outubro de 1980, fundariam o Negritude Futebol Clube. Eles se conheceram em uma das quadras da Cohab I, conjunto de habitação popular inaugurado pelo então governador Paulo Maluf no bairro Artur Alvim, zona leste de São Paulo. Juntos, formaram um time na modalidade “10 minutos ou dois gols” e, naquele dia, não foram vencidos por nenhuma outra equipe. A amizade se estendeu para fora da quadras, onde passaram a frequentar os bailes blacks da região. “Daí surgiu o Negritude”, conta Zé Roberto.

Tanto no escudo do time quanto no uniforme, estamparam um rosto de black power. Embora todos os fundadores fossem negros, a primeira formação no futebol de campo também contava com jogadores brancos. Toda a estética do Negritude, que, de alguma forma representava uma bandeira racial, soava como um prenúncio transgressor na época da ditadura militar, em que delegacias de costumes patrulhavam o movimento negro sob constante suspeita de ameaçar a ordem social. Sofrendo com o estigma, o nome do time acabou rejeitado pela Federação Paulista de Futebol presidida pelo deputado estadual Nabi Abi Chedid, filiado à ARENA, partido de sustentação do regime ditatorial. Após ter seu registro negado por suposta alegação de evitar embates raciais, o jeito foi atuar provisoriamente como Alvinegro Futebol Clube.

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A equipe ganha projeção a partir de 1986, um ano depois da redemocratização do país, quando disputa pela primeira vez o tradicional Desafio ao Galo e, enfim, consegue o reconhecimento oficial do nome Negritude. O preconceito, porém, ainda era um barreira. “Uma vez fomos jogar na Mooca e, na hora que o nosso ônibus chegou no campo deles, ouvimos todo tipo de piadinha preconceituosa. Infelizmente, tivemos de nos acostumar a enfrentar esse racismo institucional”, diz Zé Roberto. Jogo limpo, a partir de uma conduta esportiva sem violência, foi a forma encontrada pelos fundadores de desconstruir prejulgamentos sobre o time. “Já houve caso de adversário que nos pediu desculpas depois de reforçar a segurança no estádio por medo da gente, um clube dos negros. Nunca criamos confusão. Somos da paz.”

Outra maneira de marcar posição contra o racismo é por meio de reverências a grandes personalidades negras da política e do esporte. Figuras como Martin Luther King, Malcolm X e Nelson Mandela ilustram as camisas do Negritude, sendo o líder sul-africano seu principal símbolo. Nos jogos mais importantes, a torcida alvinegra estende uma faixa de 30 metros com seu rosto e o lema que o time tenta praticar em campo: “Mandela, nobre guerreiro da paz”. Recentemente, o clube também lançou uniformes em homenagem ao ex-jogador de basquete Kobe Bryant e ao ator Chadwick Boseman, intérprete de Pantera Negra nos cinemas, que morreram este ano. “A postura antirracista está em nossa origem, é algo natural para nós. Não abrimos mão de levar essa mensagem ao futebol amador.”

Embora nunca tenha competido em ligas profissionais, o Negritude serviu de vitrine para jogadores que fizeram sucesso em clubes grandes, como o artilheiro Dodô, e até carreira internacional. Heberty Fernandes, filho de Zé Roberto, deu os primeiros passos no time fundado pelo pai, onde começou como gandula, e hoje atua no futebol tailandês. No Negritude, aprendeu não apenas a jogar bola, mas também a lutar contra o racismo. Antes mesmo da morte de Boseman, já comemorava gols imitando o super-herói Pantera Negra, inclusive usando sua máscara e reproduzindo a saudação de wakanda. “Devo muito ao Negritude e ao terrão”, diz o atacante ao exaltar as raízes varzeanas.

O campo do Negritude substituiu a terra pelo gramado sintético. Sobreviver numa várzea cada vez menos amadora é o grande desafio. O clube tem apenas 14 sócios-torcedores, que contribuem mensalmente com 50 reais. “Não dá pra pagar nem as contas de água e luz”, brinca Zé Roberto. A principal fonte de arrecadação é a Copa Negritude, que reúne mais de 150 times da periferia e jogadores de 8 a 80 anos, mas precisou ser adiada este ano por causa da pandemia. O torneio promovido há duas décadas virou um dos mais tradicionais de São Paulo. Entretanto, só conta com patrocinadores de bairro e depende do valor de inscrição pago por cada equipe participante. “Para o marketing de algumas empresas, o negro desvaloriza o produto. Outros campeonatos de várzea tiveram mais facilidade de arrumar um patrocínio forte.”

Como presidente e técnico do Negritude, Zé Roberto tem saudades da época em que ele e os amigos Álvaro, Aguinaldo, Douglas, Jair e Osvaldo eram vistos como uma espécie de Globetrotters da Cohab I. “A gente só não fazia chover.” Aos 58 anos, 40 deles dedicados ao clube, viu muita coisa mudar na comunidade ao longo desse tempo. Sua equipe precisa buscar jogadores em bairros e regiões distantes, pois perde seus melhores talentos para agremiações de maior poderio financeiro que brotaram na zona leste. Outra mudança atinge a nova geração. Atualmente, o time infantil do Negritude abriga mais garotos brancos do que negros, algo inimaginável no auge da velha guarda do clube que deu impulso ao movimento black power nos terrões.

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