O técnico brasileiro que quer realizar o sonho dos meninos resgatados na Tailândia
Alexandre Gama comanda o Chiang Rai United, que oferece um estágio ao treinador sobrevivente e quer acolher os jovens jogadores no clube
Foram pouco mais de duas semanas enclausurados sob as profundezas inundadas da caverna Tham Luang, que fica em um distrito de Chiang Rai, no extremo norte da Tailândia. Nos dias que passaram à espera do resgate, os 12 meninos do time amador Javalis Selvagens estiveram completamente isolados do futebol, mas, em pensamento, o sonho de se tornarem jogadores profissionais ajudou o grupo a superar a fome, a falta de oxigênio e a escuridão, quase um quilômetro abaixo da superfície da montanha. Agora, depois de receberem alta do hospital nesta quarta-feira, eles podem retomar seu objetivo nos gramados com a ajuda de um brasileiro, o técnico Alexandre Gama, que comanda o clube da cidade na primeira divisão tailandesa.
O Chiang Rai United se prontificou a incorporá-los em suas categorias de base. Miti Tiyapairat, um milionário de 32 anos que fundou a equipe em 2009, também promete bancar os estudos dos garotos até completarem a faculdade. “Soubemos que eles têm o sonho de seguir carreira no futebol e queremos ajudá-los”, conta Gama ao EL PAÍS. “O país inteiro se comoveu com a história. Como somos o único clube da região a disputar a divisão principal, nada mais justo que abraçar os meninos nesse momento. Além treinarem na base, a gente espera que eles entrem em campo com nosso time. Temos seis jogadores da seleção tailandesa, ídolos nacionais que podem servir de inspiração para eles.”
Alexandre Gama dirigiu equipes do Rio de Janeiro, incluindo o Fluminense, e trabalha desde 2014 na Tailândia, onde sagrou-se bicampeão nacional com o Buriram. Chegou no ano passado ao comando do Chiang Rai, que tem como artilheiro o centroavante Bill (ex-Botafogo e Corinthians). O treinador relata que a rotina do clube foi alterada durante as operações de busca e resgate dos garotos. Um deles, Chanin Wiboonrungrueng, o Titan, de 11 anos, é sobrinho do massagista da equipe. “Desde quando surgiu a notícia de que o grupo tinha se perdido na caverna, a cidade ficou agitada. A cada dia que passava sem saber do paradeiro deles, a gente ia perdendo as esperanças.”
Como o aeroporto fica bem perto do centro de treinamento do Chiang Rai, os jogadores acompanhavam com aflição a chegada de mergulhadores e comitivas internacionais para ajudar na busca. Em uma das partidas, o brasileiro Victor Cardozo, capitão do time, prestou homenagem aos garotos até então desaparecidos. “Foi o gol mais importante da minha carreira”, resumiu o zagueiro, emocionado. Três dias depois, eles foram encontrados por dois mergulhadores britânicos, ilhados em um bolsão de ar a aproximadamente três quilômetros da entrada da caverna. “Essa notícia alegrou os corações de todo mundo”, conta Alexandre Gama. “Pela primeira vez em uma semana, os jogadores voltaram a sorrir nos treinamentos.”
Mas a alegria não durou muito tempo. Além das chuvas que dificultavam a complexa engenharia para o resgate, a Tailândia sofreu com a morte do mergulhador Saman Kunan, que ficou inconsciente enquanto fazia o trajeto para levar suprimentos ao grupo no interior da caverna. “Foi um golpe duro. Ali a gente quase entregou os pontos, porque parecia ser impossível resgatá-los. Quem mergulhava, voltava desanimado. A água era tão turva quanto um copo de café com leite. Sem contar que, nessa época do ano, chove em 30 minutos o previsto para três dias”, diz o técnico brasileiro, que costuma praticar mergulho nas horas vagas, mas nunca visitou a caverna Tham Luang.
Durante a mobilização pelo resgate, tailandeses deram inúmeras mostras de solidariedade. Moradores da região compravam comida para os trabalhadores na caverna e os familiares dos meninos. Massagistas se desdobravam ao tentar aliviar o estresse e o cansaço dos profissionais envolvidos na operação, enquanto lavadeiras cuidavam das roupas sujas de lama. Tanto elas quanto os condutores de tuk-tuk, uma espécie de mototáxi típico do Sudeste asiático, que transportavam voluntários para o alto da montanha, não cobravam por seus serviços. “O povo tailandês é muito solidário e unido”, afirma Alexandre Gama. “Esse tipo de gentileza não acontece só nas horas difíceis. Eles são assim no dia a dia. Eu fui muito bem recebido no país. Até me espantei no dia em que um vizinho cortou a grama do meu jardim.”
Após três dias de operação, o grupo foi resgatado com sucesso. “Um trabalho heroico”, descreve Gama. Sua grande meta é levar o Chiang Rai à conquista da Liga dos Campeões asiática, mas, a partir do episódio que sensibilizou o mundo, passa a compreender uma missão humanitária. Por sugestão dele, o clube também vai convidar o treinador dos Javalis Selvagens para um estágio com o brasileiro. Ekkapol Chantawong, o Ake, de 25 anos, foi o último a ser retirado da caverna. Ao longo dos 17 dias de clausura, ele cuidou dos 12 meninos e os transmitiu técnicas de meditação que aprendeu em uma década como monge budista. Sem comida, dispondo apenas de gotas de água limpa que escorriam pelas pedras, Ake cumpriu à risca o popular mandamento do budismo Sanuk, Sabai, Saduak – “seja feliz, permaneça sereno e contente-se com aquilo que a vida te oferece”. Uma lição para Alexandre Gama. “O intuito é trocar ideias. Mais do que ensinar, quero aprender. A capacidade de resistência e a tranquilidade que ele demonstrou em uma situação adversa são algo fora do comum.”
Depois de uma semana sob cuidados no hospital, o grupo deve se submeter em breve a um retiro espiritual como forma de retribuição pelo “renascimento”. Além das portas abertas no Chiang Rai, eles já receberam convite para assistir a um jogo do Real Madrid no Santiago Bernabéu. Também foram convidados para a final da Copa do Mundo, na Rússia, mas não puderam comparecer por restrições médicas. Alexandre Gama espera contribuir para que pelo menos um deles, quem sabe, possa ir além no futuro e disputar um inédito Mundial representando a Tailândia. “O futebol se desenvolveu muito por aqui nos últimos anos. A seleção tem um time jovem, que conseguiu avançar à fase final das Eliminatórias pela primeira vez. Acredito que em pouco tempo os tailandeses estarão numa Copa.”
Gama tem status de ídolo no país. Já foi parado em uma blitz na rua porque os policiais queriam tirar fotos com ele. No Brasil, ficou marcado pelo desentendimento com Romário. “O cara entrou no ônibus agora, não está nem em pé e já quer sentar na janela”, reclamou o Baixinho na época em que o técnico era interino no Fluminense. Na Tailândia, porém, nunca entrou em atrito com jogadores. “Aqui eles são mais respeitosos.” Respeito que Gama pretende estender aos sobreviventes da caverna quando tiver a oportunidade de encontrá-los. “Não vou perguntar nada sobre o que aconteceu no período em que eles estiveram lá dentro. Meu interesse é apenas saber como posso ajudar para que continuem sonhando com o futebol.”
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