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“Para que Bolsonaro seja julgado em Haia é preciso mostrar a intenção de crime contra a humanidade”

Responsável por pedir a prisão de Kadafi quando comandou a promotoria do Tribunal Penal Internacional, Luís Moreno Ocampo avalia risco de presidente ser julgado por conduta na pandemia e pondera: "Nem tudo pode ser resolvido pelo direito penal. Por isso pessoas votam. O Congresso pode remover líderes do poder"

Luís Moreno Ocampo, ex-promotor-chefe do Tribunal Penal Internacional (TPI) em Haia, Holanda.
Luís Moreno Ocampo, ex-promotor-chefe do Tribunal Penal Internacional (TPI) em Haia, Holanda.Ralph Alswang (Ralph Alswang)
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O advogado argentino Luís Moreno Ocampo, primeiro promotor-chefe do Tribunal Penal Internacional (TPI) em Haia, Holanda, avalia que seria preciso demonstrar que houve um plano de usar o coronavírus como ferramenta para exterminar toda ou parte da população para que o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, seja investigado e julgado pela corte internacional que pune tiranos por crimes contra a humanidade. Bolsonaro já foi denunciado ao TPI em três queixas, por sua conduta no enfrentamento da pandemia do coronavírus. “A lei diz que crimes contra a humanidade pressupõem que tenha ocorrido uma política para cometer um ataque de larga escala ou sistemático. Precisa ter tido um plano”, explicou.

Ele evitou avaliar ações específicas de Bolsonaro, como o veto da lei que tornava obrigatório o uso de máscaras em locais públicos. De 2003, quando a corte entrou em funcionamento, a 2012, último ano de seu mandato, Ocampo conduziu investigações do TPI em sete países e pediu ordens de prisão, decretadas pela corte, contra Muamar al Kadafi, o ditador da Líbia morto em 2011, e Omar al-Bashir, o ditador do Sudão deposto e preso em 2019. De Malibu, na Califórnia, onde escreve um livro sobre sua atuação em Haia, ele conversou com o EL PAÍS.

Pergunta. Como o senhor observou o alerta feito pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, a Bolsonaro de que ele pode ser julgado por genocídio em Haia devido a sua conduta na pandemia do coronavírus?

Resposta. Não estamos prontos para entender exatamente como o mundo está reagindo e por que alguns países vão bem enquanto outros vão mal. Estamos aprendendo isso enquanto acontece. Sobre recorrer ao Tribunal Penal Internacional, a Corte exige que seja provada a intenção de cometer um crime contra a humanidade. Para ter um crime julgado em Haia, precisa ter sido demonstrada a intenção. Genocídio é provado pela intenção de destruir um grupo. Crimes contra a humanidade pressupõem uma política para conduzir um ataque contra a população. É preciso provar a intenção. A pandemia é uma oportunidade de pensar como devemos ajustar a arquitetura legal e de pensar como devemos usar a tecnologia para resolver esses problemas.

P. Como ficaria demonstrada a intenção de cometer um crime contra a humanidade?

R. A lei diz que crimes contra a humanidade pressupõem que tenha ocorrido uma política para cometer um ataque de larga escala ou sistemático. Precisa ter tido um plano. Isso precisa ser provado. É uma situação muito excepcional. Nem tudo pode ser resolvido pelo direito penal. Por isso pessoas votam. O Congresso pode remover líderes do poder. O controle pela lei penal é o último. Se tiver um plano de usar o coronavírus para exterminar populações, é diferente. É preciso provar um plano de exterminar a população. Não é suficiente negligência ou opinião pública divergente.

P. De que maneira esses planos foram provados em outros casos?

R. No caso de [Adolf] Eichmann [líder nazista julgado em Jerusalém pelo holocausto], foi necessário provar que houve uma reunião secreta para adotar a solução final [plano nazista de extermínio de judeus]. Na Argentina, quando condenamos os generais, revelamos os planos secretos deles. No caso de [Omar] al-Bashir, ele deu instruções oficiais para as Forças Armadas e protegeu os executores. Para abrir um processo criminal por genocídio dizendo que a pandemia foi usada como arma ou ferramenta, é preciso demonstrar que houve um plano nisso.

P. Isso precisa ser demonstrado mesmo para a abertura de uma investigação em Haia?

R. Os promotores do TPI precisam ter base razoável para acreditar que o genocídio ocorreu para começar uma investigação.

P. O que você achou dessa possibilidade de julgamento em Haia ter sido mencionada por um ministro da mais alta corte do Brasil?

R. O ministro soube atrair atenção para o problema. Marcou sua posição.

P. Como você avalia a ação de líderes que se igualam a Bolsonaro no trato da pandemia, como os do México, Nicaraguá, Bielo-Rússia e Turcomenistão?

R. Como promotor do TPI, monitorei líderes que cometeram crimes para ficar no poder, como Omar al-Bashir, e outros que não cometeram. Há diferenças. Desde o século XVIII aprendemos a preservar direitos em nível de Estados nacionais, mas agora no século XXI precisamos preservar os direitos de uma maneira que não estamos preparados. Celebramos inovações tecnológicas, mas faltam inovações em arquiteturas institucionais. A pandemia mostrou que precisamos dessas inovações. Não precisamos ser um Estado global, mas temos que aprender a usar tecnologias para melhorar o modo como cada pessoa se protege e como cada nível de autoridade possa fazer algo. Isso é novo. Não sabemos fazer isso. Pessoas acham que um líder vai resolver isso. Por isso, populistas ascendem ao poder.

P. Por que você acha que temos um arcabouço institucional tão fraco?

R. O voto não é suficiente para garantir direitos para todo mundo. Temos que continuar criando ferramentas para proteger pessoas. Ainda estamos vivendo no século 18. Temos que ajustar e melhorar instituições. Do contrário, pessoas vão recorrer a líderes autoritários. Os iPhones mudam a cada ano. Mas leva séculos para instituições mudarem. Em 1873, foi a primeira vez que propuseram a criação de uma corte penal internacional e isso levou 130 anos pra implementar. Há um desafio de como colocar novas tecnologias a serviço das pessoas e não dos governos. As tecnologias estão matando melhor e interferindo em eleições. Podemos colocar tecnologias a serviço das pessoas, incluindo dos mais pobres? Esse é o desafio.

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