João Doria: “Se houver um aumento de contágios, nós vamos recuar”
Governador de São Paulo se apega à orientação do seu comitê de saúde para atenuar quarentena. Repete críticas a Bolsonaro e defende a PM paulista, que “não é violenta, é eficiente”, diz ele
O Brasil identificou logo após o Carnaval o primeiro caso de coronavírus da América Latina, um paciente do hospital Albert Einstein, na cidade de São Paulo. Foi naquele 26 de fevereiro, uma quarta-feira de cinzas, que o governador de São Paulo, João Doria, criou um comitê de saúde. O apego à ciência é a bandeira da gestão da pandemia do governador mais poderoso do Brasil –o Estado representa um terço do PIB, com 46 milhões de habitantes— o que lhe garantiu recuperar parte da popularidade. No início de março 74% afirmavam que tinham uma imagem negativa do governador, contra 54% atualmente, segundo a pesquisa Atlas Político. Doria se impôs como o líder informal da frente forjada com seus homólogos para gerir uma crise sanitária que o presidente Jair Bolsonaro despreza, ainda que ela já tenha causado mais de 30.000 mortes e mais de meio milhão de contágios, num panorama que registrou número recorde nesta terça-feira, com o pico de 1.262 novos óbitos contabilizados nas últimas 24 horas. São Paulo, que já representou a maioria dos casos brasileiros de covid-19 – em 3 de abril o Estado somava 219 mortes e o Brasil, 359 —hoje representa quase um quarto (7.994 nesta terça, contra 31.199 no país). Por isso, o governador assume a reabertura gradual do comércio que tanto adiou para achatar a curva da pandemia.
Nascido em São Paulo há 62 anos, Doria viveu dois anos em Paris quando seu pai, que era deputado, foi exilado durante a ditadura. Depois de se alinhar estreitamente com o então candidato Jair Bolsonaro, um fã explícito dos tempos do regime militar durante toda sua carreira, o governador de São Paulo transformou-se em seu principal antagonista. A mudança se deu, segundo Doria, depois de Bolsonaro mostrar seu estilo autoritário com três meses no poder. Hoje Doria é acusado de oportunista pelo presidente e seus seguidores. É nesse fio da navalha que o governador trafega neste momento da pior crise sanitária e política que tomou o país, que incluem gritos por um golpe militar. “São Paulo será um bastião de resistência para a preservação da democracia no Brasil”, garante.
Pergunta. A OMS alertou que o pico da pandemia ainda não chegou ao Brasil nem ao resto da América do Sul. Ainda assim, alguns Estados do Brasil, como São Paulo, começam a reabertura gradual. O que acontecerá se os contágios dispararem?
Resposta. Se houver um aumento maior, vamos recuar. Aqui nenhuma decisão é definitiva, sobretudo quando se trata de saúde. Quando for necessário modificá-la, para cima ou para baixo, não hesitaremos em fazer isso. Por que não é precipitado? Porque todas as medidas foram tomadas em comum acordo com o comitê de saúde. Temos 18 cientistas que compõem o comitê criado em 26 de fevereiro, no mesmo dia em que o hospital Albert Einstein identificou o primeiro brasileiro infectado com o coronavírus: um brasileiro que veio da Itália.
P. Justo quando terminou o Carnaval.
R. Exatamente. Naquela mesma tarde criamos o comitê com dez membros liderados por David Uip [infectologista brasileiro que foi secretário de Saúde de São Paulo]. E desde então temos seguido as diretrizes desse comitê. Eles determinam o que podemos fazer, o que não podemos e de que forma podemos fazer. Implementamos esse formato denominado plano de São Paulo em cinco faixas.Tudo muito gradual, cuidadoso e feito dentro do que a ciência nos orienta. Quais são os aspectos fundamentais? A disponibilidade de leitos de UTI.
P. Mas agora na Grande São Paulo a ocupação está em 83%. É bastante.
R. É bastante, mas tenha em mente que a ocupação média de leitos de UTI na rede pública da Grande São Paulo é de 85% fora da pandemia. Agora temos camas específicas para a pandemia. Com os novos respiradores e os leitos conveniados com o setor privado, reduzimos no Estado de São Paulo para 75% e estamos baixando na Grande São Paulo para 75%. Já estivemos em 92%. Outra medida são os testes. Estamos testando mais. Com mais testes teremos um panorama mais preciso da pandemia.
P. Mas a taxa de testes também é muito pequena.
R. Também era pequena na Espanha, e aumentou. Estamos aumentando o volume de testes porque conseguimos comprá-los. O mundo agora tem 216 países com coronavírus, o que mais se consome são respiradores, testes, máscaras e equipamentos de proteção individual. Felizmente, estamos conseguindo comprar mais testes, confiáveis e modernos. E a outra medida, as máscaras. Hoje 96% da população de São Paulo está usando máscara, e esse é um bom número. Não tínhamos nenhum hábito. Tínhamos uma única empresa fabricando máscaras no Brasil, a 3M, em Campinas, e agora temos 20 produzindo máscaras e também de tecido, que é lavável e obviamente sai mais barato que as descartáveis. Esses três aspectos, o número de leitos de UTI, mais testes e melhor proteção com máscaras, nos permite tornar esse projeto muito gradual, sem pressa. Se tivermos que dar um passo atrás por identificar descontrole em alguma região ou cidade do Estado, faremos isso sem nenhuma hesitação.
Tudo é muito mais difícil aqui no Brasil do que na Espanha, por exemplo, onde você tem uma única mensagem do Governo central e das províncias
P. Houve uma mudança de posição bastante surpreendente, depois de se chegar a antecipar feriados aqui na capital para aumentar o isolamento e achatar a curva. Os respiradores, máscaras e a intensificação dos testes ocorreram nos últimos 15 dias?
R. Sua análise está rigorosamente certa. A análise do comitê de saúde não é quinzenal nem semanal, é diária. Funcionou nossa experiência de antecipar os feriados, o que aumentou a taxa de isolamento social na capital, na região metropolitana e no interior. Ontem a taxa de isolamento era de 55% na capital, ou seja, as pessoas estão praticando mais o isolamento. Foi o melhor domingo das últimas quatro semanas. E de 53% no Estado de São Paulo, 52% na Baixada Santista. A população está compreendendo melhor a importância do isolamento social, apesar das mensagens opostas. Enquanto aqui transmitimos que o isolamento é importante para salvar vidas, para usar máscaras e manter as regras de higiene lavando as mãos, a outra mensagem do presidente da República é exatamente oposta. Tudo é muito mais difícil aqui no Brasil do que na Espanha, por exemplo, onde você tem uma única mensagem do Governo central e das províncias. Aqui você tem de um lado uma mensagem totalmente atentadora porque o presidente da República não usa máscara, estimula a aglomeração, cumprimenta pessoas, beija e abraça crianças, não usa álcool em gel nem fala da importância do isolamento. Essa dualidade dificulta enormemente a percepção por parte da opinião pública. É um ganho que alcancemos esse nível de isolamento aqui em São Paulo. Combatemos dois vírus, o coronavírus e o bolsonarovírus.
P. O senhor ficou surpreso com essa atitude do presidente na gestão da pandemia? Não é apenas o não fazer, mas, em certa medida, boicota a posição dos governadores.
R. A verdade é que estou decepcionado. O boicote não é aos governadores, é à vida. Está indo contra a saúde e a vida dos brasileiros. Infelizmente, essa é a realidade. É o que ele vem fazendo desde fevereiro. O presidente nunca teve o comportamento de obedecer à ciência. Três ministros em três meses em meio de uma pandemia. Incrível. E se soma a isso a vontade deliberada de recomendar o uso indiscriminado da cloroquina ou da hidroxicloroquina, que a ciência não recomenda, exceto em casos muito especiais, com prescrição médica e a aceitação do paciente, porque os efeitos colaterais são muito graves, principalmente para cardíacos.
Com esse nível [ de Bolsonaro ] você não governa nem um condomínio, muito menos um país.
P. Bolsonaro sempre foi um político que falou com desdém da vida, das pessoas que procuravam seus desaparecidos da ditadura, e falava publicamente que queria fuzilar 30.000. Apesar de tudo isso, o senhor esteve ao lado, ao menos no período eleitoral, houve o “Bolsodoria”. Em que momento percebeu caminhos diferentes?
R. No primeiro turno votei em Geraldo Alckmin. No segundo, tínhamos duas opções e eu não votaria em Fernando Haddad. Mas isso não me torna seu antagonista. Porque aqui fizemos a transição de maneira muito republicana. Mas eu não iria votar em quem derrotei dois anos antes. Naquele momento se justificava o voto em Jair Bolsonaro, ele tinha um apelo liberal do ponto de vista da economia, algo que pratico aqui. Ele tinha o nome de Paulo Guedes como futuro ministro da Economia. E havia outro peso importante, que era a defesa da transparência e o combate à corrupção na figura de Sergio Moro, que ele dizia que seria seu ministro da Justiça, como de fato foi. Depois de sua posse, em menos de três meses eu e provavelmente milhões de brasileiros que também votaram em Bolsonaro percebemos que essa imagem e propostas não eram exatamente o que ele defendia. E no terceiro mês de Governo já se percebia a escalada autoritária. Estou apenas com o ministro Paulo Guedes e em uma economia que cresceu 0,9% no primeiro ano. Aqui em São Paulo crescemos 2,9%. Mas como fazer uma administração em meio a um Governo que não tem gestão? Difícil. E se alguém tem dúvidas, é só voltar a ver aquela reunião ministerial. Com esse nível você não governa nem um condomínio, muito menos um país. Sempre defendi um centro democrático liberal que sabe dialogar com a esquerda, a direita, que quer distância dos extremos.
P. Nos últimos tempos ouve-se muito no Brasil sobre intervenção militar, sobre golpe. O senhor recebe ligações de empresários, investidores estrangeiros sobre o que acontece no Brasil? Se vai ter um golpe no Brasil?
R. Eu pessoalmente, como governador de São Paulo, lutarei com todas as forças e com a dimensão política do cargo que obtive no voto direto, foram 11 milhões de votos. São Paulo é o Estado economicamente mais importante do país, tem quase 40% da economia brasileira, 46 milhões de habitantes. Aqui nós não admitiremos em nenhuma hipótese qualquer movimento golpista para implantação da ditadura novamente aqui no Brasil. Primeiro aquela coisa pavorosa de pessoas segurando tochas em frente ao Supremo, protestando e ofendendo os ministros da Corte, e depois um outro espetáculo medíocre no domingo com o presidente da República, mais uma vez sem máscara, desfilando a cavalo, como se um imperador fosse. São Paulo será um bastião de resistência para a preservação da democracia no Brasil. E espero que outros Estados tenham também a mesma conduta. E espero também que ao menos alguns militares, com uma visão melhor e mais consciência, não abracem a escalada autoritária do presidente em busca de um regime ditatorial onde ele possa calar o Congresso, amordaçar os juízes do Supremo Tribunal, e intervir nos Governos estaduais.
P. Neste final de semana houve um protesto com bandeiras de ultradireita, discurso de ucranizar o Brasil que gerou brigas que desdobraram em ação repressiva da PM. Como São Paulo monitora esses atos nazistas? E a ação da PM em embate com manifestantes do ato antifascistas?
R. A polícia não atuou de forma repressiva, atuou de forma protetiva. Um grupo desses ditos neonazistas ucranianos romperam o cerco da polícia, entraram por uma rua lateral, e foram ao encontro dos manifestantes ditos pela democracia. Ali começou um conflito de pessoas se agredindo. Ali a PM teve uma primeira ação com bombas de efeito moral para evitar ali uma conflagração de pessoas contra e pró-Bolsonaro. Aliás, o que um Governo autoritário mais deseja, lamento dizer isso, é um corpo estendido no chão, para justificar a escalada autoritária. A PM tinha uma função ali de evitar o confronto e proteger as pessoas. E houve também uma agressividade desnecessária do outro lado, atirando pedras. PM não disparou nenhum tiro, nenhuma bala de borracha. Duas pessoas se machucaram, mas nada grave. Não fosse a presença da PM teríamos um confronto e muitas até —Deus que me perdoe— uma pessoa morta. Já orientei a PM de São Paulo em reunião desta manhã para proibir qualquer manifestação de duas partes no mesmo local e no mesmo horário. Um que faça no sábado, e outro no domingo. Tudo que não precisamos é estabelecer confrontos na rua neste momento no Brasil. Isso só vai atender a quem tem projeto autoritário e deseja justificar a presença do Exército e com medida mais autoritária e mais dura diante de um Estado ou conjunto de Estados.
P. Existe investigação sobre esses grupos, células de extrema direita?
R. Nem no período da ditadura militar tivemos movimentos neonazistas no Brasil com característica dessa natureza. Surgiu agora dentro do movimento bolsonarista, que prega liberação de armas e armamento da população, confronto, tochas, e manifestações neonazista. O Brasil nunca viveu essa experiência, sempre foi um pais pacifico. [Na av. Paulista] foi uma manifestação pequena, mas descabida. Orientei a secretaria de segurança pois ela é inconstitucional. Constituição prega não discriminação de quem quer que seja. Negros, índios, brancos, amarelos, judeus, árabes. É inconstitucional, e já orientei a Secretaria de Segurança que houver alguma manifestação antissemita aplique a constituição e coloque na cadeia. Isso é absolutamente inaceitável.
P. Será candidato em 2022?
R. Se não me fizessem essa pergunta acharia que há algo errado com vocês (risos). Não é hora de tratar de eleições, agora é hora de enfrentarmos a pandemia, superarmos essa gravíssima crise de saúde no Brasil, restabelecer o processo econômico, tentar resgatar o que for possível de empregos perdidos neste ano de 2020, e tratar de eleições de 2022 apenas em 2022. Ainda temos eleição municipal, que talvez a data seja alterada por força da pandemia. Mas agora, não é hora de tratar nem especular, nem tratar esse assunto.
P. Vivemos um momento bastante peculiar nos EUA com protestos pela morte injustificada de um homem negro por um policial, que contagiou outros países. Nós também temos uma polícia violenta em São Paulo. 255 pessoas morreram entre janeiro e março pelas mãos da polícia. Na periferia temos ações que sempre evidenciam uso de força maior. De que maneira o Governo de São Paulo vai trabalhar a questão da PM violenta, ainda mais diante de um Governo que empodera estes grupos ainda mais?
R. A polícia de São Paulo não é violenta, é eficiente. Temos 88.000 policiais militares, e 20.000 civis. É a maior polícia do Brasil, e também a mais bem treinada. Ano passado foram enviados 320 oficiais, militares e civis ao exterior –Coreia, Japão, Israel—para ações de inteligência da polícia. Agora, São Paulo tem a mesma população da Espanha, os números em São Paulo são grandes. Se virmos na Espanha acredito que não sejam diferentes. São Paulo tem polícia eficiente, vocês viram ontem no domingo. Não viram atos violentos mesmo sendo desafiados. Ainda assim souberam manter a calma.
P. Mas estávamos na avenida Paulista televisionada, num ambiente de classe média. Eu digo na periferia, governador. Nós vivemos a questão de Paraisópolis, no ano passado, não posso deixar de dizer. Crianças [adolescentes] morreram.
R. A polícia não disparou um único tiro em Paraisópolis, nem de borracha nem letal. A polícia foi agredida por dois armados numa motocicleta e se esvaíram para o centro da comunidade. Fizeram a perseguição sem tiros, ainda que fossem alvos de tiros. A circunstância que determinou o falecimento dos jovens foi um pisoteamento de jovens no meio de um baile funk que acontecia na área central de Paraisópolis. Eu assisti a todos os vídeos, solicitei a Procuradoria e a Defensoria Pública, e também ao Tribunal de Justiça, que fizessem todos os procedimentos necessários. E instauramos um inquérito na Polícia Civil para saber se havia ato de violência neste caso que tivesse desencadeado a corrida das pessoais e, infelizmente, o pisoteamento. O que não quer dizer que a PM não cometa erros. Como acontece com a dos EUA. Uma vítima de um policial que cometeu um erro gravíssimo, e outros policiais que podiam ter evitado essas mortes por sufocamento. Não se pode inferir a alcunha que a polícia espanhola é violenta, a polícia inglesa [em 2015, a polícia da Inglaterra e País de Gales havia registrado 55 mortes nos últimos 24 anos], ou a francesa. Há protocolos mundiais para circunstâncias semelhantes, mas também há falhas. Existem. Lamenta-se, mas pode ocorrer. A orientação do Governo é que a policia primeiro reconhecer o erro e depois possa punir, ou se for menos intenso, que ele seja retreinado.
P. Esse assunto vamos conversar depois porque o foco é a pandemia. Mas na Espanha não tem 255 mortos em três meses [15 pessoas morreram nos últimos cinco anos em operações policiais na Espanha, segundo o senador espanhol Jon Iñarritu].
R. Não são 255 mortos [em SP].
P. Sim, são 255 [segundo dados a Secretaria Estadual de Segurança].
R. Não tenho esse número e não quero contestar vocês neste momento. Mas nenhum problema em abordar este assunto num momento futuro. Até porque a minha posição é de um democrata e de respeito aos direitos humanos e à polícia. Foi o ano que mais mandamos policiais ao exterior.
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